Emergência da extrema direita e ameaças à democracia no Brasil

Cinco esteios da vitória de Bolsonaro II

, por TIBLE Jean

Um terceiro ponto de apoio foi de setores evangélicos. O católico Bolsonaro se aproximou destes nos últimos anos: casou em cerimônia dirigida pelo pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus, e foi batizado no Rio Jordão em Israel pelo Pastor Everaldo candidato à presidência em 2014 pelo Partido Social Cristão (PSC). Esse apoio de lideranças evangélicas (das Igrejas Universal, Renascer, Mundial do Poder de Deus) foi importante para atingir as camadas populares que tinham certa hostilidade em relação ao capitão e declaravam antes voto em Lula. É notável, em particular, a votação no Rio (68%), Estado mais evangélico do país, no qual a votação do PT desabou e onde os quatro últimos governadores estão ou foram presos. O deputado-capitão conseguiu se conectar com instituições que possuem uma impressionante presença territorial sobretudo nas periferias, com criação de comunidade, acolhimento em contexto de penúria, necessidades e sofrimento. Além disso, construíram uma estratégia política de anos, com a compra de ferramentas de comunicação em massa (centenas de rádios e TVs – redes extensas e poderosas, compradas e alugadas). A não democratização das mídias paga aqui seu preço.

Evangélicos na manifestação pelo impeachment de Dilma Rousseff, 15 do março 2014 @Midia Ninja (CC BY-NC-SA 2.0)

No dia 24 de outubro, entre os dois turnos, a Frente Parlamentar Evangélica (FPE) – que reivindica 180 deputados (de um total de 513) na próxima legislatura – declara apoio à candidatura do militar e lança o manifesto “O Brasil para os Brasileiros”. Nessas 60 páginas, são defendidos valores ditos tradicionais, articulados a uma pauta ultraliberal e uma “revolução na educação” (um virtual ministro foi vetado pela bancada por não ser contra a ideologia de gênero e a “doutrinação comunista”. Após essa intervenção foi nomeado um professor que celebra o golpe de 1964). Não por acaso, a primeira aparição pública do deputado-capitão após a vitória foi no templo de Malafaia, no qual começa agradecendo a Deus e termina repetindo seu slogan de campanha – Brasil acima de tudo, Deus acima de todos.

Um quarto elemento fundamental foi o apoio de certos poderes econômicos. Vimos que os três grupos anteriores (militar, judiciário e evangélico) aderiram fortemente à pauta liberal na economia. Depois da facada, cada subida do candidato-capitão nas pesquisas tinha como resposta alta da bolsa e baixa do dólar – foram nítidos em seu apoio. A aproximação de Paulo Guedes (que estava inicialmente comprometido com a candidatura do apresentador de televisão Luciano Huck, que acabou desistindo) selou sua adesão a um programa econômico ultraliberal. Guedes, futuro ministro da economia, defende privatizar todas as estatais e reduzir os impostos para os ricos, de acordo com sua formação na Universidade de Chicago. Após sua vitória, Bolsonaro, via transmissão por Facebook, colocou que “para destravar a economia, será preciso atender à demanda de empresários e optar pela redução de direitos trabalhistas”, indicando afinidades com tradicional pauta do patronato e que já vingou no governo golpista de Temer – quais outros direitos Bolsonaro defende retirar?

Seu discurso e propostas estão, também, fortemente conectados com o agronegócio. Esse setor aderiu no decorrer da pré-campanha. Alckmin ainda tentou segurar uma parte ao escolher a senadora ruralista gaúcha Ana Amélia como sua vice, mas sua estagnação não conteve o apoio ao capitão. Apesar do suporte dos governos petistas ao setor, os votos da região onde o agronegócio é forte passaram, crescentemente, a pender para a oposição ao PT. Se em 2002, Lula ganhou em praticamente em todo o país, em 2006 em Goiás e alguns outros estados de forte presença do setor perdeu. Isso seguiu numa crescente em 2010 e 2014 e neste ano atingiu seu auge. Pode-se dizer que se fomentou uma subjetividade do agronegócio que joga água no moinho de posição violentas, contra povos indígenas, quilombolas e sem-terra – a boa e velha questão da terra com a qual estão envolvidos boa parte dos parlamentares e políticos [1]. A bancada do boi encontra-se aí com a da bala e Bolsonaro, coloca em abril de 2018, na Associação Comercial do Rio de Janeiro, que “a propriedade privada é privada e é sagrada e ponto final. Invadiu, (...) é chumbo”, defendendo “tipificar como terrorismo ações desses marginais”. A nova ministra da Agricultura – e única mulher –, Tereza Cristina, parece expressar o programa da ala dura do agronegócio.

Por fim, as dimensões geopolíticas da vitória autoritária – não se pode compreender o processo político dos últimos anos sem levar em conta a participação estadunidense. Em 2013, o Wikileaks revelou que tinham sido grampeados pela Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA) os telefones do Gabinete de Dilma, de alguns ministros, do avião presidencial, das missões diplomáticas brasileiras incluindo a da ONU e… da Petrobras [2]. Os cables do Departamento de Estado indicam o interesse estadunidense no petróleo e no pré-sal e uma série de laços particulares entre setores políticos brasileiros e a Embaixada americana – José Serra, Romero Jucá e Michel Temer (todos atores-chave do golpe que derrubou Dilma) [3]. A Lei da Partilha, aprovada em 2010 após a descoberta dos campos de petróleo do pré-sal, trilhou o sentido de um maior controle do Estado brasileiro e da Petrobras sobre essas novas reservas (sendo propriedade da União e tendo participação obrigatória da Petrobras de 50% na sua exploração), foi modificada após o golpe jurídico-parlamentar.

Esta questão possui outra vertente na atuação e cooperação internacional do Judiciário e do Ministério Público. Desde o Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal, assinado entre os governos brasileiro e norte-americano em outubro de 1997 (depois atualizado pelo Decreto Presidencial de Número 3810/2001), ao Seminário Internacional sobre Crimes Financeiros Ilícitos, realizado em outubro de 2009 (no qual os brasileiros teriam solicitado treinamento americano), passando pela conexão dos procuradores e juízes “com circuitos internacionais de produção da expertise anticorrupção”. Estes se dão no contexto de uma ofensiva estadunidense a respeito desse tema, desde os anos 1970, com uma nova legislação doméstica (Foreign Corruption Practices Act), mas também acordos internacionais, no âmbito da OCDE e outros, para exportar modelos de combate à corrupção. A vara judicial de Curitiba se transformou, nas duas últimas décadas, em especialista em crimes financeiros e a formação acadêmica e qualificação profissional de muitos membros da força-tarefa do MP passou pelos EUA, em particular pela Harvard Law School. Seria possível uma reciprocidade nessas relações Brasil-EUA?

Se somarmos o financiamento a “novos grupos” conservadores [4], opapel de institutos ultraliberais (como o Atlas) e o apoio explícito da extrema-direita americana como o de Steve Bannon, tal conjunto se aproxima de forma contundente do que Andrew Korybko define como guerra híbrida [5]. Talvez nesse ponto se situe mais um curto-circuito que Lula e o PT no governo criaram. O novo protagonismo brasileiro no mundo desafiou, ainda que de forma moderada, o poder americano, ao tecer novas relações com o mundo, ser membro dos BRICS, pacificador na questão nuclear iraniana, propulsor da integração regional e da cooperação com o continente africano e modelo de políticas sociais para os países do Sul. Porém, não se preparou para isso e esse “modelo brasileiro” foi atacado e não conseguiu se sustentar. Por outro lado, tampouco pode se dar um poder total a essas forças – como no caso do whatsapp, deve haver um ambiente prévio (e em boa parte, “interno”) para “pegar”, ser efetivo.

O novo ministro das relações exteriores, o embaixador Ernesto Araújo, não só se sintoniza com esses certos ares estadunidenses, como indica um aprofundamento – seus textos e declarações indicam um alinhamento não aos Estados Unidos (a política externa brasileira sempre balança, conforme a conjuntura interna e externa entre o americanismo e o globalismo [6]), mas à liderança de Donald Trump. Araújo vê um mundo em guerra contra os valores ocidentais (cristãos). Os globalistas marxistas, da China e outras partes, e suas ofensivas como o aquecimento global (por isso, a vontade de deixar os Acordos de Paris). E Trump messiânico, como salvador da civilização frente ao “islamismo radical” e sobretudo de um Ocidente que se fragiliza ao negar Deus [7]. Trump foi o primeiro chefe de Estado a ligar para o escolhido pela população e seu assessor de segurança nacional, John Bolton (conhecido por ser linha dura) veio visitá-lo a caminho de Buenos Aires para a reunião do G20. O Itamaraty, apesar de ser uma instituição ainda com tintas aristocráticas e um núcleo de excelência da burocracia brasileira, teria sido aparelhado por marxistas globalistas, de acordo com Araújo. Aqui, percebe-se outra mudança dos militares. Mesmo se o golpe de 1964 contou com o apoio explícito e comprovado dos EUA (Operação Brother Sam), os governos militares progressivamente se afastaram do alinhamento automático de seu primeiro período (de Castelo Branco, cuja política externa, como na perspectiva de Araújo, pregava um realinhamento ao Ocidente) nos seguintes, provocando uma série de tensões com os americanos – denúncia do acordo militar, reconhecimento da independência de Angola, lei de informática, dentre outros.

Notes

[1Alceu Castilho. O partido da terra: como os políticos conquistam o território brasileiro. São Paulo, Contexto, 2012.

[2Natalia Viana. “WikiLeaks: NSA espionou assistente pessoal de Dilma e avião presidencial”. Agência Pública, 04/07/15.

[3Juliana Rocha e Catia Seabra. “Petroleiras foram contra novas regras para pré-sal”. Folha de S. Paulo, 13/12/2010.

[4Marina Amaral. “A nova roupa da direita”. Agência Pública, 23/06/15.

[5Andrew Korybko. Guerras híbridas: das revoluções coloridas aos golpes. São Paulo, Expressão Popular, 2018.

[6Leticia Pinheiro. Política externa brasileira. Rio de Janeiro, Zahar, 2004.

[7Ernesto Henrique Fraga Araújo. “Trump e o Ocidente”. Cadernos de Política Exterior (IPRI), ano III, número 6, 2o. Semestre de 2017, p. 323-357.

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Jean Tible é professor de ciência política da Universidade de São Paulo