A eleição do militar e deputado federal de extrema-direita Jair Bolsonaro para a Presidência da República em outubro de 2018 não foi raio em céu azul, mas fruto do encontro entre dois fenômenos distintos porém relacionados: a consolidação paulatina de uma nova direita brasileira entre os anos de 2006 e 2018, e o surgimento de um novo fenômeno populista no país a partir de 2014, o bolsonarismo. Tais fenômenos, no entanto, ainda que tenham se apoiado de modo intenso em mobilizações digitais, não se espraiaram por setores mais amplos da sociedade por conta da ingenuidade de vítimas da desinformação em massa, mas, como procurarei apontar, isso se deu em virtude de processos sociais e políticos específicos que passaram a permear o país em anos recentes e que, até o presente momento, parecem passar ao largo de boa parte das análises políticas realizadas na academia e nos meios jornalísticos.
O surgimento da nova direita brasileira
A nova direita brasileira passou a se organizar a partir de fóruns de discussão na internet logo após a reeleição de Lula em 2006. Na época, boa parte dos analistas políticos consideravam que Lula não sairia vitorioso das eleições tendo em vista o impacto do escândalo de corrupção que ficou conhecido popularmente como “mensalão”, uma alusão às quantias regulares de dinheiro pagas a parlamentares da base aliada do governo em troca de seus votos no Congresso. Ainda que o escândalo tenha custado a permanência de importantes quadros petistas no governo e manchado a imagem do partido, que desde sua fundação nos anos 1980 advogava pela ética na política, Lula foi reeleito com base em uma votação expressiva da população mais pobre do país. Durante seu segundo mandato o ex.-metalúrgico foi se tornando cada vez mais popular em virtude de um pequeno milagre econômico baseado no boom de commodities, nos aumentos reais do salário mínimo, e na criação e expansão de programas de combate à pobreza que fizeram com que milhões de pessoas melhorassem significativamente seus patamares de renda e consumo.
Na época a popularidade de Lula era tal que grupos e movimentos posicionados à direita do espectro político que tentaram protestar contra o governo nas ruas foram alvo de desdém e escárnio até mesmo de políticos de oposição ao governo petista. Sem se sentirem representados pela oposição institucional ao PT, os descontentes com o governo passaram a frequentar a internet em busca de um ambiente em que pudessem se expressar livremente contra o governo e a esquerda e conhecer pessoas que pensassem parecido, seja porque defendessem o livre-mercado, punições mais severas para criminosos, a instauração de um novo regime militar ou mesmo a volta da monarquia. Destes encontros começaram a surgir novos grupos de atuação política e estudo nas universidades, organizações civis, ideias de novos partidos, novos movimentos sociais e lideranças intelectuais e políticas, e, nesse sentido, é necessário destacar o papel desempenhado pelo jornalista Olavo de Carvalho.
Desde a metade de 1990 Carvalho defendia em livros e artigos que publicava em jornais e revistas a ideia de que desde a redemocratização o país vinha sendo tomado por uma hegemonia cultural esquerdista. Tal hegemonia se refletiria por meio da influência exercida por intelectuais de esquerda que teriam passado a ocupar posições de prestígio em editoras de livros, nas redações dos principais jornais e revistas do país e nos cursos de humanidades das principais universidades do país, mais notadamente na Universidade de São Paulo, mas que, incapazes de realizar reflexões profundas a respeito do país que se destacassem no panorama intelectual mundial, se contentavam em repetir de modo irrefletido chavões inspirados nas últimas modas intelectuais vindas dos Estados Unidos, como, por exemplo, a defesa das chamadas “pautas identitárias”. Extremamente ativo na internet, ainda em 1998 Carvalho passou a divulgar suas ideias em um blog, em 2002 em um site colaborativo, em 2004 era tema de ao menos quatro comunidades de discussão na falecida rede social Orkut, além de ministrar aulas em cursos online e realizar transmissões de áudio pelo site Blog Talk Radio, análogas ao que hoje se conhece como podcast.
A propagação em meios digitais de que existiria uma hegemonia de esquerda no país acabou por unificar os descontentes com o governo petista, a despeito de suas diferenças, e influenciar de modo direto ou indireto boa parte da nova direita em gestação. Desse modo, quando a petista Dilma Rousseff sucedeu Lula no governo federal, a economia começou a dar pequenos sinais de desgaste, e, movimentos anticorrupção passaram a se expressar em várias capitais do país em 2011 e 2012, ano do julgamento do “mensalão”, as sementes da nova direita já estavam espalhadas na internet e fora dela. Desse modo, durante os grandes protestos ocorridos em Junho de 20131 contra a totalidade da classe política que levaram milhares de pessoas às ruas, os grupos ligados à nova direita puderam crescer e florescer no âmbito da sociedade civil, perdendo o receio de se manifestar em público. [1]
A ascensão de Jair Bolsonaro
Ao mesmo tempo em que a nova direita se fortalecia, o bolsonarismo começava a se originar a partir de uma reação conservadora mais ampla a uma série de avanços do campo progressista que ocorreram durante o primeiro mandato de Rousseff. Em 2011 foi criada a Comissão Nacional da Verdade para investigar crimes praticados durante a ditadura militar, em 2012 passaram a ser criadas cotas raciais nas universidades públicas e em 2013 a união entre pessoas do mesmo sexo foi sancionada pelo Judiciário. Ao mesmo tempo em que os movimentos negro e LGBT conquistavam maior destaque no debate público, entre 2011 e 2013 também passaram a ocorrer Marchas das Vadias em todo o país, e discussões a respeito de assuntos relacionados à gênero passaram a se tornar cada vez mais frequentes nas mídias tradicionais e na internet. Nessa época, a internet já havia se tornado um meio extremamente popular de disseminação de conteúdos que antes circulavam de forma restrita, de modo que imagens de militantes protestando com os seios de fora ou fazendo performances sacrílegas nas ruas, como a destruição de santas católicas, a introdução de crucifixos no ânus, bem como imagens de apropriações da figura de Jesus Cristo como homossexual ou transexual, passaram a circular Brasil a fora chocando grande parte da população cristã do país e tornando o cenário propício para a ascensão de políticos conservadores, como Jair Bolsonaro.
Capitão da reserva e contumaz defensor do regime militar, Bolsonaro havia iniciado sua carreira política no Congresso nos anos 1990 com o apoio de militares de baixa patente do Estado do Rio de Janeiro bem como de famílias de militares que perderam influência e prestígio após a redemocratização, base que posteriormente se ampliou para abarcar policiais militares. Desse modo, assim que a Comissão da Verdade foi criada, o capitão da reserva logo se tornou um de seus maiores opositores no Congresso, e seu histórico de posicionamentos contrários à gramática dos direitos humanos também o gabaritou para exercer, ao lado de lideranças políticas cristãs conservadoras, um papel de destaque no contra-ataque aos avanços dos movimentos LGBT, que enfrentou o governo capitaneado por Rousseff e barrou a distribuição de cartilhas escolares de combate à homofobia, pejorativamente popularizadas como “Kit Gay”.
Ao fim do primeiro mandato de Dilma, em 2014, em meio a reação conservadora que ganhava cada vez mais apelo entre a população, Bolsonaro se reelegeu com quase meio milhão de votos e começou a ser cultuado por milhares de pessoas atraídas pela radicalidade de seus posicionamentos e pela autenticidade que transmitia em suas aparições públicas, dando início ao que o teórico político Ernesto Laclau não hesitaria em classificar como uma lógica populista. Rousseff também havia sido reeleita, no entanto, passados apenas seis dias de sua vitória, movimentos ligados à nova direita organizados dentro e fora da internet, organizaram o primeiro protesto de rua pedindo seu impedimento, o qual contou com a participação de um dos filhos de Jair Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro, que havia sido eleito pela primeira vez para a Câmara Federal em 2014.
Os protestos se repetiram até que, alimentados pela indignação contra os novos escândalos de corrupção divulgados pela Operação Lava-Jato, versão nativa da italiana Mani Pulite, conseguiram reunir no início de 2015 milhares de pessoas vestidas de verde a amarelo demandando a derrubada de Rousseff. Entre os manifestantes não era difícil flagrar pessoas vestindo camisetas ou portando cartazes com os dizeres: “Olavo tem razão”, em alusão ao jornalista Olavo de Carvalho, que havia se tornado um best-seller ao ter suas obras reeditadas poucos anos antes. No entanto, a maioria dos participantes dos protestos pelo impeachment de Rousseff não eram refratários apenas ao Partido dos Trabalhadores, mas a todos os partidos e lideranças políticas tradicionais incluindo os de oposição ao governo, de modo que Jair Bolsonaro era um dos poucos, senão o único político que conseguia angariar manifestações de aprovação daqueles que protestavam nas ruas. O militar direitista, atento ao clima de opinião da época, que se radicalizava à medida que as crises política e econômica se aprofundavam, logo procurou adotar um discurso anti-sistema e surfar na onda que lhe parecia favorável, anunciando sua candidatura à presidência ainda em março de 2016, poucos meses antes da derrubada de Rousseff do poder.
Naquele mesmo ano Bolsonaro se filiou ao Partido Social Cristão, onde estavam reunidas lideranças cristãs conservadores e militantes da nova direita oriunda nos fóruns de internet. No entanto, o militar não era um consenso entre os membros da nova direita mais alinhados com a defesa radical do livre-mercado, afinal, Bolsonaro era conhecido por defender o intervencionismo estatal praticado durante o regime militar. Por este motivo, o pré-candidato à presidência decidiu se aliar ao economista Paulo Guedes, radical defensor do livre-mercado, selando, desta forma, uma aliança política entre aqueles que pregam por maior liberdade de mercado e os setores que defendem o conservadorismo nos costumes e punições mais severas para criminosos, pautas que Bolsonaro defende de modo agressivo e histriônico.
Após sua vitória tal aliança logo revelou suas fragilidades à medida que o governo do capitão de reserva, iniciado em janeiro de 2019, progredia no tempo. Contudo, a ideia de hegemonia cultural esquerdista continua a unir bolsonaristas e a nova direita como um todo e a aumentar a descrença por parte de amplos setores da população em lideranças e partidos de esquerda. Tal descrença, para além do desconforto com os escândalos de corrupção associados ao PT, está baseada sobretudo em uma percepção razoavelmente comum entre as classes trabalhadoras de que a esquerda estaria mais preocupada em defender ‘o aborto’, ‘direitos humanos para bandidos’ e direitos dos LGBTs, mulheres, negros e indígenas em detrimento da defesa dos direitos de trabalhadores comuns que, ou não se encaixam nestas categorias, ou que afirmam não querer ser “reduzidos” apriori ao que percebem como sendo identidades pré-fixadas por movimentos sociais alheios a sua realidade cotidiana [2]. No entanto, a dificuldade da esquerda em dialogar com setores mais amplos das classes trabalhadoras precarizadas, e conseguir sua adesão não reside em um conluio de elites baseado na manipulação das massas via “fake news”, narrativa que simplifica fenômenos complexos que apontam para mudanças importantes na forma como a sociedade produz, circula e consome informações políticas1, mas às próprias estratégias políticas que passou a adotar nos últimos anos. Tais estratégias, combinadas a processos políticos e sociais específicos, fizeram com que a esquerda invariavelmente passasse a ser identificada com o próprio sistema político e econômico excludente e gerador de sofrimento social não apenas no Brasil mas em outros contextos, como procurarei apontar a seguir.
Armadilhas da diferença e o neoliberalismo progressista
No final dos anos 1990, o sociólogo brasileiro Antonio Flávio Pierucci [3] já apontava potenciais problemas na adoção daquilo que chamou de “lógica da diferença” por lideranças e movimentos de esquerda. Historicamente duas lógicas discursivas teriam orientado as demandas de movimentos políticos de esquerda e direita: a lógica da igualdade, associada com a esquerda, que procura chamar a atenção para o que diferentes grupos humanos possuem em comum, e a lógica da diferença, operada tradicionalmente pela direita, que destaca de forma permanente as diferenças irredutíveis existentes entre diferentes populações. Contudo, a partir das décadas de 1960 e 1970, o campo da esquerda teria passado a adotar cada vez mais a lógica da diferença para defender os direitos de grupos específicos como mulheres, LGBTs, negros, entre outros. No entanto, levada às últimas consequências, a lógica da diferença causa dilemas difíceis de serem equacionados dentro do campo progressista, já que a diferença não só facilita a fragmentação de grupos e demandas como invariavelmente pressupõe alguma forma de hierarquia, e, portanto, de valorização ou desvalorização de características físicas e/ou comportamentais, que é justamente como a direita costuma operar: homens são melhores que as mulheres; heterossexuais melhores que homossexuais, brancos melhores que negros; nativos melhores que imigrantes; etc., tornando comum a existência de armadilhas discursivas que dificultam a comunicação e o convencimento de setores mais amplos da sociedade para determinadas demandas quando estas assumem um caráter identitário e pouco ou nada articuladas a opressões de ordem econômica.
Outro fator que afasta setores mais amplos da população da defesa de pautas relacionadas a direitos de grupos específicos é o fato destas serem defendidas por elites culturais e econômicas cosmopolitas que procuram conviver entre si e se distanciar cada vez da realidade de boa parte das classes populares. De acordo com o historiador Christopher Lasch [4], tal fenômeno teve início nos Estados Unidos em décadas passadas quando o isolamento de tais elites da vida comum passou a ocorrer em virtude da valorização do trabalho “criativo”, uma série de operações mentais abstratas realizadas com ajuda de um computador, em detrimento do trabalho manual honesto, fazendo com que a única relação que passassem a ter com o trabalho produtivo fosse como consumidoras. Tal dinâmica acaba por se tornar mais acentuada na medida em que estas elites procuram conviver cada vez com os seus semelhantes, reforçando assim seus próprios valores e modos de vida, e se apartando progressivamente de pessoas que não partilham do mesmo lifestyle e que, em sua visão, seriam “ignorantes, atrasadas, rednecks, perdedoras, racistas, sexistas, homofóbicas, e talvez gordas”, como bem sintetizou uma apoiadora do Tea Party entrevistada pela socióloga Arlie Russell Hochschild. [5]
No entanto, o mesmo ímpeto civilizatório utilizado para defender mulheres, negros, imigrantes, LGBTs e indígenas, grupos que historicamente são alvo de discriminação e violência, não costuma se estender à defesa de trabalhadores comuns, especialmente tendo em vista a atuação online de millennials progressistas [6]. Desse modo, ao não realizar um enfrentamento aberto da opressão econômica vivenciada por largos setores da população, que inclui pessoas taxadas como ignorantes, conservadoras e atrasadas, tais elites, assim como grupos significativos de esquerda que por vezes se confundem com estas ou reproduzem seus discursos, acabam se alinhando na prática a um programa político neoliberal progressista, nas palavras da teórica política Nancy Fraser [7], e abandonando o homem comum à própria sorte, ou melhor dizendo, aos recentes discursos populistas de extrema-direita que certamente lhes conferem mais valor e respeito.