Emergência da extrema direita e ameaças à democracia no Brasil

A disputa do pré-sal: a fragilização dos interesses nacionais em favor das operadoras estrangeiras

, por CARARINE PEREIRA Cloviomar, COSTA PINTO Leão Eduardo, PIMENTEL FERREIRA Rodrigo, VELLA NOZAKI William

Passada uma década da descoberta do pré-sal e mais de um ano do governo Temer são muitas as evidências de que a instabilidade política provocada pelo impeachment de la presidenta Dilma Rousseff em agosto 2016 e as mudanças nos marcos de produção e exploração do petróleo conformam uma trama complexa de inter-relações entre distintos grupos de pressão, liderados principalmente por atores internacionais, envolvendo tanto interesses estratégicos e empresariais de longo prazo, quanto oportunismos políticos e financeiros de curto prazo.

O primeiro capítulo dessa trama relacionou-se a um acontecimento pouco lembrado atualmente: em janeiro de 2008, um ano após o anúncio da descoberta do pré-sal, a Petrobras foi vítima do furto de um de seus contêineres dentro do qual havia quatro notebooks, dois hard disks (HDs) e um conjunto de informações sigilosas sobre a exploração de petróleo na bacia de Santos. O contêiner deveria sair de Santos (SP) em direção à Macaé (RJ), sua origem e seu destino eram justamente cidades onde se encontram dois dos maiores campos do pré-sal.

Na ocasião a polícia federal definiu uma linha única de investigação: a hipótese de espionagem industrial, dado que não se furtou todo o conteúdo do contêiner, mas apenas aqueles itens em que havia informações sigilosas. Foram investigadas as duas empresas responsáveis pelo transporte: a norte-americana Halliburton e a brasileira Transmagno, entretanto, subitamente a polícia federal mudou a linha de investigação e passou a tratar o caso como furto comum, prendendo apenas quatro vigilantes do terminal portuário.

O segundo capítulo dessa história nos levou ao ano seguinte. Em outubro de 2009 foi realizada uma grande conferência no Rio de Janeiro reunindo membros da polícia federal, do ministério público e do judiciário com autoridades do governo norte-americano a fim de debaterem procedimentos e métodos de combate à lavagem de dinheiro e ao terrorismo. Esse evento contou com a participação ativa do até então desconhecido juiz Sérgio Moro, no âmbito de uma articulação denominada Bridge Project (Projeto Pontes). Vale lembrar também que o evento foi aberto pela embaixadora norte-americana Shari Villarosa, especialista em gestão de crises políticas que envolvam a ação de movimentos sociais, tendo atuado na repressão de grupos organizados em Myanmar (NOZAKI, 2018).

O caso veio à tona apenas com o vazamento feito pela Wikileaks, no qual também se pode verificar que Sérgio Moro foi o único juiz de primeira instância citado nominalmente na ata do encontro [1]. Alguns anos depois, seu método de condução da Operação Lava Jato trataria de criar, de forma simplista e equivocada, uma associação direta entre os pacotes de investimentos da Petrobras no pré-sal e os desvios provocados pelos casos de corrupção.

O terceiro capítulo, por seu turno, tratou da disputa eleitoral ocorrida em 2010 tendo como principais candidatos José Serra (PSDB) e Dilma Rousseff (PT). Uma vez mais, um vazamento posterior da Wikileaks revelou que naquela ocasião o candidato tucano trocou um conjunto de telegramas com uma alta executiva da petrolífera norte-americana Chevron [2] – a mesma empresa que desistiu do projeto de exploração do pré-sal em virtude dos elevados custos de exploração no primeiro poço – tratando da importância de se fazerem mudanças mais drásticas nos marcos de exploração e produção do pré-sal.

Vale lembrar: o projeto que retirou a obrigatoriedade da participação da Petrobras na exploração do petróleo na camada do pré-sal foi originalmente concebido por José Serra, que antes mesmo de ganhar as eleições, provavelmente, já se comprometia com pressões e interesses não necessariamente nacionais como deixam claros os telegramas vazados. Além disso, a nomeação de José Serra para o Ministério das Relações Exteriores do governo Temer, dada sua derrota eleitoral, talvez esse tivesse sido o melhor espaço para que o atual senador pudesse cumprir as promessas que antes havia realizado para as petrolíferas de fora do país (NOZAKI, 2018).

O quarto capítulo desse rascunho histórico-conjuntural se deu entre 2011 e 2012. Nesse momento a grande imprensa começou a noticiar de forma mais sistemática as “frustrações do mercado” com o desempenho da Petrobras. O argumento pró-mercado se concentrava na reclamação de que a estatal não estaria batendo suas metas de produção e lucro, a gestão da companhia já alertava para o fato de que o grande pacote de investimentos, da ordem de US$ 55 bilhões, feitos pela empresa exigia um tempo de maturação até que a produção aumentasse de forma crescente e exponencial, como veio a acontecer pouco tempo depois graças ao sucesso da produção do pré-sal e da redução de seus custos de extração.

Nesse mesmo ano ocorreu um redirecionamento estratégico da política de energia norte-americana, detalhada no documento governamental Blue Print for a Secure Energy. O Brasil apareceu em três das sete diretrizes estratégicas elencadas no documento, sendo tratado como um país cujas tecnologias nas áreas do pré-sal, biocombustíveis e hidrocarbonetos não convencionais precisavam ser observadas com cuidado.

Não por acaso, ainda em 2011, Barack Obama visitou as instalações da Petrobras, repetindo o gesto que havia sido realizado no ano da descoberta do pré-sal, em 2007, por George Bush. Mas, além dos EUA, há ainda mais players interessados nessa nova fronteira; França [3], Noruega e China [4] colocaram no centro de suas políticas energéticas a entrada no segmento do pré-sal brasileiro. Além disso, empresas como a europeia Shell e a asiática CNPC ampliaram seus investimentos em exploração e produção no Brasil (NOZAKI, 2018).

Não é exagero afirmar que nesse momento boa parte da grande imprensa nacional atuou como porta-voz das operadoras estrangeiras interessadas em ingressar no pré-sal brasileiro.

Plataforma de Petróleo na Baia de Guanabara. Foto : Marinelson Almeida (CC BY 2.0)

Já em 2013, tomou forma o quinto capítulo dessa história conturbada: o consultor de informática da Agência Nacional de Segurança (NSA, sigla em inglês), Edward Snowden, revelou documentos que mostravam como a presidenta Dilma, ministros e altos dirigentes do governo, assim como a rede privada de computadores da Petrobras estavam sendo alvo de alta espionagem, uma vez mais ficava claro o interesse norte-americano sobre a tecnologia envolvendo a exploração em águas profundas (MANZANO, 2013).

Nesse mesmo ano, após os vazamentos, o governo norte-americano decidiu pela troca de sua embaixadora no Brasil, nomeando Liliana Ayalde, conhecida por ter atuado no Paraguai participando ativamente das movimentações que derrubaram o presidente Fernando Lugo, intensificando a reversão liberal-conservadora na América Latina. Além dessa troca, em outubro de 2013, foi realizado o primeiro leilão do pré-sal sob o Regime de Partilha de Produção, como forma de pressão contra o protagonismo da Petrobras as petrolíferas norte-americanas (ExxonMobil e Chevron) e inglesas (BP e BG) boicotaram o leilão e decidiram pela não participação.

Logo depois, em março de 2014, coincidência ou não, foi deflagrada a primeira fase ofensiva da Operação Lava Jato, criminalizando desde o princípio o projeto de desenvolvimento baseado no ativismo estatal e na centralidade da Petrobras como polo para o avanço industrial e tecnológico do país. É incontestável o mérito da pauta de combate à corrupção, entretanto os métodos utilizados pela Operação Lava Jato são integralmente contestáveis, pois se valem de procedimentos seletivos, além da espetacularização de suas ações, tudo ancorado na problemática premissa de que o Estado seria o império do vício, enquanto o mercado caberia no reino da virtude. [5]

O resultado tem sido a destruição da economia nacional em favor da autopromoção de uma casta jurídica de atuação, no mínimo, duvidosa e, no caso do setor petróleo, na fragilização da Petrobras e, ao mesmo tempo, na aceleração da entrada de atores estrangeiros na exploração e produção do pré-sal, já com o projeto do senador José Serra em fase de conclusão. Para completar o (des)arranjo regulatório, em julho de 2018, um novo projeto de lei (PL 8939/2017) do deputado do Democratas da Bahia, José Carlos Aleluia, autorizou a Petrobras a vender até 70% dos campos que foram a ela concedidos pelo Regime de Cessão Onerosa (POLITO, 2018). Evidentemente, assim como na retirada da obrigatoriedade da Petrobras de participar da exploração do pré-sal no Regime de Partilha de Produção, as operadoras devem ser as grandes beneficiadas com essa mudança, fazendo ofertas para comprarem essas áreas.

Esses movimentos, como todos sabem, geraram não o fim de um período de instabilidade, mas o início de uma crise ainda mais profunda que atravessou o ano de 2015 e culminou na conformação do governo Temer em 2016, trazendo ao desmonte da Petrobras [6] e à entrega do pré-sal nos leilões realizados em 2017 e 2018 [7].

No entanto, embora o desmonte da Petrobras seja uma porta de entrada para as operadoras estrangeiras, toda essa trama por elas organizada, ou pelo menos, protagonizada, envolvendo o judiciário, o legislativo e o executivo, teve como grande objetivo uma reconstrução, ou melhor, uma desconstrução do marco regulatório do pré-sal. Carneiro e Delgado (2017) lembra que, após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, ocorreram um conjunto de mudanças que evidenciou o interesse do atual governo em abrir “diálogo com diferentes players da indústria” de óleo e gás para recuperar os investimentos. Entre as quatro mudanças destacadas pelos autores, duas delas estiveram relacionadas ao modelo de regulação do pré-sal: (i) fim do operador único e (ii) aceleração do calendário de rodadas a partir do novo regime (CARNEIRO; DELGADO, 2017).

No caso do fim do operador único, como já mencionado, observou-se a retirada da obrigatoriedade da Petrobras de participar de todos os leilões do pré-sal, facilitando o acesso da exploração e produção do pré-sal por empresas estrangeiras. Para impulsionar ainda mais esse movimento, a aceleração do calendário de rodadas de licitação inviabilizaria a participação da Petrobras dada a elevada exigência de capital para ingressar nos leilões e realizar os investimentos necessários.

Isso ficou muito claro nas segunda e terceira rodada das licitações do présal realizadas em 2017. Segundo a ANP (Agencia nacional do petroleo), houve um número considerável de empresas interessadas e habilitadas a participarem dessas rodadas, como ExxonMobil (EUA), Petrogal (Portugal), Petronas (Malásia), Repsol (Espanha), Shell e BP (Reino Unido), Statoil (Noruega), Total (França) e CNODC (China).

A modificação do marco regulatório teve uma importância central para a estratégia de inserção das operadoras estrangeiras no pré-sal brasileiro e foi o canal principal para impulsionar o acesso do capital internacional ao petróleo brasileiro.

Notes

[1O telegrama sigiloso “Wikileaks-Moro” pode ser lido em: <https://wikileaks.org/plusd/cables/...> .

[2Os telegramas sigilosos “Serra-Chevron” podem ser lidos em: <https://wikileaks.org/Nos-bastidore...> .

[3Em 2013, “a petroleira francesa Total traçou planos ambiciosos para expandir sua atuação no Brasil. O primeiro passo foi dado (...) com o consórcio formado para exploração de petróleo da área do pré-sal de Libra, na Bacia de Campos. Nesse caso, a Total se associou a Petrobras, Shell e às chinesas CNPC e CNOOC. (...) “Libra foi um passo muito importante e reforçou a decisão estratégica da Total de crescer no País”, disse Denis Palluat de Besset, presidente da petroleira no Brasil. A companhia deverá investir US$ 300 milhões em exploração. “Esse valor representa 10% do orçamento global do grupo para óleo e gás. E é, sem a menor sombra de dúvida, o maior investimento feito pela companhia no Brasil”, afirmou o executivo, que também responde pela área de exploração e petróleo da companhia. Segundo Besset, os aportes da companhia em óleo e gás até 2020 estão estimados em, no mínimo, US$ 2 bilhões no País” (SCARAMUZZO, 2014).

[4Em 2011, “o vice-presidente da China National Petroleum Company (CNPC) Manufacturing, Zhang Hanliang, afirmou (...) que a empresa chinesa busca parceiros nacionais e internacionais para investir na extração de petróleo na camada do pré-sal. O executivo reuniu-se (...) com o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), no Palácio dos Bandeirantes. "A CNPC tem muito interesse em investir no Estado de São Paulo e, em especial, na camada do pré-sal", disse o empresário chinês” (URIBE, 2011).

[5É curioso notar: o empenho que a Operação Lava Jato desde seu início dedica à busca de conflitos de interesse e tráficos de influência envolvendo a Petrobras nem de longe se compara à negligência com que ela trata as empresas estrangeiras.

[6Para o biênio 2017-2018 a Petrobras estipulou como meta se desfazer de ativos em um montante que totalize US$ 21 bilhões e, não restam dúvidas, que o pré-sal é o elemento que mais tem despertado o interesse e o apetite de investidores internacionais, todos eles buscando acessar os seus recursos e se apropriar da renda petrolífera.

[7É importante destacar: a confluência de interesses difusos do capital internacional, da elite políticopartidária, da casta jurídico-policial, e da grande imprensa oligopólico-espetacularizada convergiram para o mesmo horizonte, tais atores não assistiram a esse processo apenas como títeres coadjuvantes dos interesses internacionais, mas se valeram desse momento para impor, como protagonistas agindo ao arrepio das urnas, os seus interesses corporativos, nos conduzindo até o problemático estado de coisas em que o país se encontra.

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Os autores são pesquisadores do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis Zé Eduardo Dutra (INEEP).