Emergência da extrema direita e ameaças à democracia no Brasil

Militarização da segurança pública e a intervenção federal no Rio de Janeiro

, par WERNECK Jurema

A crescente violência letal no Brasil tem origem em uma dupla responsabilidade do Estado. De um lado, ele é deliberadamente omisso e não cumpre com seu papel de proteger a vida de dezenas de milhares de pessoas (jovens negros, mulheres, indígenas e quilombolas) que são assassinadas todos os anos. De outro, ele próprio é um agente dessa violência, já que a polícia mata milhares de pessoas anualmente no país. Esse contexto se agrava a partir do aprofundamento da recente crise política e institucional nacional, que serviu como uma cortina de fumaça para o grave ataque aos direitos humanos. Grupos conservadores no Congresso Nacional tentaram incansavelmente aprovar propostas que, na prática, representam retrocessos em direitos já conquistados pela sociedade brasileira. A esse quadro se soma a intensificação de um modelo de segurança pública militarizado, violento e voltado para a chamada guerra às drogas.

Militares realizando operação, no dia 22 de setembro de 2017, na favela da Rocinha após guerra entre quadrilhas rivais de traficantes pelo controle da área. Foto : Fernando Frasão/Agência Brasil (CC BY 2.5)

O discurso público atual sobre segurança fortalece a lógica simplista da guerra e alimenta um imaginário popular de que prende reduzir a violência no país. Mas essa ideia não tem qualquer lastro na realidade. Os homicídios representam apenas 11% das causas de aprisionamento. A população carcerária brasileira alcançou o patamar de 727 mil presos, a terceira maior do mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos e China, segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). Um aumento de 707% comparado ao início da década de 1990.

A imensa maioria dos presos do país (89%) está em unidades superlotadas. Ou seja, nunca se prendeu tanto no Brasil e, no entanto, os crimes de maior potencial ofensivo (como homicídios) continuam aumentando. Em 2016, o Brasil registrou 61,6 mil mortes intencionais violentas, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A política de encarceramento em massa não impediu que sete pessoas fossem assassinadas por hora em 2016.

O foco das políticas de segurança pública não é – e não foi, nas últimas décadas – a redução de homicídios. Os índices de elucidação de homicídios são irrisórios diante da centralidade que o tema deveria ter nas estratégias de segurança dos governos. O foco prioritário na guerra às drogas impera como política míope que não reduz a violência letal no país e coloca centenas de milhares de pessoas presas em condições desumanas e degradantes, sujeitas a tortura e maus tratos. Os dados também informam que negros e negras são a maioria das pessoas presas no Brasil.

Além disso, há uma tendência preocupante do uso crescente das Forças Armadas no policiamento e nas operações de segurança pública em diversos estados, como já ocorreu no Rio Grande do Norte, Espírito Santo, Brasília, Rio de Janeiro e durante os megaeventos esportivos em 2014 e 2016. O último estado citado, especialmente, tem vivido as consequências de uma ausência completa de política de segurança pública efetiva e estratégica que foque na prevenção ou que priorize o controle de armas e redução de homicídios.

As medidas adotadas no estado nos últimos anos seguiram um modelo militarizado de repressão ao comércio varejista de drogas ilícitas nas favelas e periferias a partir de incursões periódicas nessas áreas. Esse modelo não só não reduziu a criminalidade como foi um elemento propulsor de violência, resultando em milhares de pessoas mortas todos os anos em operações policiais, inclusive policiais e soldados.

O Rio de Janeiro é a vitrine e o palco de políticas de segurança pública ineficazes e que resultam em homicídios. A recente experiência das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), que ficou restrita a determinadas áreas, pouco ou nada dialogou com uma estratégia de segurança para toda região metropolitana. Ao contribuir temporariamente com a redução de alguns índices de criminalidade em determinadas áreas da cidade e transmitir sensação de segurança para garantir a realização da Copa do Mundo e da Olimpíada, as UPPs não trouxeram à tona nenhuma nova polícia ou política de segurança.

As práticas policiais nas favelas ditas “pacificadas” não superaram o conceito original da presença permanente da polícia como instrumento de controle social, reflexo de uma concepção de cidade que não inclui a favela como parte de uma comunidade de direitos. São inúmeros os casos em que os policiais militares das UPPs foram os perpetradores das violações de direitos dos moradores. Com o tempo, essa experiência das UPPs também ruiu e, além de deixar a desejar, quaisquer impactos positivos que elas geraram não se mostraram duradouros.

O Rio de Janeiro vive hoje o resultado dessa insistência em focar a política de segurança pública em operações das polícias que são uma espécie de caçada ao tráfico varejista de drogas ilícitas. Operações essas que não são mais do que enxugar gelo, pois não reduzem de fato a criminalidade e resultam em milhares de pessoas mortas. O Estado do Rio de Janeiro e as autoridades competentes são responsáveis por essas milhares de mortes. Entre janeiro de 2005 e julho de 2017, mais de 10 mil pessoas foram mortas em operações policiais, de acordo com o Instituto de Segurança Pública (ISP). A maioria das vítimas são homens jovens e negros. Os jovens não estão morrendo de overdose e sim dos tiros que supostamente são dados para evitar que eles consumam essas mesmas drogas.

O problema é que existe uma indignação seletiva por parte da sociedade em relação ao impacto da violência armada na cidade. Quando as disputas violentas dos diferentes grupos criminosos por territórios acontecem no coração da zona sul carioca o problema muda de proporção. O Estado se sente pressionado a dar uma resposta imediata, que, em geral, tem sido uma resposta de maior militarização e de convocação da presença das Forças Armadas.

A prisão do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, e de seus secretários e a profunda crise fiscal e orçamentária trazem reflexos diretos na segurança pública : secretário de Segurança desacreditado, Ministério Público tímido no seu papel de fiscal, sistema de justiça elitista, descontrole de armas e munições que circulam pelo estado e policiais militares que parecem estar sem comando e que vêm reforçando a prática de execuções extrajudiciais.

Por sua vez, a crise política nacional foi a oportunidade para que inúmeras iniciativas parlamentares que tramitavam no Congresso Nacional, que colocam em risco os direitos e vida de milhões de pessoas, ganhassem celeridade. A possibilidade de tomada de decisão sem qualquer tipo de participação e consulta gerou uma série de protestos na Esplanada dos Ministérios. Entre Brasília e Rio de Janeiro, e o uso das Forças Armadas em operações de segurança pública e policiamento para garantia da “lei e da ordem” pública, está uma profunda crise de legitimidade dos diferentes entes.

Intervenção federal no Rio de Janeiro

É nesse contexto político, econômico e social que o governo federal decretou uma intervenção federal no Rio de Janeiro, em 16 de fevereiro de 2018. Uma intervenção federal é uma medida drástica, absolutamente excepcional, e que só deveria ser decretada em condições realmente extremas. Embora o Rio de Janeiro viva um quadro grave de violência e de falta de segurança pública, a resposta adequada não deveria ser a intervenção. Além disso, outros estados têm piores índices de violência, caso esse fosse, de fato, o motivo para a medida.

Comando de Operações Táticas. Departamento de Polícia Federal. Foto : André Gustavo Stumpf (CC BY 2.0)

O modelo proposto é o do uso das Forças Armadas para policiamento e aprofundamento da militarização das políticas de segurança. É um erro já cometido anteriormente e repetido com insistência pelo poder público. Além disso, o governo federal que está intervindo é o mesmo que, no início de 2017, anunciou um Plano Nacional de Segurança Pública que tinha o Rio de Janeiro como um dos estados prioritários e que adotava este mesmo modelo de militarização e intensificação do confronto e da guerra às drogas. Um ano depois, este plano não apresentou resultados. Como esperar que um mesmo ator público que não agiu com competência sobre o tema no passado e que se propõe a implementar um modelo que já se provou ineficiente e de consequências muito negativas, vá produzir ou resultar em algo positivo ?

Nesse sentido, o que se vê é um aprofundamento do modelo de guerra e aumento da letalidade. O ministro da Justiça, Torquato Jardim, classificou o combate ao crime no Rio de “guerra assimétrica” e afirmou que as Forças Armadas precisariam se adaptar à guerra com os traficantes que é desconhecida para eles. Afirmou ainda que “não há guerra que não seja letal”. Assim, o ministro ratifica este modelo de guerra e confronto e assume que vidas serão tiradas, que isso é aceitável.

Já o comandante do exército, General Eduardo Dias da Costa Villas Boas, afirmou que os militares precisam ter garantias para agir sabendo que não enfrentarão depois uma nova “comissão da verdade”, em alusão à comissão da verdade que investigou os graves crimes cometidos por eles durante o regime militar no país. Sua fala é muito grave porque mostra clara predisposição – ou intenção – de que os militares cometam graves crimes como execuções, tortura, detenções arbitrárias e que devem ter “sinal verde” para agir assim sem serem responsabilizados.

O Rio de Janeiro já vivenciou a presença das Forças Armadas e da Força Nacional em diferentes ocasiões e o resultado nunca foi positivo, com o registro de casos graves de violações de direitos. Em junho de 2007, a operação no Complexo do Alemão, com o apoio da Força Nacional, resultou em 19 pessoas mortas, algumas com fortes evidências de terem sido vítimas de execuções extrajudiciais de acordo com parecer elaborado por peritos independentes. Já em junho de 2008, militares do Exército que faziam a vigilância de um projeto federal no Morro da Providência foram responsáveis pela morte de três jovens, que foram entregues pelos próprios militares a uma facção criminosa. Entre 2014 e 2015 as Forças Armadas permaneceram por 15 meses no Complexo da Maré, um período marcado por conflitos constantes entre moradores e militares e que custou aos cofres públicos 600 milhões de reais de acordo com o Fórum “Basta de violência ! Outra Maré é possível”. A permanência das Forças Armadas na Maré não alterou o grau de violência na área e ainda hoje as famílias sofrem com a presença violenta do crime organizado e com operações policiais extremamente violentas.

A intervenção federal completou seis meses em agosto de 2018 confirmando que a militarização não é o caminho para reduzir a violência e tratar os desafios da segurança pública no Rio de Janeiro. A intervenção aprofundou o modelo de segurança pública baseado na lógica de guerra, de confrontos armados, sem estratégia, na ostensividade. Não atuou na investigação, na prevenção e na proteção da vida das pessoas. O aumento brutal do número de homicídios desde o início da intervenção federal, como demonstram os dados do Observatório da Intervenção, mostra ainda que o avanço da militarização, além de não diminuir a violência, aumenta as violações de direitos humanos. Isso significa o aumento do sofrimento das pessoas que já carecem de acesso a direitos básicos como saúde e educação, agravando a sua experiência de exclusão.

A presença e uso crescente das Forças Armadas em operações de segurança pode até trazer uma falsa sensação de segurança para alguns grupos nas cidades, mas isso não é verdade para os moradores das favelas. Não é a resposta adequada à crise da segurança pública e resulta em mais violações de direitos. Os estados e o governo federal deveriam trabalhar por um Plano Nacional de Segurança Pública que se concentre na prevenção e não na repressão, que proponha medidas estruturais que passem pela desmilitarização e reforma das polícias e que rompa de vez com essa lógica falida da chamada “guerra às drogas”.

As Forças Armadas e os militares que estiverem atuando no policiamento ou em operações de segurança pública devem seguir todos os protocolos internacionais de uso da força e seguir rigorosamente a legislação e diretrizes de direitos humanos e o devido processo legal. Quem atuar de forma ilegal e violar direitos humanos deve ser prontamente investigado e responsabilizado na justiça comum.

É preciso, por fim, que as políticas públicas foquem no tema da violência letal, na redução de homicídios e em outros crimes violentos. Para isso, é preciso considerar os seguintes elementos : investigação, controle de armas de fogo (não apenas apreensão, mas desmantelamento da rede) e foco na proteção das princípais vítimas (jovens negros). Só assim vamos conseguir romper com o ciclo de violência e a tendência de militarização da segurança pública no Brasil.