Consta que o presidente estadunidense Richard Nixon teria dito ao colega brasileiro Emílio Médici, num encontro reservado, para justificar o apoio dado ao golpe e consolidação da ditadura militar, a frase “para onde o Brasil for, o resto da América Latina irá”.
De fato, o golpe de 1964, com todo o planejamento e envolvimento de aparatos estratégicos estadunidenses, como hoje restou comprovado, foi o precursor de uma sequência golpista que se reproduziu no ano seguinte na Indonésia e em diversos países de nosso continente. Materializou a grande estratégia de Estado dos EUA, deixando marcas profundas, especialmente em nossa região. Os que acharam que o golpe militar era um mero evento passageiro, retomando o curso democrático em 1966, pagaram caro pelo erro. Inclusive, inúmeros apoiadores civis do golpe, como Carlos Lacerda, Adhemar de Barros e Magalhães Pinto.
O aparato de Estado usado em todos estes golpes foram as Forças Armadas, derrubando governos democraticamente eleitos, com todas as consequências repressivas que até hoje lutamos para conhecer.
Em seu livro Os Estados Unidos no desconcerto do mundo, o professor da Unicamp, Sebastião Velasco e Cruz, desenvolve o conceito de uma grande estratégia de Estado que determina decisões políticas internacionais para além do revezamento entre presidentes republicanos ou democratas. Os golpes militares nas décadas de 1960 a 1980 foram pautados por uma estratégia de Estado dos EUA que se fundamentava na lógica da Guerra Fria. Durante um longo período, as suspeitas de envolvimento estadunidense eram acusadas de mera teoria conspiratória.
Somente em 1981, 17 anos após o golpe militar no Brasil, é que veio à tona uma análise fundamentada demonstrando que o envolvimento estadunidense não era uma “teoria conspiratória”. O livro de René Armand Dreifuss, 1964: A conquista do Estado (Ação política, poder e golpe de classe), apoiado em ampla documentação, coletava provas irrefutáveis sobre a criação de institutos como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), atuação e lobbies de financiamento para a eleição de deputados golpistas desde 1962 e toda a atuação na campanha de cerco e desestabilização do presidente João Goulart. Desde então, inúmeros outros documentos oficiais seguem sendo revelados, permitindo aferir o grau de planejamento e as minúcias do envolvimento de estrategistas estadunidenses nas ditaduras militares em nosso continente.
No entanto, a atual ofensiva patrocinada pela mesma conjunção de forças econômicas, classes e frações de classe envolvida nos golpes das décadas de 1960 e 1970, apesar dos vários elementos comum, como a utilização da alta classe média como base social (que acaba conduzindo a classe média como um todo) e do tema da corrupção como pretexto mobilizador, tem sua principal diferença no aparato de Estado envolvido. Já não são os militares, mas parcelas da polícia federal, do ministério público e do Poder Judiciário, que representam o braço estatal do golpe tendo como centro articulador um poderoso e concentrado grupo midiático.
Por que não mais os militares? É sem dúvida um tema a ser aprofundado. Por ora, destacamos três hipóteses principais:
1) o desgaste internacional de um golpe militar clássico gerando um previsível isolamento internacional, obrigando o posicionamento de órgãos multilaterais, bem como, possíveis retaliações econômicas e posicionamento contrário, ainda que formal, até mesmo dos EUA;
2) o abalo da autoimagem construída pelos EUA como supostos defensores da democracia, utilizada em todas as suas intervenções mesmo quando baseadas em forças militares (Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria);
3) os militares brasileiros não são confiáveis para implementar o programa privatista e de desmonte nacional que interessa às classes e respectivas frações que efetivamente patrocinam o golpe. Mesmo projetos de caráter estratégico para os militares como o Satélite Espacial Geoestacionário de Defesa e Comunicações Estratégicas (SGDC) e a construção de submarinos nucleares foram interrompidos. [1]
Estamos enfrentando um novo processo que já começa a ser chamado de “golpes do século XXI” ou neogolpismo. Experimentado em Honduras, Paraguai, enriquecido com experiências adquiridas na Geórgia e Ucrânia, mas tendo seu modelo mais aperfeiçoado em nosso país. As forças armadas seguem mantendo um papel auxiliar, como reserva e eventual suporte, não mais como agente principal. Compreender esse processo, sua dimensão e impactos sociais e estruturais, bem como, seu provável roteiro é fundamental para enfrentar um novo período histórico que ele tenta estabelecer.
Há um modus operandi, cada vez mais reconhecível, visível até mesmo em fotos da “Primavera Árabe”, Ucrânia, Venezuela, recentemente na Nicarágua, que nos trazem à memória inclusive determinados episódios de 2013 em nosso país. Os novos golpes se inserem numa ofensiva que integra o esforço da grande estratégia estadunidense para manter sua hegemonia política, econômica e militar.
Desde já, podemos vislumbrar vários elementos comuns, como o manual golpista de Gene Sharp para solapar a estabilidade e a força econômica, política e militar de um Estado, o fornecimento de informações capturadas através da Agência Nacional de Seguridade (NSA), os convênios e parcerias firmados entre o FBI (unidade de polícia do departamento de Justiça dos EUA) e as polícias federais (que, no Brasil, além dos diversos acordos com a Polícia Federal abrange também o Ministério Público) e articulações investigativas conjuntas no âmbito da Associação Ibero-Americana de Ministérios Públicos. [2]
Tracemos como paralelo que nas ditaduras das décadas de 1960 e 1970, militares eram enviados para treinamento em Fort Bragg (Califórnia), Fort Leavenworth (Kansas) e na Escola das Américas (Panamá). Agora, os eventos formativos e de cooperação nos espaços das articulações e convênios dos ministérios públicos e aparatos policiais cumprem um objetivo similar.
Incumbe recordar que nas informações vazadas pelo Wikileaks, em 2013, evidenciou-se que NSA tinha um importante monitoramento do governo brasileiro. Durante um determinado período chegou a ser o principal [3]. Tal fonte de informações também alertava para a intensa atividade das relações de cooperação desenvolvidas por setores da Polícia Federal, Ministério Público e judiciário com órgãos de segurança e investigação dos EUA, intensificando-se a partir de 2009.
Destaquemos que o aspecto parlamentar dos novos golpes, que consuma a substituição do governo pela via não eleitoral, é um período decisivo, mas momentâneo, já que o processo golpista prossegue construindo medidas amparadas juridicamente para violentar uma provável oposição eleitoral e solapar a resistência social. Os agentes principais do neogolpismo não são os parlamentares, mas as parcelas de forças policiais, Ministério Público e do Poder Judiciário, articuladas com o monopólio midiático, pelos interesses de classe da frente neoliberal. É preciso ter a clareza desta característica.
Na medida em que as forças golpistas se apropriam – especialmente através da pressão midiática – da maioria dos integrantes da principal corte de justiça, asseguram interpretações partidárias da Constituição, garantindo o controle político e prescindindo da disputa democrática. Para tanto, contam com os interesses corporativos do próprio Poder Judiciário, bem como sua composição de classe. Afinal: “O controle político da Suprema. Corte é crucial para garantir impunidade dos crimes cometidos por políticos hábeis. Ter amigos na Suprema Corte é ouro puro”. A frase é de Liliana Ayalde, que era embaixadora dos Estados Unidos no Paraguai quando ocorreu o golpe contra o presidente Lugo. Foi transferida ao Brasil, em dezembro de 2013, quando a Operação Lava Jato começa a ganhar relevância e permaneceu até a consumação do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff.
Uma comparação com a atual situação política em El Salvador revela a identidade do método e até mesmo o uso de depoimentos obtidos nas delações premiadas de Curitiba. É o que a direção da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) qualifica de “intento de produzir un golpe brasileño en nuestro país”. [4]
Nos atuais golpes, as representações políticas são descartáveis. O que importa é assegurar o conjunto de medidas, principalmente econômicas, que beneficia a conjunção de classes e frações do golpe. Se para consumar seus objetivos o custo for o de cortar as cabeças que sempre foram representantes históricos do grande capital rentista, não haverá nenhum pudor. O que importa é dar seguimento e aprofundar as medidas econômicas e políticas que chamaremos, para efeito didático de “o programa do golpe”.
A estratégia estadunidense já não aposta em Estados fortes, que cumpriram um papel de contenção do avanço do campo socialista na Guerra Fria. Os atuais golpes querem que as margens de decisão política se tornem cada vez mais estreitas e possam ser exercidas somente se não afetarem as bases determinantes da política e economia. Estados fracos e aprisionados na blindagem do neoliberalismo. Desenvolvem um novo formato repressivo no qual a criminalização busca sempre construir uma vala comum: a improbidade.
Apoiando-se centralmente no aparato judiciário, o novo tipo de repressão evita prisões em razão de lutas sociais, buscando criminalizar lutadores populares e seus aliados em crimes comuns, em especial a corrupção. As formas vão sendo aperfeiçoadas a cada nova megaoperação da Polícia Federal. Superdimensionamento de brechas efetivamente existentes, seletividade no tratamento, mecanismos institucionais de coação de testemunhas e outros acusados, teoria do domínio do fato, destruição pública da imagem, construção da narrativa de desmonte de “uma imensa teia de corrupção que sangrava o país”. Um amplo arsenal que vai se consolidando através de parcelas do Poder Judiciário, alimentado pela mídia, que ao ter cumprido suas tarefas centrais – impeachment de Dilma e prisão de Lula –, pode prosseguir mesmo enfrentando baixa popularidade, fazendo que nossos meios usuais de denúncia, escrachos e atos públicos tenham pouca ou quase nenhuma eficácia.
Este novo formato repressivo, se complementa com medidas que esvaziam as fontes de custeio do movimento sindical, como o fim abrupto da contribuição compulsória. Da noite para o dia, centenas de direções sindicais assistem o desmonte de sua estrutura, lançando-se desesperadamente na sobrevivência de seus aparatos, em detrimento da resistência ao golpe.
Evidente que prosseguirá a repressão clássica, criminalizando lutas e militantes, bem como um estímulo a grupos reacionários e possíveis ações paramilitares. Impulsionada pelo discurso fascistizante de ódio, alimentado no bojo do fortalecimento ideológico de grupos de extrema direita, seremos obrigados a pautar o tema da autodefesa para lidar com ataques cada vez mais ousados.
Sem compreender a dinâmica e a profundidade da ofensiva em curso, seguiremos tratando o golpe como um episódio superável, seguindo na mesma lógica de um período anterior, sem compreender as mudanças em curso.