Emergência da extrema direita e ameaças à democracia no Brasil

Três vertentes do voto Bolsonaro

, por TIBLE Jean

Bolsonaro conseguiu constituir-se como o canal político dos protestos pelo impeachment de Dilma. Os tucanos não reconheceram a derrota de outubro de 2014, pediram recontagem dos votos e entraram com ação no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Paralelamente a isso, protestos foram convocados no fim do ano, reunindo em São Paulo alguns milhares (número já expressivo). No início de 2015, a partir de março, tais manifestações vão juntar dezenas e centenas de milhares e até milhões no Brasil todo, galvanizadas pelos erros do segundo governo Dilma (as medidas de austeridade que criaram uma perda de apoio social, entrada numa dinâmica recessiva e posteriormente levaram à perda da base parlamentar). Um trio tucano (Aécio, Aloysio Nunes e Alckmin) se aventurou num desses protestos e foi repelido. Já naquele momento quase todos os políticos eram rechaçados nessas manifestações – os Bolsonaro no Rio e em São Paulo, Ronaldo Caiado (então senador, agora eleito governador de Goiás) e João Doria (novo governador de São Paulo) eram dos poucos aceitos pelos presentes, de adoradores de Mises aos fanáticos da intervenção militar, passando pelos revoltados contra a corrupção.

É importante reparar sobre a composição dessas manifestações: participaram delas pessoas mais ricas, brancas e velhas que nas de Junho de 2013. Isso não as impediu de expressar um rechaço muito mais amplo ao Governo Dilma e ao PT e que se tornou majoritário naquele momento em quase todas as camadas da população. Tais protestos contra a corrupção são parte uma tradição na política brasileira, o udenismo, que já havia se ativado, por exemplo, contra Getúlio Vargas em 1954 e João Goulart em 1964. Essa raiva anti-corrupção era, como nos demais casos, um grito contra determinados setores sociais e sua representação política. Basta ver os escândalos de Michel Temer, com assessor correndo com mala de dinheiro, ministro com apartamento repleto de notas de dinheiro, gravações comprometedoras no palácio de madrugada com empresário – nada disso mobilizou os “verde-e-amarelo”.

Tampouco há uma total novidade no anti-petismo – nas últimas décadas numa base relativamente constante o PT capitaneou um terço de apoio e outro de rechaço, ficando mais um terço a oscilar dependendo da conjuntura. O que mudou foi a virulência dessa oposição e de sua mobilização nas ruas e nas redes. Tentativas anteriores de protesto não tinham surtido efeito, por ocasião do escândalo do chamado Mensalão e após um acidente de avião. Por qual motivo dessa vez pegou? As condições econômicas deterioradas abriram a porteira para uma maior generalização desse sentimento anti-corrupção e de total rechaço do sistema político: a causa da crise tornou-se a roubalheira – e não as opções equivocadas de política econômica e a abstinência de governar dos conservadores. Ao rechaço à corrupção, acoplaram-se discursos odiosos, de oposição à “ideologia de gênero” e a defesa da bandeira “escola sem partido” na qual Paulo Freire é declarado inimigo a ser eliminado. Num país com graves problemas na educação, o intelectual brasileiro mais traduzido no mundo torna-se o problema...

Dia 15 de março, milhares de pessoas marcharam em Copacabana para pedir pelo Impeachment da Presidenta Dilma Rousselff. Foto : Midia Ninja (CC BY-NC-SA 2.0)

Uma segunda vertente se expressa na ativação de práticas e ideais (neo)fascistas. A cena dos deputados Rodrigo Amorim e Daniel Silveira (eleitos dias depois) junto com o candidato (também vencedor) ao governo do Rio Wilson Witzel é digna dos anos 1930 na Itália e Alemanha. O odioso assassinato da vereadora Marielle Franco gerou uma comoção nacional e até hoje, mais de oito meses depois, não se sabe quem matou e mandou matar. Manifestações grandes, sobretudo no Rio e em São Paulo reuniram imediatamente dezenas de milhares de pessoas. Numa homenagem posterior, foi fixada uma placa no centro do Rio mudando o nome de uma rua para o de Marielle. Não é que esses propagadores do ódio (e futuros deputados) não só arrancaram essa placa como a quebraram e levaram para um comício em Petrópolis, exibindo-a como um troféu? [1]. Uma sinistra celebração da morte. Não estranha que uma das primeiras propostas de Witzel após sua eleição, junto com Flávio Bolsonaro, eleito senador, tenha sido a de abater imediatamente qualquer pessoa que estiver portando uma arma nas favelas, contrariando a Constituição que não permite pena de morte, ainda menos expeditiva.

Bolsonaro convoca um gestual do extermínio. O gesto que faz seus seguidores vibrar é o de imitar o uso de armas com as mãos. Ensina inclusive crianças a fazê-lo. É nesse contexto que o mestre de capoeira Moa do Katendê foi covardemente esfaqueado por trás por um apoiador de Bolsonaro após declarar voto em Haddad num bar em Salvador na noite do primeiro turno. E pipocam relatos de uma miríade de ataques violentos (um no qual dois homens rasgam um livro feminista que uma passageira estava lendo dentro de um ônibus no Rio). O candidato vencedor não condenou de forma contundente nenhum desses ataques. Há também diversos testemunhos de forças policiais se posicionando a favor de Bolsonaro – e de forma agressiva. Ou seja, essa candidatura incentiva sentimentos violentos e de aniquilamento. E isso ocorre num país, que teve mais de 60 mil mortes violentas no último ano, possui um histórico recente e longo de escravidão e de genocídios não-interrompidos (etnocídio indígena) e é, também, campeão em massacre de camponeses, indígenas, jornalistas, mulheres, LGTBQ+. Gerar uma onda assim num país com esse passado e presente é gravíssimo, onde já existe uma sólida tradição de violências (calcula-se, por exemplo, que um milhão de brasileiros nas últimas seis décadas participaram de linchamentos ou tentativas de linchamento).

Quando grupos grandes iam saudar Bolsonaro nos aeroportos antes da campanha começar, era frequente ele dizer que seu cartão de visitas para o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) seria um cartucho. Expressa uma movimentação forte na sociedade brasileira (e viralizando pelas redes sociais, sobretudo o whatsapp) e essa foi a primeira base de sua vitória. Trata-se de um movimento, não no sentido de um movimento social (isto é, organizado), mas que talvez passe a buscar formas de organização no futuro próximo (como milícia, movimento social, partido?). Em 2007, num auge lulista, um filme entusiasmou – Tropa de Elite, com o personagem do capitão Nascimento e sua mano dura policial. O capitão da reserva aguça esse fio repressivo (uma continuidade desde a fundação do Brasil). Numa de suas únicas atividades públicas de campanha no segundo turno foi visitar o BOPE (Batalhão de Operações Especiais) e afirmou que um deles chegaria à presidência. Terminou gritando “caveira!” (símbolo do batalhão), ecoando a sinistra frase fascista espanhola Viva la muerte. O sucesso dos programas policiais televisivos de onde jorra sangue é outro elemento importante desse cultivo dos massacres – José Luiz Datena, um dos mais famosos apresentadores, diria em 2011 que seu programa era reacionário, mas ele não (deve ter mudado) [2]. Não por acaso, uma das primeiras entrevistas de Bolsonaro ainda no hospital vai ser com Datena e após a vitória também; talvez entrevista não seja a palavra adequada, pois parecia mais uma conversa de amigos e parceiros.

Se a primeira vertente tem elo forte com a perda de prestígio de setores médios e altos na medida em que pobres conquistaram, na última década e meia, espaços antes privilegiados/brancos (alterando um pouco – ou um tanto – a desigual correlação de forças na sociedade brasileira), essa segunda reage a uma exuberância dos corpos mais livres e libertos de negros, mulheres, pobres e LGBTQ+.

Um terceiro vetor é o voto de mudança e revolta contra as várias crises que o Brasil está enfrentando. Creio que essa foi uma chave para a derrota da democracia esse ano. Um voto racional: tivemos tucanos no governo federal, depois petistas e a crise está aguda. Não é possível votar no Lula (cujo governo havia garantido melhores condições e possibilidades de vida), daí a escolha vai para o quem não é corrupto (apesar de alguns escândalos terem vindo à tona durante a campanha, ainda que não reverberando muito). Depois da direita e da esquerda, o antissistema. Se ele for mal, a gente tira ele como fez com a Dilma, ouvia-se frequentemente. Essa sobreposição de crises (política, econômica, social – e de caminhos mesmo do país) e a retirada de Lula da eleição permitiu esse rumo. Lula seria capaz de vencê-lo, mas outro candidato indicado por ele, não. Isso pode ser compreendido também pelo fiasco dos governos Dilma e tampouco Haddad conseguiu reeleger-se à frente da Prefeitura de São Paulo em 2016.

Batemos aqui em limites importantes dos governos petistas. Curiosamente, o PT no governo federal promoveu alguns curto-circuitos no sistema. Cumpriu seu programa e permitiu mais autonomia ao trabalho dos órgãos de investigação (Ministério Público (MP), Polícia Federal (PF), Procuradoria Geral da República (PGR)), mas adotou os meios tradicionais da política brasileira de financiamento de campanhas eleitorais e de formação de maiorias parlamentares. Fomentou igualmente novas lutas e subjetividades graças às políticas de distribuição de renda e de abertura de oportunidades existenciais, mas não apostou pra valer nessas e, pior, o Governo Dilma cortou ou diminuiu vários desses experimentos (pontos de cultura e micropolíticas culturais, indígenas, quilombolas e de agricultura familiar ou mídia alternativa) ao optar decididamente por uma macro política econômica tradicional e apostar nos empresários (que depois a abandonaram).

Conta-se que um dirigente petista, com forte atuação na área dos direitos humanos e condenado no caso do mensalão, teria sido interpelado por um preso, após sua chegada à cadeia em novembro de 2013: você foi deputado por duas décadas, certo? O que você fez para melhorar o sistema carcerário e as condições de vida dos presos? Já pensaram o que teria acontecido se o PT tivesse levado a sério a bandeira levantada pelo Movimento Negro Unificado (MNU) nas escadarias do Teatro Municipal desde o dia 7 de julho de 1978 em São Paulo de que todo preso é preso político? Apesar das reivindicações do movimento negro, nunca se considerou urgente o problema do extermínio dos jovens. Alguns setores da esquerda apontaram propostas para enfrentar essa epidemia, mas obtiveram pouco eco. Quem acabou falando mais das 60 mil mortes anuais nessa campanha foram os apoiadores de Bolsonaro (ainda que distorcendo sua dimensão e composição) e não os candidatos petista ou trabalhista. O Brasil de Lula embarcou também na onda de encarceramento em massa. A talvez bem-intencionada Lei de Drogas de 2006 visou diminuir a pena dos consumidores (e aumentar a dos traficantes), mas ao não especificar a quantidade de cada droga que demarcaria um do outro fez com que a decisão coubesse ao delegado e juiz num país onde o racismo estrutural segue forte. Resultado? Explosão do número de presos, colocados na escola do crime. Em algum momento teremos que fazer as comissões da verdade do período democrático.