Emergência da extrema direita e ameaças à democracia no Brasil

A Política Externa Brasileira II

, por GUIMARAES Samuel Pinheiro

O Brasil é uma economia subdesenvolvida, caracterizada por extraordinárias disparidades de renda e de riqueza; pelo atraso relativo de seu parque industrial; pela grande penetração das megaempresas multinacionais; pela reduzida diversificação de seu comércio exterior; por um setor financeiro superdimensionado; pelo mercado subdesenvolvido de capitais; pelo pequeno conhecimento dos recursos naturais; pelo fraco dinamismo tecnológico.

Muitas das características da economia brasileira são compartilhadas, em maior ou menor grau, pelos Estados vizinhos da América do Sul. A América do Sul é um continente subdesenvolvido, com enorme concentração de renda, exportador de produtos primários e importador de produtos industriais, com enormes disparidades sociais.

As características atuais da economia brasileira decorrem da longa permanência e da evolução histórica do regime da escravidão; da grande propriedade agrícola senhorial; dos vínculos das classes hegemônicas internas (e de suas elites dirigentes) com os sucessivos Impérios; com a aceitação das elites dirigentes da ideologia do sistema colonial sobre o que deve ser a “correta” divisão internacional do trabalho; da ideologia e da prática conservadora da Igreja Católica e de suas políticas de superioridade racial e de gênero e de obscurantismo científico.

Estes fatores históricos foram se transformando ao longo do tempo e assumindo novas formas, mas permanecem até hoje, em novo contexto internacional, em que se verifica e age a política externa.

Essa situação de subdesenvolvimento é agravada pelas tentativas permanentes de Estados desenvolvidos e do Império Americano de imporem políticas econômicas de natureza conservadora, como tem sido as advogadas pelos defensores dos princípios do Consenso de Washington (1989) e as “propostas” de política econômica dele derivadas.

Essas “propostas” defendem que o Brasil deve ter uma política econômica de total integração no comércio e no sistema financeiro mundial, com a abolição de qualquer barreira ao comércio (acordos de livre comércio etc.), de liberdade total para os fluxos de capital; de total liberdade para investimentos estrangeiros; de equilíbrio fiscal absoluto; de redução do Estado ao mínimo como se estas tivessem sido as políticas que teriam levado os Estados, hoje desenvolvidos, a seu estágio de desenvolvimento atual ou que eles as praticassem no momento atual.

O denominado “tripé macroeconômico” é a âncora do subdesenvolvimento brasileiro, ao impor limitações ao desenvolvimento e mesmo ao crescimento econômico.

O principal objetivo da política externa quanto à promoção do desenvolvimento econômico deve ser a negativa (hábil) de participar de qualquer acordo que limite as possibilidades de ação econômica do Estado em prol do desenvolvimento e a ação para limitar os efeitos dos acordos restritivos de que o Brasil já participa.
Exemplos de situações restritivas do chamado policy space são os acordos de livre comércio (sempre desiguais) com países altamente desenvolvidos; os acordos de promoção e proteção de investimentos estrangeiros; a OCDE e seus códigos etc.

O segundo objetivo econômico da política externa deve ser a diversificação da pauta exportadora do Brasil em termos de produtos e de mercados de destino, assim como a diversificação de sua pauta de fornecedores, em termos de empréstimos, de investimento de capital e de transferência (e absorção) de tecnologia.

Este objetivo é essencial para evitar os efeitos da flutuação especulativa dos preços de produtos primários, enfrentar o surgimento de concorrentes, de substitutos etc. e as pressões políticas a que estão sujeitos países que tem suas relações externas concentradas em poucos produtos e parceiros.

O objetivo nacional de reduzir as injustiças sociais deve receber o apoio da política externa pela defesa de políticas sociais inclusivas, patrocinadas por organismos das Nações Unidas, pela condenação, na Assembleia Geral da ONU, de práticas discriminatórias contra minorias, de defesa do não uso político dos direitos humanos, pelos direitos dos imigrantes e dos refugiados.

O objetivo de reduzir as injustiças sociais não deve em nenhum momento levar a julgamentos unilaterais pelo Brasil dessas injustiças em outros países que, muitas vezes como o Brasil, lutam contra elas com pequeno êxito. O princípio da autodeterminação e de não intervenção devem guiar sempre a política externa brasileira no que diz respeito a situações de injustiças sociais e de direitos humanos em terceiros Estados, tema muitas vezes manipulado pelos interesses das Grandes Potências e do Império Americano.

Assim, o Brasil deve rejeitar e condenar a aplicação de sanções unilaterais de Grandes Potências contra Estados subdesenvolvidos a pretexto de corrigir situações humanitárias, mas que, às vezes, as agravam e levam a justificar “intervenções humanitárias”, justamente das Potências e do Império que provocam aquelas crises humanitárias.

O objetivo nacional de defender a soberania deve ser procurado em duas esferas de ação da política externa.

A primeira esfera é a de ação nos organismos internacionais, a começar pelas Nações Unidas e seu Conselho de Segurança, que detêm o monopólio da força na esfera internacional e que, somente ele, pode autorizar o uso de qualquer medida de força (embargos, sanções, força etc.) contra qualquer Estado que não seja membro permanente do Conselho. Sanções unilaterais são, por definição, ilegais, como as aplicadas à Venezuela.

As dimensões de território, de população, de economia e de seu potencial, de seus problemas internos, fazem com que seja de extremo interesse a participação do Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança para defender seus interesses e para impedir ações contra sua soberania.

A reforma da Carta da ONU, para permitir a ampliação do Conselho, depende do voto de 129 membros (2/3 dos 194 membros) e da aprovação dos cinco membros permanentes atuais. Este resultado depende de uma ação permanente e presença política do Brasil em todos os Estados para obter seu apoio.

Esta presença brasileira será de extrema importância para obter apoio para as teses e as propostas apresentadas pelo Brasil nas discussões em conferências e reuniões internacionais, regionais, multilaterais ou temáticas (clima, floresta, etc.).

A segunda esfera de defesa da soberania é a construção de uma capacidade de defesa dissuasória de qualquer agressão; do desenvolvimento de uma indústria bélica autônoma; do desenvolvimento de uma doutrina estratégica de caráter brasileiro; do aperfeiçoamento, diversificação e “nacionalização” dos centros de treinamento de oficiais, do adestramento da tropa para combate de resistência a qualquer invasão.

Essas políticas são de longo prazo, dependem de permanência para ter êxito e não podem estar sujeitas a flutuações anuais de constrangimento orçamentário que se revelaram no passado a forma política mais eficaz de “matá-las”.

Os quatro objetivos da política externa tem de ser alcançados em um ambiente internacional dominado pelo Império Americano, pelas Grandes Potências dele auxiliares, e pela luta entre o Império e seus dois Adversários, a República Popular da China e a República Federativa Russa.

Ademais, essa disputa se verifica em um momento em que o Império Americano empreende uma verdadeira política de “reorganização” em grande escala do sistema internacional que criou após a Segunda Guerra Mundial e em que se verificam fenômenos transnacionais, como estagnação econômica, degradação do meio ambiente, transformação tecnológica na economia civil e na guerra, a financerização das economias mundial e nacionais, as ações de organizações criminosas internacionais, as migrações em grande escala.

Neste quadro, se torna de grande importância a aproximação e a cooperação do Brasil com os Estados que participam das negociações de acordos internacionais para enfrentar estes desafios e que tem interesses semelhantes, a começar pelos Estados da América do Sul e os Estados subdesenvolvidos em geral, inclusive para evitar que os custos de políticas “imaginadas” para enfrentar questões “transnacionais” venham a recair sobre os países periféricos, subdesenvolvidos, mais frágeis e com menos recursos, grupo em que se encontra o Brasil.

O alinhamento da política externa brasileira com os objetivos seja do Império Americano, seja com os objetivos dos Estados Adversários do Império será extremamente prejudicial ao Brasil.

As relações do Brasil com a China e a Rússia, Estados que o Governo dos Estados Unidos classifica como “malignos” e “inimigos” devem ser cautelosas, mas diversificadas e firmes assim como com Estados como o Irã, classificados de “rebeldes” e “párias”.

A política externa executada pelo governo de Jair Bolsonaro contraria todos os princípios que devem orientar a política externa brasileira para que esta possa contribuir para alcançar os objetivos nacionais, isto é, da maioria do povo brasileiro, de democracia, desenvolvimento, justiça social e soberania.

Assim, o alinhamento declarado, ostensivo, unilateral, sem reciprocidade, da política externa brasileira com os Estados Unidos, com Israel e Governos de ultradireita, não só não obtém o reconhecimento americano, que despreza os subservientes, como desmoraliza o Brasil como interlocutor face aos demais Estados.

Por outro lado, as declarações de ultradireita do Governo Bolsonaro sobre certos temas provocam o repúdio de Governos de Direita, como os do Chile e da Argentina, como até de lideres de extrema direita, como Marine Le Pen, na França.

As declarações do Presidente Jair Messias Bolsonaro, do Deputado Eduardo Bolsonaro, do Embaixador Ernesto Araújo, Ministro das Relações Exteriores, e de Ministros como Paulo Guedes, revelam desconhecimento e uma visão simplista da política internacional e dos objetivos que devem orientar a política exterior brasileira para reduzir as vulnerabilidades do país e defender seus interesses de curto, médio e longo prazo.

As contradições internas que geram e o ridículo das declarações torna cada vez mais ineficaz a ação externa e cada vez maior o desprestígio do Governo do Brasil no mundo. Parece que a realidade não consegue se impor às visões de fundo religioso e de Cruzada que imbuem a alma e inebriam o cérebro desses personagens.