Emergência da extrema direita e ameaças à democracia no Brasil

Introduction

, par ESTEVAM Douglas

A chegada de Jair Bolsonaro à presidência da república do Brasil nas eleições realizadas em outubro de 2018 representou uma ruptura e um acontecimento em parte inesperados no país. A relativa surpresa da vitória foi acompanhada de uma série de interpretações sobre a natureza e significado de seu governo e das forças sociais que ele representa. Prestes a concluir seu primeiro ano de mandato, as dificuldades e diferenças de interpretação ainda permanecem, decorrentes da incertezas e instabilidades sobre sua política e seu desenvolvimento futuro.

O resultado da vitória foi extremamente significativo. Eleito com mais de 57 milhões de votos (55,13% do total de votos), o discurso anticorrupção foi um de seus temas centrais durante a campanha. O primeiro ano de governo foi marcado pela de envolvimento de seu filho Flávio Bolsonaro, atualmente senador, e de parentes de sua esposa em casos de corrupção durante o mandato de Flávio como deputado pelo RJ. O Partido Social Liberal – PSL, partido pelo qual Bolsonaro foi eleito, se tornou um dos maiores partido do país. Os últimos meses foram marcados por denúncias e investigações sobre desvio de dinheiro durantes as eleições, as mesmas operações das quais o PT foram acusados. A crise gerou um ruptura de Bolsonaro com o partido, gerando ainda mais instabilidade nas representações políticas. Investigações da polícia levantaram um série de suspeitas sobre sua proximidade de Bolsonaro com as milícias que estiveram envolvidas no assassinato de Marille Franco.

No meio de todo esse caos que caracterizou o primeiro ano de governo de Jair Bolsonaro, ainda assim ele chega iniciará seu segundo ano de mandato com cerca de 30% de aprovação e como um dos favoritos para as eleições de 2022. Se a saída de Lula da prisão no mês de outubro de 2019 poderia representar um outro elemento para o cenário que se configura para as eleições, as primeiras pesquisas apontam ainda há muito trabalho a ser feito. Mesmo com todo o desgaste de Bolsonaro nesse primeiro ano, o antipetismo segue como algo consolidado e um elemento de fortalecimento da reação de direita.

Neste dossiê organizado pela ritimo, procuramos elencar um conjunto de análises que nos permita entender as bases sociais, econômicas, políticas e culturais que levaram Bolsonaro à presidência da república. Serão apresentados elementos que nos permitam avaliar o início de seu governo, as dinâmicas que o sustentam e as forças que devem configurar seu desenvolvimento.

Manifestação em março de 2019 contra Bolsonaro e pela libertação de Lula. Foto : Midia NINJA (CC BY-NC-SA 2.0)

Um dos primeiros traços que caracteriza a personalidade e a atuação de Jair Bolsonaro é sua passagem pelo exército, seu discurso em defesa da ditadura militar e dos militares, assim como da tortura. A grande presença de militares em seu governo é um importante mudança na vida política do país desde a redemocratização. Em outubro deste ano, além dele e do vice-presidente Hamilton Mourão, oito dos vinte e dois ministros eram militares e havia ainda outros 2.500 ocupando cargos de chefia ou assessoramento [1].

Os artigos do cientista político Jean Tible apresentam um síntese dos vários elementos que configuram o bolsonarismo, articulando uma visão de conjunto dos vários fatores que caracterizam o fenômeno. Alguns desses elementos são aprofundados em textos de outros autores em nosso dossiê. No primeiro artigo de Jean Tible, dividido em duas partes, são analisados os cinco principais pontos de apoio ao bolsonarismo. O primeiro deles é representado pelo militares que, como mostra o cientista, vinha ampliando o descontentamento e a oposição ao governo do PT desde que a ex-presidenta Dilma instituiu a comissão da verdade para apurar os graves casos de violação dos direitos humanos durante o período de ditadura no Brasil (1964 – 1985). O segundo setor de base do bolsonarismo se encontra em torno do judiciário, que desde as manifestações de 2013 passou adquirir papel de destaque na luta contra a corrupção, fortalecendo a imagem de Bolsonaro como o candidato da anticorrupção. O terceiro ponto de apoio de Bolsonaro são os setores evangélicos. Com forte presença social, a Frente Parlamentar Evangélica, que contava em outubro de 2018 com 180 deputados (de 513), declarou apoio. O quarto elemento analisado é o apoio do setor econômico, representado principalmente pelos liberais na figura de Guedes, com a redução dos direitos trabalhistas sendo uma das principais pautas desse grupo, assim como as privatizações. O quinto ponto analisado é o da geopolítica, retomando desde os casos de espionagem da NSA sobre a presidente e a Petrobras, vazados pelo Wikileaks, as relações do ministério público e de setores do judiciário com setores do EUA, o financiamento de novos grupos de direita, o alinhamento com Steve Bannon e com Trump. 

Na segunda reflexão de síntese feita pelo professor Jean Tible são reconstituídas as três vertentes do voto Bolsonaro. A primeira vertente desses votos, que começou a se configurar nas manifestações de 2013, é determinada por uma posicionamento seletivo em relação à anticorrupção, acompanhada de uma atitude antipetista e de rechaço ao campo político em seu conjunto. A segunda vertente, que ganhou mais evidência durante o período eleitoral, é a nomeada fascista ou neofacistas. O discurso de ódio e violência, os atos de incitação à morte proclamados por candidatos ligados a Bolsonaro, abriram espaço para os questionamento sobre o caráter fascista de seu governo. O terceiro vetor do voto bolsonarista foi uma resposta às diversas crises que assolavam o Brasil e que se expressaram num voto anti-sistêmico.

Uma analise em perspectiva histórica mais ampla da consolidação das forças de extrema-direita e bolsonaristas no Brasil nos é apresentada por Camila Rocha, pesquisadora de um dos mais importantes institutos de pesquisas do Brasil, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – CEBRAP. Rocha recupera os principais momentos que levaram à consolidação de uma nova direita no Brasil, fenômeno que se processou entre 2006 e 2018. Esse processo, articulado com o surgimento de um novo fenômeno populista de direita, a partir de 2014, configuram, na análise da pesquisadora, um face determinante do bolsonarismo. O avanço em políticas compensatórias e as medidas de inclusão representadas por cotas que caracterizaram os governos petistas, assim como as questões de diversidade sexual e de gênero, alcançaram importância cada vez maior no debate público. Emergiu nesse contexto um movimento de defesa dos valores tradicionais que ganhou amplos setores populares que não se sentiam representados pelas forças sociais tradicionalmente caracterizadas no campo progressista. Essa situação gerou a base para as “guerras culturais”, como analisa a socióloga, resultando em limites também para o defensores desses direitos em seu diálogo com os setores populares.

Para aprofundar a análise da complexidade da questão religiosa, fator de grande importância na composição do eleitorado de Bolsonaro e na vida política brasileira, representado pelo crescimento constante de grupos parlamentares religiosos, selecionamos um estudo do psicanalista e pesquisador do Instituto Tricontinental Marcos Fernandes intitulado o Tsunami pentecostal brasileiro. Ele apresenta a importante mudança no perfil religioso da população brasileira nas últimas três décadas, período de consolidação do modelo neoliberal. A força social das igrejas encontra-se em uma resposta concreta à necessidades de ordem subjetiva e objetiva surgidas do esfacelamento e enfraquecimento dos laços de sociabilidade e vida comunitária. A expansão e a influência crescente dos pentecostais tornaram-se um fator de grande importância na sociedade brasileira e nos rumos políticos do país.

A questão da violência foi outro dos centrais temas explorados por Bolsonaro em sua campanha política e que caracteriza seu governo. A flexibilização no porte e uso de armas foi ampliada em seu governo. Um modelo de segurança pública militarizado, com uso crescente das forças armadas, contando com o apoio cada vez maior de parlamentares, e o Estado se apresentando como agente da violência foi acentuado no contexto de crise política que o país vive. O argumento principal utilizado pelo Estado é a guerra contra as drogas. Jurema Werneck analisa como essa política de segurança militarizada e de luta contra o tráfico de drogas foi realizada no RJ, abordando os seus limites e impactos, principalmente para a população pobre e negra das periferias. Ela faz um histórico das várias ações de ocupação militar no RJ. Partindo dessa análise, encontramos elementos que demonstram uma lógica que se estabeleceu no Brasil nos últimos anos em várias cidades que pode ser caracterizada como o aprofundamento do modelo de guerra. As principais vítimas desse modelo são os jovens negros.

O campo comunicacional também foi marcado por importantes transformações em relação ao histórico recente do país. Desde a redemocratização do Brasil, nos anos 1980, a mídia desempenhou um papel determinante na opinião pública. Como analisa Ana Mielke, a liberdade de comunicação é um direito fundamental das sociedades democráticas. Desde as eleições de 2013 a grande mídia teve um papel de extrema importância nas mobilizações de direita, na inflação do discurso anticorrupção e na efetivação do golpe que resultou na destituição da presidenta Dilma. A histórica concentração da mídia no Brasil tem grande influência na democracia e consolidação de grupos políticos. No entanto, aqui também encontramos rupturas na atuação do governo federal em relação ao histórico da recente vida democrática do país. Contando com o apoio da TV Record, de propriedade da igreja, Bolsonaro atacou a grande mídia tradicional, entre elas poderosa Rede Globo, a mais importante do país. Bolsonaro também não poupou os principais jornais impressos como a Folha de São Paulo e o Estadão.

O avanço do bolsonarismo se inscreve no contexto da crise econômica que assola o Brasil e da crise social e política que se consolidou a partir de 2013. O afastamento da presidenta Dilma Rousseff em 2016 significou um momento central de um movimento que alguns analistas classificaram como golpe [2]. O advogado Ricardo Gebrim analisa as novas formas de intervenção aplicadas em alguns países da América Latina que vem sendo chamadas de “golpes do século XXI” ou neogolpismo, caracterizadas por uma atuação jurídica a parlamentar, e como elas foram implementadas no Brasil.

Seguindo nas análises que partem da crise econômica e política, Tatiana Roque, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, aborda o avanço da extrema direita no Brasil como uma resposta anti-sistêmica em um contexto de fragilização da democracia brasileira. A efetivação do golpe parlamentar, o avanço conservador no Brasil, em sintonia com a que acontece em outros países do mundo, resulta também, segundo a autora, dos limites da atuação dos governos de esquerda representados pelo PT.

Complementando nossas análises, selecionamos dois artigos que tratam das questões de geopolítica e de política internacional. Um dos pontos de maior importância no debate político e econômico na última década no Brasil se deu em torno das reservas de petróleo conhecidas como pré-sal. As descobertas feitas pela empresa brasileira de petróleo Petrobras em 2008, ano em que eclodiria a crise financeira mundial, elevou o país a sétima potencia mundial nas reservas do recurso. Desde então iniciou-se uma série de polêmicas e disputas em torno da exploração do produto. O governo Lula havia proposto um marco regulatório que asseguraria maior controle da empresa brasileira sobre as reservas, cujos impostos seriam destinados para políticas sociais (o governo chegou a anunciar a destinação de em 10% dos recursos do pré-sal para a educação). Conforme ficou demonstrado pelas revelações do Wikileaks, desde então iniciou-se um série de casos de espionagem industrial, roubos, articulações políticas, espionagens da NSA, operações de criminalização da empresa e diversas outras iniciativas visando possibilitar o enfraquecimento do controle nacional sobre os recursos e criar as bases para a privatização dessas importantes reservas internacionais. O estudo dos pesquisadores ligados ao Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis - (INEEP) reconstituem o percurso desse processo que já resultou na privatização de vários setores da empresa. O atual governo Bolsonaro iniciou um plano de privatização de oito refinarias e serviços coligados, representado a venda de estruturas responsáveis por 50% do refino feito no país. [3]

O papel de destaque que o Brasil tinha assumindo na política internacional no período do governo Lula foi desestruturado e o país, sob controle do presidente Bolsonaro, busca reverter os marcos políticos constituídos durante os governos petistas. Um dos protagonistas da elaboração e implementação da política externa dos governos de Lula, o embaixador Samuel Pinheiros Guimarães, examina a mudança de orientação do governo Bolsonaro em instâncias como Unasur, Mercosur, Brics, o abandono de políticas de fortalecimento e parcerias com os países do sul e as determinações de uma política externa soberana renegada pelo atual governo.

O primeiro ano do governo Bolsonaro foi marcado por uma série de incongruências, medidas autoritárias, lances midiáticos, denúncias de corrupção, permanência da crise econômica e instabilidade na vida política. É difícil estabelecer previsões sobre o desdobramento de seu mandato. Várias possibilidades são elencadas por diferentes analistas, desde uma suspensão da legalidade democrática e institucional passando por um fortalecimento de milícias, até uma reeleição do próprio Bolsonaro ou de um representante seu para as eleições presidenciais de 2022. O conjunto de análises reunidas neste dossiê RITIMO nos fornecem as balizas e premissas para abordar com profundidade os acontecimentos futuros da vida democrática no Brasil.