Os bens comuns, modelo de gestão dos recursos naturais

Sementes: os direitos coletivos dos camponeses, dos jardineiros e das comunidades contra os direitos de propriedade intelectual

, por Confédération paysanne , KASTLER Guy

O mundo da indústria química e sementeira desenvolveu uma série de dispositivos jurídicos e tecnológicos que têm por objetivo assumir o controle sobre a produção de sementes e, através disso, colocar todo o mundo agrícola sob sua dependência. Liberar a biodiversidade cultivada dessa lógica mortífera implica em situar novamente os camponeses, suas práticas e seus direitos no centro do debate.

Catálogo, certificação, COV e patente

Hoje, a aceleração da erosão da diversidade cultivada ameaça diretamente a capacidade que a humanidade terá de produzir seu alimento no futuro, principalmente no contexto da mudança climática, que impõe às plantas uma grande capacidade de adaptação. Ela é o resultado do monopólio de algumas multinacionais que querem controlar o conjunto da cadeia alimentar, desde a semente até os direitos dos povos de se alimentarem. As leis que elas impõem proíbem as sementes reproduzidas pelos camponeses em seus campos para substituí-las por alguns genes sintéticos marcados com o selo de sua propriedade intelectual. Mas o que é vivo não se dobra à padronização industrial. É por isso que as multinacionais sempre inventam novas regras mais complexas para suprimir a vida: é preciso ser forte para acompanhá-las, pois sua imaginação não tem outro limite senão sua rapacidade. No entanto, o plano delas cai por terra quando se torna visível, pois, nesse caso, todos redescobrem que a biodiversidade renasce a cada ano em que ela é novamente semeada.

A biodiversidade não se conserva e não se reproduz, ela se renova

Antes de ser um bem comum junto do qual coevoluímos, a semente é o órgão de reprodução de organismos vivos autônomos, as plantas. (...) Assim é a biodiversidade: sua renovação constitui a própria condição da vida, que desapareceria se todos os organismos vivos fossem semelhantes e incapazes de evoluir para se adaptar às evoluções de seu meio. Os grãos viajam, mas dão vida a plantas que não são móveis: uma vez enraizadas, apenas sua diversidade e sua grande variabilidade genéticas permitem que elas se adaptem à diversidade dos solos e dos climas. Por isso, os camponeses sempre adaptaram suas sementes ou mudas, retirando-as de suas plantações e, ao mesmo tempo, trocando entre si pequenas quantidades destinadas a renovar a diversidade e a variabilidade delas. Essas trocas geraram múltiplas variedades, bens comuns oriundos do trabalho e dos conhecimentos das comunidades rurais que as selecionaram e delas cuidaram.

A indústria contra a biodiversidade

O sistema formal de sementes substitui essas trocas pelo mercado de massa, que tem horror à diversidade. Ele apenas suporta lotes padronizados, homogêneos e estáveis. Um século de “aperfeiçoamento das plantas” respondeu a essa demanda com os métodos de seleção eugenistas em voga no último século: multiplicação de forma idêntica do indivíduo-elite e erradicação das plantas fora de tipo. Um novo ator substituiu o camponês na seleção e na multiplicação fora do campo dessas novas sementes-elite: a indústria sementeira, sustentada pelas indústrias agro-alimentares e de pesticidas. As variedades homogêneas são, de fato, indispensáveis às transformações industriais. E se as sementes são todas idênticas, os camponeses não podem mais adaptá-las à diversidade dos solos que eles cultivam: eles precisam homogeneizar essa diversidade com os adubos químicos e os pesticidas industriais para os quais elas foram selecionadas.

Os híbridos F1 e o catálogo de proibição das sementes camponesas

Para impor suas sementes, a indústria eliminou seu principal concorrente, que é a semente reproduzida todo ano com a colheita do camponês, recorrendo a duas estratégias, uma técnica e outra, jurídica. (...)
[Nos EUA, as indústrias sementeiras desenvolveram os milhos híbridos, com a patente como instrumento jurídico principal. Na Europa, as indústrias sementeiras basearam sua abordagem no Catálogo Obrigatório de Inscrição das Sementes e no Certificado de Obtenção Vegetal (COV). Hoje, com o desenvolvimento das biotecnologias que permitem submeter os vegetais aos interesses dos industriais, na maioria das vezes, o COV e a patente são combinados para se obter uma proteção total da propriedade intelectual sobre o organismo vivo.]

O patrimônio comum da humanidade desaparece no virtual digitalizado

O confisco dos recursos genéticos

A biodiversidade cultivada é a matéria prima das indústrias sementeiras. Entretanto, ao proibir as sementes camponesas, suas leis a ameaçam de extinção. É por isso que os Estados organizaram a colheita dessas sementes antes de elas desaparecerem. Em 1983, a FAO declarou que os “recursos fitogenéticos são um patrimônio comum da humanidade e devem ser preservados e estar disponíveis no interesse das gerações presentes e futuras”. As sementes camponesas de todos os campos do mundo tornaram-se, assim, um recurso de livre acesso para a indústria. Ao se tornar monetarizável no mercado da humanidade, também chamado de mercado mundial, esse patrimônio se torna alienável. De um lado, as sementes oriundas do trabalho e dos conhecimentos dos camponeses são decretadas comuns a todos, mas não comercializáveis quando existe um catálogo ou uma certificação obrigatória; do outro, a exploração comercial faz delas bens mercantis privatizados pela indústria sementeira graças aos direitos de propriedade intelectual.

Originalmente, as coleções públicas assim constituídas são acessíveis a todos. Mas aos pequenos camponeses não é fornecido nenhum meio que lhes permita ter acesso a esse tesouro colhido em seus campos. Pelo contrário, a confidencialidade da informação, a ausência de identificação que corresponda ao cultivo e as múltiplas barreiras administrativas proíbem que eles tenham esse acesso. Em 1992, na Convenção do Rio, os países do Sul, que abrigam a maior parte da biodiversidade mundial, reivindicaram uma repartição dos lucros oriundos da exploração comercial de seus recursos. A indústria sementeira se aproveitou disso para impor a eles o reconhecimento dos direitos de propriedade intelectual sobre o organismo vivo que gera esses lucros. De lá para cá, foram raras as patentes que não contornaram a obrigação de repartição, e todos os COV a contornaram, uma vez que eles não indicam a origem das variedades utilizadas. E todo mundo se aproveitou disso para situar as coleções sob a soberania dos Estados. Em nome do princípio do livre consentimento prévio, estes proíbem cada vez mais o acesso a essas coleções aoscamponeses cujos pais, no entanto, forneceram tudo que nelas está contido, sem receber a menor compensação; mas eles mantêm um acesso privilegiado para a indústria, sob o pretexto de que ela disponibiliza uma parte ínfima de suas próprias coleções. (...)

A biologia sintética ou a substituição do mundo natural pelo mundo virtual

Depois de ter selecionado por cruzamento natural plantas-elites e, em seguida, manipulado o genoma, a indústria começou a fabricar genes sintéticos com base em Originalmente, as coleções públicas assim constituídas são acessíveis a todos. Mas aos pequenos camponeses não é fornecido nenhum meio que lhes permita ter sequências virtuais digitalizadas em seus computadores. Os transgenes dos OGM são cópias aproximadas de fragmentos de genes naturais fabricadas por síntese química. A próxima etapa anunciada é a planta inteiramente sintética. Sob o pretexto de falta de dinheiro, os bancos de genes nacionais são abandonados, reduzidos a coleções de genes, digitalizados ou privatizados. Ao mesmo tempo, os centros de origem e de diversificação das principais plantas alimentares são metodicamente contaminados por OGM patenteados. Desde 2008, um “banco do apocalipse”, acessível apenas às multinacionais produtoras de sementes, conserva todas as sementes do mundo em blocos de gelo vindos de uma ilha norueguesa. Essas sementes congeladas nunca serão replantadas para conservar sua capacidade germinativa. A biologia sintética não precisa de grãos vivos, mas apenas das sequências genéticas digitalizadas, que podem ser retiradas dos grãos mortos e que ela reproduz por síntese química: é por essa razão que as multinacionais decidiram deixar morrer os grãos dos bancos?

Direitos coletivos e bens comuns das comunidades

Os direitos coletivos dos camponeses, dos jardineiros e das comunidades

A biodiversidade cultivada é um bem comum inalienável: herança das comunidades camponesas que a selecionaram durante milênios, nós a tomamos emprestada de nossos filhos. Até a recente aparição da indústria sementeira, todas as variedades cultivadas podiam ser reproduzidas e eram, antes de tudo, variedades locais. Elas foram todas selecionadas e conservadas numa região determinada, por uma comunidade humana determinada, respeitando direitos de uso coletivos, na maioria das vezes, não escritos, negociados dentro dessas comunidades: direito de conservar, ressemear e trocar as sementes segundo certas regras econômicas e sociais ou relativas às proteções contra os fluxos de pólen exógeno, ao consumo alimentar ou ao furto do estoque de sementes, às guerras, às plantas invasivas, à substituição das variedades adaptadas no nível local por cultivos momentaneamente mais lucrativos ou impostos de fora. A esses direitos, há que se acrescentar, hoje, a participação nas decisões relativas à gestão dos recursos públicos, o acesso às sementes dos pais fechadas em bancos de genes, a proteção contra as contaminações transgênicas, contra as sementes industriais subvencionadas, as deslocalizações e a biopirataria, a proteção dos conhecimentos dos camponeses ou das comunidades. Isso requer uma obrigação de informação sobre a origem e o método de seleção utilizado para toda e qualquer semente comercializada. Esses direitos não são nem direitos de propriedade nem direitos individuais, mas direitos coletivos de uso.

As características que podem identificar uma variedade camponesa não se reduzem aos seus caracteres morfológicos nem ao seu genoma digitalizado, mas dizem respeito, antes de tudo, aos seus caracteres agronômicos, gustativos, nutricionais, culinários, de adaptação às técnicas de transformação, culturais, religiosos, paisagísticos... todos oriundos de sua implantação territorial, social e econômica. Nenhuma variedade existe sem a comunidade humana que a selecionou e renovou. Reduzi-la às suas características morfológicas ou digitalizáveis, permitindo que ela integre um catálogo ou um patrimônio da humanidade desencarnado é o mesmo que separá-la dos outros caracteres ligados à sua implantação territorial, econômica, social e cultural para facilitar sua apropriação através do comércio anônimo e dos direitos de propriedade intelectual. Isso é uma negação dos direitos coletivos das comunidades que culmina com seu extermínio e com a destruição de seu meio econômico, social e cultural.

Nos países ricos, a maioria das comunidades rurais tradicionais desapareceu e foi substituída pela agricultura industrial. Mas, hoje, novas comunidades e redes estão surgindo, não necessariamente fixadas num território, mas ligadas por um modelo agrícola, econômico e social autônomo e relocalizado em torno de novas variedades camponesas que elas selecionam e renovam a partir de recursos das coleções públicas ainda acessíveis. Essas comunidades devem determinar as regras de uso de suas sementes. Enquanto essas regras não forem determinadas coletivamente, cabe a cada um de seus membros empenhar sua responsabilidade: ele vai obedecer às leis do mercado e ceder sementes a quem não saberá ou não poderá cultivá-las corretamente ou a quem favorecerá a biopirataria, a apropriação da variedade, a fabricação de OGM, a concorrência desleal que destruirá a comunidade que deu origem à variedade...? Ou ele decidirá que a variedade está estabilizada e é conhecida o suficiente para ser difundida sem riscos? Ou que ela é jovem e frágil demais ainda e que ele só pode ceder sua semente a quem for digno de cuidar dela e em quantidade tal que essa pessoa possa fazer isso corretamente?

Milho nativo. Oaxaca, México. Foto : Craig Hennecke (CC BY-NC-ND 2.0)

Esses direitos coletivos são inalienáveis, não mercantis: um direito de uso que é vendido pode ser comprado por um particular e se tornar privado. Eles são negociados, primeiro, dentro de cada comunidade, depois, entre as comunidades. A liberdade de comércio só pode ser considerada depois dessas negociações.

Sementes livres ou bem comum das comunidades?

A semente camponesa não pode fazer parte de um patrimônio da humanidade qualquer: a gestão dinâmica da biodiversidade não é administrada no nível planetário, mas no plano dos territórios e das comunidades. Ao contrário das variedades industriais padronizadas, as sementes camponesas utilizadas num território ou num modelo agrícola e social são selecionadas e multiplicadas nesse território e/ ou nesse modelo agrícola e social para poder se adaptar a ele naturalmente. Essas sementes podem circular de um território ou modelo para outro: isso permite renovar sua diversidade interna (despertando características que desaparecem em seu meio de origem), a diversidade do estoque de sementes no qual elas são introduzidas, ou dar origem a novas variedades adaptadas ao novo local e à cultura de seus habitantes. Mas, antes de serem desenvolvidas em grande escala num território novo, elas devem ser adaptadas a ele através de várias multiplicações/seleções sucessivas. As trocas de sementes camponesas exógenas são feitas em pequena quantidade, salvo cataclismo excepcional. Logo, o comércio dessas sementes ou é local ou se restringe a pequenas quantidades, contrariamente ao comércio mundial, que abastece o planeta todo com sementes industriais de milho multiplicadas no Chile, por exemplo. Hoje, as sementes são ou o bem comum de uma comunidade ou um produto industrial mercantil protegido por um direito de propriedade intelectual. As primeiras devem permanecer submetidas aos direitos coletivos de uso da comunidade que as cede e daquela que as recebe. As segundas não devem ser mais livres do que a raposa no galinheiro: sua circulação deve estar sujeita à avaliação e à aceitação pelas comunidades locais quanto a eventuais riscos para a saúde, o meio ambiente e os sistemas agrários e culturais locais. Os OGM e outras biotecnologias devem ser proibidos. (...)

Indo além da Convenção do Rio sobre a diversidade biológica, o TIRFPAA (Tratado Internacional sobre os Recursos Fitogênicos para a Alimentação e a Agricultura) reconhece a contribuição passada, presente e futura das comunidades autóctones e dos agricultores para a conservação dos recursos fitogenéticos, bem como seus direitos decorrentes dessa contribuição: proteger seus conhecimentos tradicionais, compartilhar as vantagens, participar das decisões nacionais sobre os recursos e conservar, ressemear, trocar e vender as sementes de fazenda. Mas a responsabilidade da implementação desses direitos é deixada aos Estados.

Essa abertura é uma simples propaganda ou traduz uma vontade verdadeira? Com a fábula do “COV que livra a semente da patente”, a propaganda da indústria relança, hoje, o conceito de patrimônio da humanidade para justificar uma nova campanha de coleta do conjunto da biodiversidade selvagem e cultivada e dos conhecimentos populares associados. De tanto cruzar em todos os sentidos os recursos disponíveis, ela chegou ao fim das inovações assim possíveis. Mas, hoje, ela se liberou da barreira das espécies e, como a farmácia, utiliza o conjunto dos genes oriundos da biodiversidade selvagem e cultivada. Para tanto, o conhecimento dos saberes associados permite que ela não trabalhe às cegas. Com a propaganda em torno das crises alimentar, climática e energética, seu projeto é se apossar de três quartos da biodiversidade mundial ainda selvagem do mesmo modo que ela se apoderou de um quarto da biodiversidade cultivada. Para além da apropriação brutal de terras, florestas, rios ou do subsolo, que é legítima, se consideramos que se trata de patrimônios comuns da humanidade e não das comunidades que neles vivem, essa expansão do confisco dos bens comuns passa por um deslocamento das patentes sobre os organismos vivos para a patente sobre os genes, os átomos, as nanopartículas ou os materiais PBG, bem como sobre os serviços tecnológicos de exploração da biodiversidade. (...)

Vamos semear a biodiversidade

Se os Estados traírem sua missão de serviço público autorizando o confisco e a destruição da biodiversidade, será urgente esvaziar os bancos para reconstruir em todos os campos do mundo coleções vivas e casas populares da semente sob a responsabilidade direta da sociedade civil. Não se trata de voltar à agricultura de nossos avós, ainda que as sementes deles sejam a melhor base para as seleções camponesas modernas. As aquisições de um século de aperfeiçoamento das plantas também podem ser valorizadas, contanto que elas não sejam dependentes dos adubos e pesticidas químicos, das energias fósseis ou de biotecnologias perigosas para o meio ambiente, a saúde ou a vida social. Mas a mudança só pode vir de um regime jurídico que exclua todo e qualquer direito de propriedade intelectual sobre os organismos vivos e sobre os conhecimentos e que reconheça o direito à soberania alimentar e os direitos de uso coletivos dos camponeses e das comunidades sobre suas sementes como restrições legítimas à sacrossanta “liberdade do comércio”. Esses direitos coletivos são a pedra angular da sobrevivência de um bem comum como a biodiversidade contra os direitos de propriedade intelectual e a liberdade de comércio, que a substituem por clones sintéticos oriundos do mundo virtual. Ninguém nos dará esses direitos, a sociedade civil organizada pode e deve tomá-los: para que a extinção programada da biodiversidade fracasse, é preciso, primeiro, semeá-la.

Ainda que para isso tenhamos que desobedecer!