Os bens comuns, modelo de gestão dos recursos naturais

Questões sobre os “bens comuns”

, por LIPIETZ Alain

Este artigo, tirado de uma intervenção apresentada no Fórum Social Mundial de Belém (janeiro de 2009), é reproduzido aqui com a gentil autorização do autor. Ele foi publicado em formato resumido no número de janeiro de 2010 da revista Esprit.

Comentando uma obra colectiva sobre os bens comuns oriunda das redes latino-americanas, Alain Lipietz ressalta o desafio da articulação dos comuns - entendido aqui como un certo tipo de relações sociais baseadas numa lógica de comunização - com as relações mercantis e com o Estado.

A obra coordenada por Silke Helfrich [1] é absolutamente notável. Não apenas pela profundidade teórica das sínteses, mas também pela variedade dos exemplos, dos estudos de casos de “bens comuns”: o patrimônio genético, os lagos, as florestas, o espectro eletromagnético, o saber indígena, a atmosfera, as técnicas da informática... Percebe-se bem que essa obra é o resultado do trabalho de toda uma rede, implementado por Silke em sua atividade de responsável pelo escritório regional da fundação Heinrich Böll na América Latina. Ainda que essa rede não tenha nascido propriamente no Fórum Social Mundial, ela é uma ilustração e um exemplo típico daquilo de que o FSM é capaz.

De minha parte, eu havia organizado um seminário no Parlamento Europeu sobre o mesmo tema partindo da pergunta: “Por que lutamos pela gratuidade, pela não patentitibilidade dos elementos de algoritmo nos softwares e, ao mesmo tempo, buscamos defender os povos indígenas contra a biopirataria, a pilhagem sem remuneração de seu conhecimento sobre a biodiversidade?” Esse livro esclarece esse debate de forma magistral.
Começarei por elogiá-lo tanto quanto eu puder, depois, formularei algumas críticas que se pretendem construtivas.

Os bens comuns, coisas ou relações sociais

Quais lições devem ser tiradas dessas muitas contribuições? Duas, fundamentalmente.
Os bens comuns não são coisas, mas relações sociais. Ou, para se mais exato, as coisas às quais eles dizem respeito (materiais ou imateriais, pastagem ou espaço dos conhecimentos) não são senão muito raramente res nullius, ou seja, bens que não pertencem a ninguém e que, portanto, podem ser superexplorados e destruídos. Aqueles que nós conhecemos e que, por isso mesmo, não são destruídos, sempre foram regulados quanto ao seu acesso e uso pelas relações sociais: formas de propriedade, de autoridade, regras consuetudinárias. O artigo do ecologista Garret Hardin, publicado em 1968 na revista Science, que tornou célebre seu nome, “The Tragedy of the Commons”, é, portanto, totalmente equivocado. O que ele escreve (sobrepastagem dos campos comunais) pode ter acontecido, mas, certamente, não por falta de regras consuetudinárias. Isso não impede que existam recursos comuns que se esgotam por falta de regulação, como os bancos de peixes ou a capacidade de reciclagem dos gases de efeito estufa pela atmosfera. Mas, em geral, a tomada de consciência sobre essa dilapidação acaba levando a sociedade a criar uma regulação.

Esses modos de regulação dos bens comuns são extremamente diversos, primeiro, porque eles se aplicam a recursos muito diferentes (dos bens mais materiais aos mais imateriais) e porque cada recurso pode ser administrado de diferentes maneiras. Os bens comuns são o reino da diversidade. O livro nos mostra exemplos dessa diversidade através de vários estudos de casos e sínteses.

Acrescentemos que os autores, cuja simpatia em relação aos bens comuns é evidente, não escondem que esse modo de gestão de um recurso não é a melhor solução, a mais eficiente em todas as circunstâncias, nem mesmo no que diz respeito à propriedade privada. Ou que, ao menos, seu modo de regulação pode necessitar ajustes sérios.

A etimologia profunda de “comum”

Mas não estou aqui para fazer publicidade desse livro, embora eu o considere um verdadeiro “textbook” para militantes e estudantes, mas sim para criticá-lo, ou seja, para ressaltar os pontos fracos e, assim contribuir para o avanço.

Minha primeira observação, o que mais me irrita, é a insistência da maioria dos artigos em considerar que a palavra commons é de origem inglesa e até mesmo anglo-saxã! Ela não é inglesa, mas francesa e, para se mais exato, normanda, o que é duplamente importante.

Quando os normandos de Guilherme, o Conquistador tomaram a Inglaterra em 1066, eles impuseram ali uma forma já aperfeiçoada de feudalismo. Evidentemente, eles se expressavam em francês, ou seja, numa mistura de palavras de origem latina e, secundariamente, germânica. No feudalismo, os bens coletivos ou de uso público têm dois nomes conforme seu proprietário: “comum” ou “comunal”, para a proprie dade dos camponeses, e “banal”, para a propriedade do senhor (essencialmente, o moinho, o forno de pão e as florestas). Assim, “comum” é um termo jurídico do feudalismo e um termo de origem latina.

Primeiramente, um comentário sobre seu caráter feudal. Ainda que os camponeses (servos ou livres) possuíssem terras em comum além da gleba à qual estavam ligados e as terras do senhor, nas quais eles deviam realizar corveias, essa possessão não os impedia de ter que dividir o fruto delas com o senhor sob a forma de tributo (a "talha”). A relação social de “comum” é articulada, supradeterminada e dominada pela relação feudal. Uma organização social como o feudalismo, assim como o capitalismo, nunca se reduz a uma única relação, ela é uma articulação de relações sociais, entre as quais algumas podem nos parecer mais “progressistas” que outras, sem deixarem de ser, ao mesmo tempo, auxiliares de uma forma de dominação.

E o “comum” é, certamente, uma das peças mais permanentes e, potencialmente, as mais progressistas de todas as formas de organização social. É aí que é preciso evocar a origem latina da palavra. “Comum” vem de munus, que significa, ao mesmo tempo, “dom” e “encargo”. Em outras palavras, receber um munus como dom é se ver “obrigado” a oferecer outro dom em contrapartida. Munus é, portanto, a expressão nodal daquilo que o grande antropólogo Karl Polanyi chama de “reciprocidade”.

Para Polanyi, existem três formas de socializar o trabalho dos indivíduos humanos: a troca (eu lhe dou para que você me dê), a redistribuição (o Estado tira de cada um para dar a todos) e a reciprocidade: eu dou, porque confio que, quando eu precisar,
a sociedade me dará. Da palavra munus deriva, evidentemente, “comum” (de “co”, que significa “com”): é o sistema dos dons e encargos que rege o que a “comunidade” tem em comum. Essa comunidade tem, em geral, um sistema de direção política que lhe é próprio: a municipalidade. “Cipal” vem de “caput”, que significa “chefe”, “cabeça”. Esse chefe tem a obrigação de agir com munificência, oferecer à comunidade socorro, festas e monumentos.

Karl Marx chamou de comunismo um modo de produção, superior ao socialismo (“a cada um segundo o seu trabalho”), regido pela regra “de cada um na medida de suas capacidades, a cada um de acordo com suas necessidades”. Do socialismo ao comunismo, passa-se, portanto, essencialmente, da redistribuição à reciprocidade. Marx, que entendia bem que a reciprocidade era muito anterior à troca mercantil e ao Estado (os quais não aparecem verdadeiramente senão ao cabo de vários milênios de revolução neolítica, na Suméria e no Nilo), falava de um comunismo primitivo e sonhava com um comunismo da abundância. Nós, por nossa vez, lidamos com comuns que, como vimos anteriormente, articulam-se com a dominação política (por exemplo, feudal) e com o mercado, na maioria das vezes, em posição dominada.

Houve, sim, uma “tragédia dos comuns”, mas ela foi o contrário do relato de Hardin. As terras comunais se estenderam com o desmatamento da floresta europeia até o início do século XIV. Quando a peste negra sobreveio, a Europa não tinha mais reservas para explorar segundo esse método, e a miséria era latente por toda parte. A peste, propagada pelas guerras feudais, aniquilou dois terços da população europeia. Esta levou dois séculos para se reerguer, mas as formas de valorização das terras haviam mudado: a revolução agrária, a rotação trienal e a estrumação dos solos não podia se satisfazer com as regras de gestão consuetudinárias que proibiam, de fato, que um camponês fertilizasse seu campo para colheitas futuras. Ela exigia regras de gestão muito diferentes e, de fato, a propriedade ou, ao menos, a posse privada das terras. Os camponeses mais ricos impuseram em seu proveito o “movimento das enclosures”.

Poder político e bens comuns

Outra dificuldade desse livro é que, implicitamente, ele opõe e até mesmo procurar isolar os bens comuns, com sua regulação pela reciprocidade, do Estado e do mercado. Infelizmente, isso é impossível no conjunto complexo constituído por toda e qualquer sociedade. Como acabamos de ver, um bem comum, como os prados comunais da Idade Média, estava subordinado a um poder político externo, o do senhor. O mesmo acontece com um oásis do Saara que regule a distribuição de seu poço: ele mesmo está inscrito em um Estado que o engloba, é dominado, eventualmente, por uma casta de guerreiros ou de mercadores caravaneiros etc.

Mais importante ainda, a regulação de um bem comum é, muitas vezes, confiada a um apêndice político, a um “Estado local”, seja ele um xamã, um cacique, um conselho de anciãos, uma municipalidade etc. Esses poderes políticos que regem os bens comuns podem ser, eles mesmos, extremamente hierárquicos. Por exemplo, a família, que é a comunidade de base mais antiga, está organizada, quiçá desde sempre, segundo as relações sociais patriarcais: dominação do pater familias sobre as mulheres e os homens mais jovens, das mulheres mais velhas sobre as jovens noras etc.

A interação de um bem comum numa sociedade mais ampla, situada sob a autori dade de um poder político de maior extensão coloca, evidentemente, a questão da pertença ao bem comum. Implicitamente, nesse livro, considera-se, por exemplo, que a Amazônia pertence, por um lado, aos povos indígenas que tiram dela seus recursos (sua biodiversidade) de modo sustentável e, por outro, à humanidade inteira, já que a Amazônia é um poderoso estabilizador do clima e uma reserva mundial de água doce. E o Brasil nisso tudo?

Quando, às vésperas da ECO-92, eu estava fazendo algumas conferências em Porto Alegre, vi pichadas nos muros frases como “A Amazônia é nossa. Yankees fora!”. Uma palavra de ordem que se dirigia às estrelas de Hollywood que foram levar seu apoio aos povos indígenas e à ideia da Amazônia como bem comum da humanidade. De fato, eu fiquei chocado com o fato de habitantes do Rio Grande do Sul, a maioria deles de origem italiana e alemã, pretenderem afirmar sua propriedade sobre a Amazônia, que fica a milhares de quilômetros ao norte! Todavia, tampouco estou de acordo com os colonos da “Meia-Lua” (piemonte amazônico da Bolívia) que pretendem reservar para si os ricos recursos em hidrocarburetos de seu subsolo, sem dividir os lucros deles resultantes com o resto da Bolívia, quando esses mesmos colonos desceram da Sierra há cerca de cinquenta anos, depois de terem explorado dela os minerais.

No máximo, poderíamos dizer que o subsolo da Meia-Lua pertence aos guaranis em virtude da Convenção 169 da OIT, mas nem essa convenção nem os artigos 15 e 8-j da Convenção sobre a Biodiversidade reservam a eles o acesso e a fruição exclusiva desse subsolo. O Estado é o “guardião” (custodian) dele e deve tratar de obter o consentimento previamente esclarecido da comunidade local se a ele conceder acesso, dividindo com essa comunidade os lucros dele provenientes. É o que chamamos hoje de “regime ABS” (Access & Benefit Sharing). A partir do momento em que o Estado existe como aparelho de redistribuição, é normal que os lucros resultantes da exploração de um recurso comum local sejam redistribuídos em escala nacional. Do mesmo modo, aliás, é normal que o Estado e a comunidade internacional assumam uma parte do fardo representado pelo “encargo” de cuidar, no plano local, de um bem comum de interesse global.

Bens comuns e relações mercantis

Como acabamos de ver, as regras de acesso, a divisão dos lucros e dos encargos de um recurso comum podem representar uma acumulação de interesses comunitários diversos, e os conflitos que disso podem assumirão, decerto, uma importância cada vez maior ao longo do século XXI. Acabamos de indicar, incidentalmente, um modo de designar essa divisão como divisão dos lucros. O que, implicitamente, articula a regulação dos bens comuns com as relações monetárias e, através disso, pode-se pensar, com as relações de trocas mercantis. As coisas são mais complexas.

Primeiramente, nem tudo que é relação de dinheiro é relação de troca mercantil. Uma multa por estacionamento irregular no espaço urbano comum não é uma relação mercantil! Do mesmo modo, o dote que acompanha a circulação das filhas ou dos filhos (segundo os regimes matrimoniais locais) não representa verdadeiramente uma venda dos filhos ou das filhas ou a compra de um marido ou de uma esposa (ainda que Jacó tenha tido que trabalhar muito tempo para Labão antes de se casar com sua filha, Raquel, isso designa mais relações patriarcais do que relações mercantis).

A reciprocidade tem uma palavra pra designar a forma de dom monetário que recompensa um encargo (munus): a re-mun-eração. A remuneração não é nem um salário nem um preço, mesmo que seja parecida com eles.

Tomemos, por exemplo, a forma atualmente mais direta, política e até mesmo burocrática de gestão desse bem comum que é a atmosfera e de sua capacidade de reciclar os gases de efeito estufa: a atribuição de cotas de emissão de gás de efeito estufa. Na União Europeia, essa atribuição é feita pelos Estados às diversas indústrias. Ela pode ser gratuita, mas também existem cotas pagas: vendidas em leilão ou adjudicadas (ecotaxas). Em seguida, as cotas podem ser trocadas, de modo que os que fizeram um esforço especial para reduzir sua poluição revendem suas cotas excedentes aos que não fizeram esse esforço. Poderemos dizer que dar cotas em função das poluições efetivas habituais (grand fathering, método do avô) é mais “comunitário” que colocá-las em leilão, o que equivaleria a “mercantilizar” a atmosfera? Os deputados europeus verdes consideram, ao contrário, que o primeiro método equivale a enrijecer os “direitos adquiridos” dos mais poluidores, tornando-os uma verdadeira “enclosure dos bens comunais”. Eles lutam, portanto, contra os governos produtivistas e de direita para que uma parte cada vez maior das cotas seja leiloada. Nesse caso, a compra de cotas deve ser considerada como uma multa sobre a poluição e a revenda de cotas liberadas pelo esforço de produzir limpo deve ser tida como uma remuneração.

Fórum Social Mundial 2009, Belém, Brasil. Foto : Nicolas Haeringer (CC BY-NC-SA 2.0)

Conclusão

Aquelas e aqueles que amam os bens comuns e a reciprocidade destacarão, com razão, os perigos que sua articulação necessária com a política e o Estado, com o dinheiro e as relações mercantis faz recair sobre eles. Essa prudência não deve conduzir ao isolamento dos bens comuns em relação ao resto do mundo, ao reino do Estado e do mercado. O Estado e o mercado não são cadáveres que podemos fechar num caixão e jogar ao mar. Eles continuarão, durante muito, muito tempo, contaminando e ameaçando com sua lógica fria as relações de reciprocidade, que têm por função regular os bens comuns, e tudo que podemos fazer é tentar reduzir sua importância. O que podemos esperar é fazer com que as relações de reciprocidade se tornem cada vez mais importantes diante das relações de troca e de autoridade.

O Fórum Social Mundial tem por divisa “Um outro mundo é possível”. Mais uma vez, trata-se da frase de um poeta francês surrealista e comunista, Paul Éluard. Não nos esqueçamos do verso que se segue a essa divisa: “Um outro mundo é possível / Mas ele está dentro deste”.

Notes

[1HELFRICH, Silke (org.). Genes, Bytes y Emisiones: Bienes Comunes y Ciudadanía. São Salvador/Cidade do México, 2008. Disponível em: HTTP://boell-latinoamerica.org/download_es/Bienes_Comunes_total_Ediboell.pdf (cf. as versões em alemão e inglês no fim do arquivo)

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Alain Lipietz é economista, militante do Les Verts, o partido verde francês, e foi deputado europeu entre 1999 e 2009.