Os bens comuns, modelo de gestão dos recursos naturais

Propriedade da terra: um questionamento conceitual agora incontornável

, por AGTER , MERLET Michel

Este texto é constituído de trechos de Políticas fundiárias e reformas agrárias, um documento global de propostas sobre essas questões.

A terra, por remeter a certo território, por abrigar recursos naturais, sempre encerra uma parte irredutível de "comun". A propriedade absoluta da terra aparece, portanto, cmo um mito prejudicial que deve ser substituído pela ideia de um conjunto de direitos sobre a terra de diversos tipos, associados a formas de gestão comun dos recursos.

A terra, um bem diferente dos outros

A terra tem, ao menos, duas especificidades:

  • 1. Os direitos sobre a terra relacionam-se com um espaço, um “território”. Não é possível destruir nem deslocar uma porção da crosta terrestre. Logo, a “propriedade” da terra não pode ser assimilada à propriedade de um objeto qualquer. De fato, os direitos sobre um território se referem às relações com os outros homens que podem transitar por esse espaço ou utilizar os recursos que ele contém.
  • 2. A terra tem como particularidade o fato de conter recursos naturais que não são o fruto de um trabalho humano. Assim, por exemplo, a fertilidade natural não é a mesma em todos os lugares; a cobertura vegetal “espontânea” também pode ser valorizada; o subsolo pode conter água, minerais... Isso não deixa de ser verdade mesmo que outra parte desses recursos possa provir também do resultado do trabalho acumulado pelas gerações de agricultores (a fertilidade não é apenas “natural”).

Os direitos sobre a terra se referem, portanto, às relações com os outros homens que podem transitar por esse espaço ou utilizar os recursos nele existentes. A relação dos homens com o fundiário é, assim, por essência, uma relação social, uma relação entre os homens em torno da terra. Por essa razão, a terra foi uma das principais categorias utilizadas pela economia política desde suas origens: as diferentes teorias da renda fundiária exprimem essa especificidade. [1]

No entanto, hoje, os direitos sobre a terra são vendidos e comprados em muitos lugares mundo afora. Assim, nesse sentido, a terra se tornou uma mercadoria, mas uma mercadoria que não pode ser assimilada às mercadorias que foram mesmo produzidas para serem vendidas. É por isso que, a partir de 1944, Karl Polanyi passou a falar de “mercadoria fictícia”.

A propriedade absoluta do solo, um mito que não é inocente

Em “La gestation de la propriété” [2], Joseph Comby explica que a propriedade do solo nunca pode ser absoluta: uma ideia simples, mas cujas implicações são de uma importância extrema. Mesmo nas sociedades que inventaram o direito de propriedade “absoluto”, este não pode ser aplicado ao solo. (Cf. direito de caça na França, por exemplo, em propriedades privadas, ou muitos limites impostos à construção pelas normas locais...).

O direito de propriedade, no que diz respeito ao aspecto fundiário, não é senão a propriedade de um direito ou de um conjunto de direitos; e um proprietário não é, entre todos aqueles que têm direitos, senão aquele que aparece como quem tem o maior número de direitos. Muitas hipóteses são, então, possíveis; os direitos podem se sobrepor ou até mesmo entrar em contradição. Este é o caso na África, mas também na maioria das sociedades “indígenas” e até mesmo, de um modo menos evidente, mas, no entanto, real, nos lugares onde a propriedade individual domina (Europa, América Latina). Ainda que os “títulos” fundiários sejam apresentados, na maioria das vezes, como o meio de fixar os limites das parcelas, é mais a natureza dos direitos que eles significam para aqueles que os detêm do que a superfície do terreno que lhes confere um possível valor de troca.

Se a propriedade absoluta não existe, teríamos que falar, então, de transformação de certos direitos sobre a terra em mercadoria e não da terra em si.

A “fábrica do diabo” [3]

Essas observações liminares nos permitem entender melhor por que o mercado e o desenvolvimento capitalista não conseguem “resolver” sozinhos os problemas fundiários no interesse da maioria. Surge daí um certo número de consequências totalmente fundamentais, ainda que, às vezes, evidentes.

Assim como a terra e os direitos ligados a ela, muitos outros bens, e, em particular, todos aqueles ligados aos organismos vivos, tampouco são verdadeiras mercadorias, no sentido empregado por Polanyi, cujos mercados poderiam se autorregular. Podemos encontrar fenômenos de renda sobre muitos bens, e os preços de muitas mercadorias não são fixados apenas pelos mercados, mas evoluem também em função das lutas sociais. Logo, os preços são também a representação de relações de forças.

Mato grosso, Brazil. Source : BBC world wide (CC BY-NC 2.0)

Por conseguinte, a tentação de tratar os fenômenos econômicos independentemente da sociedade, constituindo por si sós um sistema distinto ao qual todo o resto do social deveria ser submetido, não pode ser senão uma ilusão cujas consequências dramáticas e os perigos já patentes há 50 anos aparecem, hoje, sob formas novas e ainda mais preocupantes com os dogmas neoliberais e a globalização.

Essa loucura que Polanyi acreditava findada e que, segundo sua análise, fora a origem dos profundos desequilíbrios econômicos e sociais da primeira metade do século XX, com a crise dos anos 30 e a ascensão do fascismo, voltou ao primeiro plano e se estendeu ao planeta como um todo, fazendo pesar uma ameaça crescente
sobre o futuro da humanidade. [4]

Administração dos direitos fundiários e arbitragem dos conflitos

Se as relações com o fundiário são, antes de tudo, relações sociais, é lógico que aparecem contradições e conflitos entre pessoas e entre grupos sociais ao longo das evoluções históricas. Os conflitos são inelutáveis num sistema social, já que este não está fixado de modo definitivo, mas, pelo contrário, encontra-se em transformação constante. Eles podem ser até mesmo salutares ou necessários, como ressalta Etienne Le Roy, insistindo sobre o fato de que “o que é grave, num conflito... é o fato de ele não ser solucionado e poder degenerar em litígio, depois, em drama, ao ponto de se tornar mortífero”. [5]

Portanto, para não perdermos o essencial, devemos conduzir uma reflexão que possa ligar a apreensão das “formas de organização social no nível local” de modo permanente com a “consideração do fundiário”. Assim, é impossível abstrair os sistemas de direitos fundiários das instâncias encarregadas de sua atualização e das instâncias de arbitragem e resolução de conflitos.

No nível mundial, existem sistemas de administração dos direitos fundiários muito diversificados, que estão ligados a processos históricos específicos. Conforme os conjuntos culturais, as épocas, as modalidades de herança, mecanismos de redistribuição periódica da terra e das riquezas, a existência de direitos múltiplos etc... deram origem a sistemas de administração e de gestão do fundiário mais ou menos centralizados e cujos fundamentos não são idênticos. Essas diferenças também se encontram no próprio âmago dos países desenvolvidos e não correspondem de modo algum a uma demarcação entre sociedades desenvolvidas e subdesenvolvidas, ou entre modernidade e arcaísmo. Assim, na Europa, existem vários sistemas de publicidade fundiária, de Registros de Propriedade que podem coexistir sem que isso represente um problema insolúvel. [6]

Também existem sistemas de regulação de conflitos muito diferentes de acordo com as sociedades. (...) Contrariamente ao que é frequentemente admitido, não existe solução única e padronizada no nível mundial para os sistemas de informação sobre os direitos, nem no que se refere às instâncias de resolução de conflitos. (...)

Um questionamento conceitual agora incontornável

A “Tragédia dos comunais” é frequentemente evocada para justificar a necessidade de uma apropriação privada dos recursos, fazendo-se referência ao artigo publicado por G. Hardin em 1968. Segundo esse autor, todo recurso limitado cuja posse é coletiva tende a ser administrado de um modo não sustentável até o esgotamento de suas capacidades, pois cada um tem interesse em tirar dele o máximo de proveito antes que outro o faça em seu lugar. No entanto, o problema não é a existência em si de bens comuns, mas sim a ausência de regras e mecanismos para assegurar sua gestão em conformidade com o interesse geral.

Essa reflexão sobre a gestão dos bens comuns deve ser conduzida em diferentes escalas: nos níveis local, regional, nacional. Mas, hoje, é evidente que ela também deve se estender ao nível dos conjuntos regionais multinacionais e, às vezes, planetários. Nessa perspectiva, a questão fundiária constitui uma das grandes questões mundiais, já que muitos recursos do planeta são cada vez mais percebidos como bem comum e “patrimônio da humanidade”.

A questão da gestão sustentável dos recursos naturais vai além do âmbito estrito da reflexão sobre o fundiário e, ao mesmo tempo, é indissociável desta. Tanto os debates sobre a gestão concertada dos recursos nos países do Sul com as populações rurais (diante da impossibilidade de se limitar a uma política de conservação fundada em reservas e parques nacionais dos quais os homens são excluídos) quanto aqueles sobre a multifuncionalidade da agricultura nos países europeus atestam essa busca por novas modalidades e regras que se exprime, entre outros, pelo conceito de gestão patrimonial. [7]

Uma melhor segurança fundiária passa pela criação de novas capacidades sociais, por uma melhor estruturação das sociedades rurais e pelo aperfeiçoamento de instituições renovadas, e não pode ser obtida apenas através do aperfeiçoamento técnico dos registros dos direitos ou dos cadastros. Vendo as experiências que evocamos e as evoluções que estão ocorrendo, o que precisamos, de fato, é de um questionamento fundamental dos valores e conceitos que hoje dominam em matéria de propriedade para poder progredir e superar os obstáculos criados por sua inadequação às situações atuais. Como vimos, isso implica em abandonar a ilusão da propriedade absoluta e reconhecer no fundiário a existência, em todas as circunstâncias, de uma parte de bem comum que convém seja administrada com instâncias apropriadas.

Essa evolução conceitual está longe de ter sido adquirida, como provam os violentos debates e lutas no mundo todo entre sociedades civis, empresas transnacionais, governos e instituições internacionais. Importantes interesses privados continuarão a se opor violentamente a ela durante muito tempo ainda, e ela não poderá acontecer sem a existência de organizações camponesas poderosas, representativas e democráticas. Nesse sentido, o debate sobre os direitos de propriedade sobre o solo se integra na busca por uma verdadeira governança mundial. (...)

Construir instâncias comuns de gestão no nível dos territórios

Além dos direitos sobre a terra em sentido estrito, trata-se de poder administrar um conjunto de bens comuns e de poder considerar direitos múltiplos sobre um mesmo espaço. Tanto quanto a reforma agrária, a gestão sustentável dos recursos naturais (madeira, água, biodiversidade) não pode garantida apenas de modo descendente a partir das instituições de Estado.

A construção dessas instâncias participativas dos recursos nos diferentes territórios deveria constituir, portanto, um dos eixos de trabalho para os anos vindouros, e isso não somente nos territórios ditos indígenas, mas em todos os lugares.

Isto é, hoje, um desafio indissociável da instauração das políticas fundiárias. Ele está relacionado, aliás, com mecanismos da mesma natureza que aqueles que evocamos nos pontos anteriores: melhorar a capacidade da sociedade de estabelecer e aplicar as políticas de gestão dos recursos comuns.

Notes

[1É bem conhecida a importância da renda fundiária nos economistas clássicos (Ricardo, em particular); ela foi retomada e modificada por Marx. Lembremos em algumas palavras as definições essenciais dos dois conceitos-chave, a renda diferencial e a renda absoluta. A renda diferencial surge da venda, num mesmo mercado e por um mesmo preço, de produções oriundas de parcelas de terra que, numa mesma superfície e com a mesma quantidade de trabalho, não produzem, todas, a mesma riqueza. Uma parte dessas diferenças vem da fertilidade natural do solo, do clima, e outra parte resulta dos investimentos que foram incorporados ao meio: drenagem, irrigação, melhoria do solo etc. Assim, um proprietário pode reter esse excesso fazendo com que o explorador pague uma renda, e este aceitará isso contanto que o lucro que ele obtém continue em conformidade com o que ele poderia obter em outro lugar. A renda absoluta atende a uma lógica completamente diferente: um proprietário de terras, em razão de relações de força a ele favoráveis, pode exigir que seu fazendeiro lhe pague uma renda, e isso, teoricamente, mesmo no caso das piores terras, com renda diferencial nula. A economia neoclássica e a economia institucional têm abordagens distintas do fundiário.

[2In: LAVIGNE, Philippe (org.). Quelles politiques foncières pour l’Afrique rurale? Réconcilier pratiques, légitimité et légalité. Karthala: Coopération française, 1998.

[3A expressão é de K. Polanyi, op. cit.

[4Sobre esse tema, ver GEORGE, Susan. Une courte histoire du néolibéralisme: vingt ans d’économie de l’élite et amorce de possibilité d’un changement structurel. Conferência sobre Economia Soberana num Mundo Globalizado, Bangcoc, 24-26 de março de 1999.

[5LE ROY, Etienne. La sécurisation foncière en Afrique. Karthala, 1996, p. 280.

[6Citemos, por exemplo, o sistema do Livro Fundiário Germânico, em que os direitos são verificados por um juiz antes de serem registrados, e o sistema francês, que, ao contrário, baseia-se na forte presunção de direito que nasce da validação social sucessiva dos contratos entre indivíduos. Esses dois sistemas coexistem no território francês, o primeiro, nos departamentos do Leste e o segundo, no resto do país. Comunicação oral de Joseph Comby e Jacques Gastaldi, “Les systèmes d’information foncière”, in: Quelles politiques foncières pour l’Afrique rurale?, op. cit.

[7A esse repeito, ver os textos de Jacques Weber, Alain Karsenty, Etienne Le Roy in: Quelles politiques foncières pour l’Afrique?, op. cit.

Commentaires

Michel Merlet é diretor da associação AGTER, Améliorer la Gouvernance de la Terre, de l’Eau et des Ressources Naturelles. Ele realizou muitas missões de avaliação sobre as políticas fundiárias e a gestão dos recursos naturais em muitos países da América Latina, África, Europa e Ásia.