Os bens comuns, modelo de gestão dos recursos naturais

Rede de Vida

, por HELRICH Silke

Quando falamos dos “comuns””, do que estamos falando?

Um navio de cruzeiro faz escalas de porto em porto. No convés encontram-se algumas cadeiras do tipo espreguiçadeira, em número três vezes menor do que o de passageiros. Nos primeiros dias de viagem, as espreguiçadeiras mudavam de “dono” continuamente. Quando alguém se levantava, a cadeira era considerada vaga, pois as toalhas de banho e outros símbolos de ocupação não eram reconhecidos como tais. Essa regra se mostrou apropriada para aquela situação específica. E funcionou bem, porque era simples: o uso era gratuito, mas de curto prazo!

Isso nos leva diretamente a um dos princípios de uma economia e de uma sociedade que se baseia em bens comuns: Usar? Sim! Abusar? Não!
Dessa forma, mesmo em número limitado, as espreguiçadeiras não eram “recursos escassos”.

Mais tarde, depois de zarpar de um porto em que novos passageiros embarcaram, essa ordem sofreu um colapso. Os recém-chegados passaram a ocupar as cadeiras e a reivindicar sua posse permanente. Assim, a maioria dos outros passageiros não teve oportunidade de relaxar em uma espreguiçadeira. Resultado: a escassez predominou, surgiram conflitos, e dos passageiros a bordo sentiram-se pior do que antes. (Basedo em H. Popitz, Phänomene der Macht [Fenômenos do poder].)

O que essa história nos pode ensinar? Em primeiro lugar, que todos os comuns são formas de prosperidade compartilhada; ou, como diz Wolfgang Sachs: quando falamos dos comuns, falamos de um “segredo escondido de nossa prosperidade”.

Tal mensagem é forte, mas simples. “Os comuns são uma rede de vida”, afirma Vandana Shiva. Na verdade, os comuns são a rede da vida em sua esfera natural, social, cultural e digital. Quando falamos dos comuns, falamos de qualidade de vida, do nosso futuro e do futuro de nossos filhos.

O problema é que os comuns estão em toda parte, mas muitas vezes ficam invisíveis para nós. Podem então se perder e, consequentemente, cair no esquecimento. Eles se perdem pela força bruta (ou seja, por nós mesmos, como no episódio do navio), ou pela força do dinheiro (ou seja, pelo mercado), ou pela ação do capitão (isto é, pelo Estado). O resultado desse processo é uma erosão dos comuns.

Assim, a verdadeira “tragédia dos comuns” (uma conhecida metáfora cunhada por G. Hardin) é que só tomamos consciência deles e de seu enorme valor para nós quando estão quase desaparecendo.

Sempre me perguntam: o que exatamente são os comuns?

Temos o costume de fragmentar a complexidade em definições curtas, “científicas” e, supostamente, objetivas.

Algumas das teorizações mais inovadoras sobre os comuns foram feitas por Elinor Ostrom. Ela e suas colegas insistem em afirmar que não existe uma “lista mestra” ou uma definição única de comuns. Cada comum é produto de uma circunstância histórica singular, de uma cultura local, de determinadas condições econômicas e ecológicas, e assim por diante.

Em vez de uma definição única, devemos examinar o que todos os comuns têm em comum.

O que a defesa da biodiversidade tem em comum com a luta por softwares e hardwares livres?

Por que a batalha pelo acesso ao conhecimento e à cultura é a mesma daquela por acesso à água e contra a mudança climática?

Os comuns nos permitem unificar em pensamento o que está separado em nosso espírito, mas que constitui uma unidade.

  • 1. Todos os comuns compartilham uma função. Os comuns são essenciais para nós, sejam os naturais, os sociais ou os comuns do conhecimento: “Os comuns naturais são necessários para nossa sobrevivência, enquanto os comuns sociais garantem a coesão social, e os comuns culturais, por sua vez, são indispensáveis para dirigirmos nossas paixões com autonomia.” (fonte: Manifest: Gemeingüter stärken. Jetzt! [Manifesto: Fortalecimento dos comuns. Já!])
  • 2. Todos os comuns têm uma arquitetura: ou seja, podemos vê-los como sistemas complexos nos quais diversos componentes interagem. É claro que essas arquiteturas diferem muito entre si, mas todas se baseiam em três elementos genéricosfundamentais.

Vejamos rapidamente alguns exemplos concretos do primeiro elemento: existe a biodiversidade, a água, nosso código genético, os algoritmos e as técnicas culturais que utilizamos para produzir conhecimento – como ler e escrever; notas musicais e ondas sonoras para transmitir música, ou o espectro eletromagnético para transmitir informações; o tempo de que dispomos, as regras do jogo, as informações, o conhecimento de que precisamos para conseguir um diagnóstico médico ou o conhecimento compilado por milhões que wikipedianos, o código digital dentro de um programa de computador ou o silêncio.

E a capacidade atmosférica de absorver emissões de CO 2 : todos esses são “recursos comuns”. Todos nós temos o mesmo direito de utilizar tais recursos.

Um recurso comum é o primeiro elemento fundamental da arquitetura dos comuns. Qual é o segundo?

Esta foto tem a legenda: “Minha primeira cadeira guardadora de vaga para estacionar.” Existe, em muitos bairros de Boston, um ritual de inverno: quando começam a cair os primeiros flocos de neve, os engradados, as latas de lixo e as cadeiras saem das casas. São usados para proteger o que alguns residentes insistem em chamar de “seus” espaços na rua. Pode-se pensar: “mas os espaços não são deles – quer dizer, quem é dono da rua?”

“Trata-se ainda de um comum”, afirma Elinor Ostrom, porque os residentes, que formam uma determinada comunidade, compartilham um entendimento comum do modo como utilizar um recurso. Assim, em muitos bairros de Boston (não em todos), entende-se que se você limpar um espaço na neve com uma pá, você ganha o direito de estacionar ali até que a neve derreta. Você assinala esse direito colocando uma cadeira naquele espaço. Novamente, como no exemplo do navio, a solução é consentir direito de uso (temporário) ao invés de direito exclusivo de propriedade privada.

Em outras palavras, a posse temporária é diferente da propriedade eterna. Todos podem tomar posse de um comum, desde que não o leve para longe dos outros – nem das gerações futuras!

A comunidade, o grupo de pessoas que compartilha um recurso comum, eis o nosso segundo elemento fundamental. No caso da atmosfera e de outros comuns globais, esse “grupo” é toda a humanidade.

Na verdade, deveríamos falar dos comuns como verbo, não como substantivo. Não se trata da água ou da atmosfera ou do código por eles mesmos. Trata-se de nós, das decisões que tomamos.

Para citar Peter Linebaugh: “Não há comuns sem comunização.”

“O exemplo da vaga para estacionar demonstra maravilhosamente como um comum pode ser idiossincrático”, diz meu colega David Bollier. Na Internet, onde os recursos são bits intangíveis de códigos e de informações, a governança dos comuns assume formas muito diferentes. Cada comunidade define suas próprias regras. E esse é o terceiro elemento fundamental da arquitetura de um comum: um conjunto de regras ditadas, na medida do possível, pelo próprio grupo.

Uma sociedade com base em comuns será fundamentada em regras criadas de modo a manter e recriar automaticamente nossos comuns.

O que está errado e como mudar isso?

Quem conhece este homem, levante a mão!

E este outro?

Qual a razão da diferença?
Todos nós devemos muito a Tim Bernes-Lee. Contudo, a maioria de nós não o conhece, nem por nome, nem por foto. Por outro lado, conhecemos bem o papel de Bill Gates na economia atual.

Em 1989, Tim Berners-Lee criou a linguagem HTML (Hypertext Markup Language), usada na descrição para páginas da Internet, e o respectivo protocolo HTTP. Berners-Lee não patenteou suas ideias, nem suas implementações técnicas e, ainda, garantiu que o World Wide Web Consortium (W3C) adotasse apenas padrões não patenteados.

Essa abordagem reflete uma ideia central dos comuns: a ideia de compartilhar, bem como a importância de abrir mão de controlar o que as pessoas fazem. “As páginas da Web são destinadas às pessoas”, afirma Berners-Lee.

Ele contribuiu para os comuns de forma muito significativa e bem sucedida. Mas o problema é que nossa ideia de sucesso está ligada a velhos paradigmas, a saldos contábeis, à presença na mídia e a estratégias de negócios, independente de sua contribuição para os comuns.

Se quisermos que os comuns tenham um lugar de destaque em nossa sociedade, a ação dos atores econômicos, do Estado e do indivíduo deve passar a ser medida com base na contribuição que trazem aos comuns (e não ao PIB).

“Quem quer que contribua para os comuns, em vez de apenas se valer deles, merece prestígio e reconhecimento social.” (fonte: Manifest: Gemeingüter stärken. Jetzt!) Por essas razões, precisamos urgentemente de novas ideias e de novas histórias para o século XXI.

Há muitas maneiras de contribuirmos para os comuns, se focalizarmos radicalmente em:

  • Produção descentralizada, possibilitada por novos níveis de trabalho em rede com ferramentais digitais.
  • Cooperação em nível local e global.
  • Diversidade de recursos, comunidades, configurações e regras.
  • Relacionalidade – que remete à seguinte ideia: “Eu preciso dos outros, e os outros precisam de mim.”

Tais são as ideias centrais que sustentam a mudança para uma sociedade fundamentada em comuns.