Os bens comuns, modelo de gestão dos recursos naturais

O comum das águas, a cidadania das águas e a segurança das águas

, por DARGANTES Buenaventura, MANAHAN Mary Ann, MOSS Daniel, SURESH V.

Gerações futuras à mesa: governando e gerenciando nosso comum das águas

Na cidade de Cebu, nas Filipinas, funcionários públicos – como Zosimo Salcedo, do Departamento de Água e Esgoto da Região Metropolitana de Cebu (MCWD - Metro Cebu Water District) – se opuseram ao financiamento do Banco Asiático de Desenvolvimento que, supostamente, promoveria uma rápida expansão do fornecimento de água da cidade. Esse financiamento parecia um sonho para os trabalhadores do setor, afinal, mais fundos para a infraestrutura significam mais postos de trabalho. Por que então Zosimo Salcedo estava se opondo ao financiamento? Ao contrário da visão comum de que os trabalhadores se preocupam apenas em preservar seus empregos e receber salários maiores, o sindicato atuou como gestor do uso comum das águas. Poderíamos chamá-los de cidadãos das águas. Eles entenderam a responsabilidade que têm como “cuidadores” da água, desde a captação e o armazenamento até a distribuição. Não mediram sua eficiência apenas pelo número de moradias atendidas, mas também pela conservação, pela proteção das bacias hidrográficas e pelo questionamento do significado que o aumento da dívida teria a longo prazo para a sustentabilidade das finanças e dos recursos do sistema hídrico. Fizeram uma pergunta difícil: será que a nova infraestrutura para extrair mais água vai mesmo garantir, com o passar do tempo, um fornecimento de água mais amplo e contínuo? Em vez de encanar novas fontes de água na superfície e no subsolo, eles chegaram à conclusão de que fazia mais sentido, em termos econômicos e ecológicos, conservar a água realizando reparos mais baratos no sistema e protegendo a bacia hidrográfica.

O mais extraordinário nessa mudança de mentalidade é o surgimento de uma nova consciência de que os trabalhadores desempenham uma função importante em zelar, cuidar e sustentar as águas, mesmo que suas próprias atribuições diárias envolvam um papel técnico mínimo com a distribuição de água em si. Na prática, Salcedo e seus colegas do sindicato dos trabalhadores da MCWD simbolizaram uma reestruturação fundamental das relações entre os trabalhadores em água, o serviço público de água, a comunidade e as águas em si. Com essa nova consciência e essa nova prática, às quais chamamos de cidadania das águas, eles buscaram assegurar água para todos e para sempre.

O desafio de proteger as águas

Podemos ver toda nossa base de recursos naturais planetários como um imenso comum global ou, alternativamente, como uma série de comuns locais interconectados. Ambas as expressões apresentam desafios formidáveis de governança, gerenciamento e soberania. O termo “comum” deixa o atual planejamento hídrico de pernas para o ar. Um comum das águas significa que as águas estão disponíveis para todas as pessoas e ecossistemas, e que esses recursos devem ser transmitidos intactos e sem diminuições para uso das gerações futuras. Não é preciso ir longe para ver que o atual planejamento hídrico quase nunca coloca esses princípios em prática.

Garret Hardin, em “Tragedy of the Commons” (“A tragédia dos comuns”), mostrou-se pessimista em relação aos comuns. Ele argumentou que a propriedade compartilhada de um recurso comum pode levar ao uso desigual, a furtos e à degradação. Existem muitas provas, incluindo o caso do rio Lempa examinado aqui, de que um comum não gerenciado pode ser algo desastroso. A obra de Hardin é sempre citada para justificar a divisão dos comuns em partes privadas.

Elinor Ostrom, agraciada com o Nobel de economia em 2010, tem um ponto de vista mais positivo. Ela pesquisou a fundo os comuns de comunidades e não encontrou nada trágico. De fato, ela notou conflitos quanto aos recursos – eles são inevitáveis –, mas também inteligência e altruísmo suficientes para gerenciar as brigas e desenvolver regras vinculativas para um compartilhamento equitativo. Assim como no caso da região semiárida de Minas Gerais, Brasil, descrito nesta coleção, tais regras podem enxergar longe o bastante para garantir que a própria natureza receba sua cota justa do comum das águas. Ostrom descobriu usuários dos recursos fazendo uma escolha: adotar um regime não sustentável de gestão do recurso ou tentar algo mais colaborativo.

Ostrom articulou princípios e práticas que podem guiar a boa governança dos comuns das águas. Por exemplo: definir o universo dos usuários, mapear as fronteiras físicas do recurso comum, garantir direitos de governança a todas as partes interessadas, desenvolver mecanismos de baixo custo para a resolução de conflitos e aplicação das decisões, criar regras e instituições de gerenciamento que nidifiquem/liguem o local e o internacional a montante e a jusante. Esses princípios e práticas não são exclusividades de engenheiros hídricos: são arranjos sobretudo intuitivos e quase sempre ignorados.

Feira internacional da água, Cochabamba, abril 2010. Source : Peg Hunter (CC BY-NC 2.0)

Uma nova GIRH 2.0 para enfrentar a crescente crise hídrica

Há vinte anos, na Conferência Rio 92, também conhecida como Eco 92, a governança das águas baseada nos comuns deu passos tanto para frente quanto para trás. A ética filosófica milenar de que as águas pertencem a todos e devem ser preservadas para as gerações futuras foi colocada em dúvida pelos Princípios de Dublin adotados na primeira Cúpula da Terra na Declaração do Rio (1992): “As águas são um bem comum e possuem um valor econômico e social em todos os seus usos”.

Instituições públicas e privadas aproveitaram a oportunidade para colocar a água dentro de um enquadramento mercadológico e, enquanto sociedade, parece que perdemos de vista o comum das águas. Não há dúvida de que cobrar um preço é essencial para manter um sistema hídrico em funcionamento, mas ele deve ser justo. Isso significa que usuários mais ricos que consomem maiores volumes de água pagam mais por unidade, e os domicílios mais pobres recebem fornecimento subsidiado ou gratuito. Mas, em geral, não é esse o princípio adotado. Em vez disso, parece que os formuladores de políticas e os operadores privados se apaixonaram pela recuperação integral dos custos de todos os usuários, mesmo quando isso significa negar os direitos básicos à água. A perspectiva de lucro com as águas também começou a parecer possível para operadores empresariais – tanto políticos quanto CEOs.

Uma onda de restruturação institucional e econômica engoliu boa parte do mundo. A começar pela América Latina, da Bolívia à Argentina, da Colômbia ao Chile, instituições públicas encarregadas dos serviços de água foram desmanteladas e substituídas por atores privados que, em alguns casos, passaram a gerenciar sistemas completos e, em outros, foram subcontratados para construções ou para a cobrança de tarifas. A Primeira Guerra Hídrica Mundial em Cochabamba, Bolívia (2001), foi a manifestação mais marcante que simbolizou a raiva dos setores mais
pobres, excluídos dos serviços hídricos por não serem capazes de pagá-los.

Naquela mesma cúpula do Rio, nasceu um conjunto de práticas de gestão conhecido como Gestão Integrada dos Recursos Hídricos ou GIRH. A GIRH baseia-se em algumas das melhores expressões da declaração do Rio sobre a coexistência com a natureza e sobre atender as aspirações humanas à realidade ecológica. Mas a GIRH tem sofrido no que diz respeito à implementação e à concepção. Bancos de desenvolvimento e governos, na maior parte das vezes, vêm tratando a água como um bem econômico em vez de um comum. A participação dos cidadãos tem sido pequena e superficial, longe de ser tão autêntica e robusta como deveria. Neste momento de transição para um novo comprometimento global com a sustentabilidade do meio ambiente, seríamos tolos se não parássemos e refletíssemos: o que aprendemos nessas duas décadas para melhorar o modo como governamos e gerenciamos os recursos hídricos?

Talvez a GIRH não seja culpada, mas os encargos humanos e ecológicos da crise hídrica são ruins e estão aumentando, incitados pela mudança climática e por falhas de governança. Metas não cumpridas de desenvolvimento para o milênio nos assombram. Uma reportagem excelente revelou há pouco o quanto nossas economias e nossos bancos são mal administrados, mas precisamos lançar os mesmos holofotes sobre a má gestão da água, fato que ameaça nossa própria existência. Ao mesmo tempo, precisamos conhecer algumas histórias que trazem boas novas, histórias de esforços bem sucedidos para superar a crise hídrica. Os casos que traremos aqui apresentam algumas dessas boas e negligenciadas notícias.

Vamos chamar de GIRH 2.0 à nova ética que abraça o comum das águas, a cidadania das águas e a segurança das águas. Nossas sociedades aprenderam da forma mais difícil (com sistemas hídricos de baixo desempenho e bacias hidrográficas degradadas) que se um senso autêntico de cidadania das águas não guiar a governança e a prática gerencial das águas, elas têm chances de fracassar. Como mencionado acima, a atuação do sindicato dos trabalhadores da MCWD em fazer recomendações informadas sobre investimentos em infraestrutura para o bem comum mostra o quanto eleitorados ignorados podem ajudar a redemocratizar o sistema de governança das águas. Colaborações entre o Estado e a comunidade que abraçam a liderança comunitária de uma forma significativa, como no caso da comunidade colombiana apresentado aqui, ilustram o quanto essa cooperação é importante para que o Estado seja capaz de garantir o direito à água, como a ONU exige agora.

A GIRH 2.0 enfatiza as realidades sócio-políticas e hidrológicas básicas de ecosistemas interconectados. Sistemas hídricos urbanos, como os de Baybay e São Salvador, dependem de uma paisagem rural saudável para sua sustentabilidade de longo prazo. Tanto colocamos o consumidor urbano em perigo quanto subvalorizamos as famílias da área rural quando os separamos. Percebemos com desânimo que grande parte do desenho do sistema hídrico, por omissão ou intencionalmente, reforça a falsa dicotomia entre os sistemas urbano e rural. Esta coleção contesta uma tendência generalizada dos sistemas hídricos, escolhendo intencionalmente os sistemas rurais como ponto de partida, explorando ao mesmo tempo sua conexão com os sistemas urbanos.

O caso da proteção de Nova Iorque a seu fornecimento hídrico rural mostra o quanto é crítico vincular a gestão a montante e a jusante, mesmo quando isso significa entrar nas complexidades da soberania territorial e acrescentar custos contínuos de proteção à bacia hidrográfica às tarifas e ao financiamento da água. Fazer o planejamento de uma coordenação a montante e a jusante é reconhecer nossa interdependência e necessidade de estabelecer mecanismos que suavizem os relacionamentos muitas vezes conflituosos em uma bacia hidrográfica ou entre bacias diferentes.

A alternativa a enfrentar esses conflitos em estágio inicial do planejamento hídrico e assumir os riscos políticos necessários para resolvê-los são as muito previsíveis guerras da água, tão facilmente vaticinadas, mas que devem ser evitadas custe o que custar. Da mesma forma, a GIRH 2.0 nos pediria que planejássemos todos os recursos hídricos em um pacote abrangente – na interseção entre a água potável, o saneamento e a irrigação. A própria natureza da água é abraçada pela GIRH 2.0, ou seja, os diversos usos são derivados da mesma fonte.

Abraçando a cidadania das águas e a segurança das águas

Todos os casos discutidos nesta coleção compartilham uma noção básica: as pessoas tendem a gerir um recurso com maior cuidado quando sentem que se beneficiam dele e que participaram da decisão sobre quem usará e como será usado o recurso. Chamamos de “comunização” a tal ato de gestão participativa. Um comum que não tenha sido “comunizado” tem grandes chances de desmoronar.

O Comitê de Coordenação da Represa do Rio Mary desempenha um papel ativo de governança na Austrália, embora não possua autoridade legal. Além de guardiões ativos que impediram a construção uma barragem prejudicial e desnecessária depois de um bilhão de dólares públicos terem sido gasto, eles também monitoram a qualidade da água, trabalham com os fazendeiros para um uso sustentável da terra e da água, e limpam a bacia do rio.

Em Parambur, na Índia, uma cidade de Tamil Nadu caracterizada por antigas desigualdades sociais e de classe enraizadas no sistema de castas, os habitantes garantiram que todos usufruíssem dos direitos de uso da água e têm responsabilidades de gestão, independente da posição de classe/casta. Há cerca de 40 anos, os pequenos fazendeiros de Parambur equilibram com sucesso o uso equitativo e sustentável sem sacrificar a viabilidade econômica.

Com muita frequência, a gestão dos recursos naturais focaliza os aspectos técnicos da proteção, da regulamentação e da alocação dos recursos, dando pouca atenção, quando o fazem, à participação contínua dos usuários na gestão dos recursos. Não que esses aspectos técnicos não sejam importantes, muito pelo contrário. É que detalhes técnicos, incluindo o orçamento, não devem ficar a cargo de tecnocratas e engenheiros trabalhando isolados, sem o benefício do envolvimento ativo da comunidade e do debate.

Um dos princípios básicos de Maude Barlow para a gestão do comum das águas é o de que a conservação vem antes de qualquer outra intervenção. Faz bastante sentido consertar um cano que está vazando antes de explorar uma nova fonte de abastecimento de água. Mas a verdade é que os clientelismos infraestruturais dominam a paisagem da gestão das bacias hidrográficas. As decisões sobre financiamento e precificação parecem diferentes nas Filipinas, na Austrália e em Nova Iorque, quando um plano tecnológico não se baseia em um contrato lucrativo para uma empresa de engenharia ou para preencher as condições de um empréstimo para obras de infraestrutura. O fornecimento de água potável, o saneamento, a irrigação e a hidroeletricidade certamente exigem conhecimentos de engenharia, mas as decisões tecnológicas – submetidas ao escrutínio público – guiadas por uma abordagem “conservar primeiro”, muda o paradigma de “retorno do investimento” para o de sustentabilidade como retorno.

Reivindicando as águas públicas e indo mais além

A privatização das águas foi, até bem pouco tempo, a menina dos olhos dos bancos de desenvolvimento e dos governos neoliberais. A preocupação autêntica com a má administração pública combinou-se com o oportunismo corporativo, a corrupção governamental e as crises fiscais criando um álibi perfeito para que as autoridades vendessem suas empresas de serviço público. Essa tendência agora perdeu velocidade, devido aos diversos malogros do sistema privado no que diz respeito ao fornecimento de água com qualidade a preços acessíveis. A situação pode ficar ainda mais difícil para os operadores privados, à medida que as nações lutam para saber como implementar a nova exigência da ONU de garantir os direitos à água e ao saneamento. O setor privado pode desempenhar um papel de apoio, não de liderança, em proteger esses direitos.

Na década que se passou desde a guerra da água de Cochabamba, um amplo movimento dos cidadãos pela justiça das águas levou a iniciativas bem sucedidas como defender o comum das águas, reivindicar as águas públicas e à aprovação do direito à água e ao saneamento pela ONU. Em alguns casos, essas iniciativas resultaram na remunicipalização e outras formas de gestão local. Nos casos apresentados aqui, como o dos sistemas rurais de água localmente controlados na Colômbia, nota-se uma sinergia entre campanhas antiprivatização e gestão local, revelando uma abordagem ativista para a cidadania da água.

Destrinçando falsos dilemas: a montante e a jusante, rural e urbano, irrigação, saneamento, usos industriais e potabilidade

Cada caso aqui revela divisões políticas e institucionais que tão frequentemente colocam nossos sistemas hídricos em desordem. Por que dificultamos a gestão do comum das águas mais do que o necessário? Por que atribuímos a qualidade da água e o saneamento a um Ministério da Saúde, a água potável a uma empresa urbana de serviço público, a irrigação ao Ministério da Agricultura, sem ninguém responsável pela saúde das bacias hidrográficas?

Naturalmente, cada país tem suas próprias razões políticas e históricas para instituir essa mixórdia de governança das águas e autoridades gestoras. Em alguns casos, tem-se a impressão de que esforços bem intencionados de descentralização devem ser culpados por essa balcanização. Mas, como se diz, isso são águas passadas. Conquistar o controle sobre feudos institucionais, reorganizar e harmonizar responsabilidades institucionais e criar leis sobre as águas, tudo isso leva anos. A reorganização ministerial e a criação de novas leis são processos políticos essenciais, mas o que esses casos mostram são iniciativas inovadoras de curto prazo para encorajar a coordenação entre órgãos muitas vezes concorrentes e que não se comunicam. Encontramos comitês para bacias hidrográficas, trabalhadores e burocratas, bem como municipalidades colaborativas, todos comprometidos com a gestão plena das bacias hidrográficas, rompendo divisões outrora dominantes, mas contraproducentes.

Podemos admitir nossos erros ao enfrentar as crises hídricas e criar coragem para responsabilizar quem lucra com elas? Apenas se não quiséssemos muito mesmo ver a realidade deixaríamos de aprender algo com os protestos das comunidades sedentas e com os ecossistemas que definham enquanto nossos comuns das águas são mal geridos.

Uma imagem impressionante e generalizada da água rural é a de uma bomba d’água quebrada em uma aldeia africana. Essa foto é um lembrete perturbador não apenas do problema da sede e das doenças relacionadas à água, mas do fracasso de um modelo assistencialista para vencer a crise hídrica. As doações que não integram as bombas d’água à paisagem política, desde a local à nacional, podem muito bem acabar quebradas e sinalizar para as ONGs que a coordenação com governos locais e outros órgãos públicos é essencial.

Vistos em conjunto, os estudos de caso presentes nesta compilação iluminam um caminho para sair da insegurança hídrica: ética de justiça social, em vez de uma abordagem assistencialista; coordenação multiuso, a montante e a jusante; precificação e financiamento justos; liderança previdente de funcionários públicos e comitês de gerenciamento de bacias hidrográficas; resolução de conflitos inter e intracomunidade; e, talvez de modo mais fundamental, a necessidade premente de abraçar a cidadania informada e engajada das águas. Os princípios do Rio que informaram a GIRH não empregaram o termo cidadania das águas, mas o sugerem ao insistir em uma abordagem participativa para o planejamento hídrico.

Desde a cúpula do Rio, participação tem sido a palavra mágica para reformar, reestruturar e iniciar programas hídricos. Invariavelmente, propostas de programas para as águas, públicas ou privadas, estão cheias de expressões que incluem a palavra participação. Se você acredita que a participação é essencial para resolver nossa crise das águas e que nossos sistemas atuais são autenticamente participativos, você pode bem se perguntar se a participação de fato realiza alguma coisa. Realiza?

Esses casos falam ao poder da participação, mas não como atualmente concebida e praticada. A participação enquanto ferramenta estratégica para consultar as partes interessadas é certamente importante, mas esses casos ilustram que a cidadania e a gestão das águas é mais uma ética participativa do que um mecanismo participativo – pois a democracia autêntica é mais um engajamento ativo do que uma visita ocasional à cabine de votação. A governança democrática pode – e deve – fazer com que os cidadãos fiquem por dentro dos detalhes de como o sistema será financiado, como o recurso será precificado e como as bacias hidrográficas serão protegidas para as gerações presentes e futuras, em meio a outras questões de importância primordial.

Entre esses problemas encontram-se questões existenciais: Como vivemos com recursos limitados? Como fazemos para ter certeza de que os mais pobres entre nós não ficarão com sede? Como compatibilizamos nossos apetites econômicos com a proteção às bacias hidrográficas? Como solucionamos os conflitos hídricos antes que transbordem? Tais questões importantes estão no cerne da necessidade de projetarmos uma “transição justa” das práticas insustentáveis que resultaram em mudanças climáticas e enormes desigualdades para uma coexistência restabelecida com a natureza e com os outros. A transição não diz respeito somente a fazer pequenas mudanças nas práticas de gestão de recursos, trata-se, antes, de uma revisão importante: reimaginar a governança das águas. Não temos obtido bons resultados com a desvalorização ou exclusão das percepções e da participação de trabalhadores, mulheres, lavradores, agricultores e pescadores, povos indígenas, pessoas pobres das cidades e outras pessoas que, na realidade, são de importância chave na governança das águas, tanto como usuários como quanto gestores.

Apresentamos esses casos para acabar com ideia pessimista de que não podemos governar e gerenciar nosso comum das águas, de que a privatização das águas é a única maneira de seguir adiante e de que os seres humanos não conseguem imaginar um modo de garantir aos ecossistemas suas parcelas justas de água. É verdade que muitos desses casos deixam perguntas sem respostas. Mas mesmos nas soluções “em construção”, a criatividade dos cidadãos das águas está à mostra.