Janeiro de 2016
África é uma e muitas ao mesmo tempo. Quando nos referimos a qualquer realidade do continente, devemos levar em conta três grandes momentos: 1) a pré-colonia, construída através de reinos e etnias; 2) a colônia, iniciada na partilha do continente entre as potências europeias na Conferência de Berlim (1884); 3) a pós-colônia, desde a década de 1960, com as independências africanas e o fenômeno da construção nacional. A “missão civilizadora”, que em seu momento justificou a superioridade europeia sob a premissa da conquista do mundo, ainda deixa vestígios de um passado não resolvido: o traçado artificial de fronteiras, a dependência em relação aos países industrializados e a dívida externa são fantasmas do passado que ainda sobrevivem.
Não é diferente no Magreb, que compreende Marrocos, Argélia, Tunísia, Mauritânia e Líbia – além do território do Saara Ocidental. Ali convivem árabes com berberes num cenário em que encontramos vários dialetos. Nesse contexto se inscreve o conflito do Saara. A luta dos saarauis por sua autodeterminação criou tensões entre as populações mauritana, marroquina e argelina. Um estudo de sua realidade deve levar em conta essas divisões, mas também as fronteiras impostas desde a partilha das colônias.
- “Solidão”. Mulher saaraui nos acampamentos de Tindouf. Crédito : Ana Valiño. Tindouf, Argélia.
Esse artigo pretende aproximar-nos às manifestações culturais e ao processo de construção da identidade saaraui através da poesia e da música. O processo de investigação é uma tarefa complexa que requer extensa pesquisa sobre o terreno, já que a maior parte dessas manifestações artísticas residem na tradição oral. Conscientes disso, resgatamos os estudos realizados por algumas associações, artistas, antropólogos e historiadores.
Língua própria
A tradição literária do Saara foi sendo transmitida de geração a geração uma riqueza oral produzida em língua hassanía –variante do árabe que reside na memoria coletiva do povo saaraui. Segundo Bahia Awah, escritor, poeta e professor saaraui, “o hassanía é falado em uma ampla região norte e ocidental da África, desde o Saara, passando pela Mauritânia, o sul da Argélia, o noroeste do Mali e alguns limites antigos do Saara Ocidental antes de 1958, como é o caso da cidade marroquina de Tantan”.
A riqueza consonântica desse dialeto conserva fonemas do árabe antigo, mas com modificações. “Tem como base o árabe clássico iemenita, mas incorpora um substrato anterior da África negra – o wolof senegalês e também algo da língia znaga dos bereberés. (...) Além disso, introduz elementos do espanhol e do francês impostos pelos colonizadores da zona e adaptados ao idioma.” (Idem, 2008)
A poesia saaraui
Tomando como referência o trabalho “A poesia saaraui e o nascimento da consciência nacional (Gimeno et al, 2015), podemos sublinhar o duplo papel que a poesia saaraui teve na formação da identidade para superar divisões tribais construídas segmentariamente. Os autores refletem sobre a influência de poetas e poetisas como porta-vozes da transformação, interpretando epicamente as batalhas, assim como o papel dos guias que indicavam o caminho a seguir pelos saarauis em sua peregrinação constante pelo deserto.
Na década de 1930, primeiro período de gestação da consciência saaraui como povo, em seu enfrentamento com tropas francesas e espanholas, os poetas aplaudiram os gazzi, “exemplo de beligerância entre marroquinos e saarauis com o propósito de defender o território frente a estranhos”. “O gazzi, próprio da vida beduína, sempre é uma expedição guerreira com finalidade econômica ou política”, afirma López García (2007:314). O trabalho dos gazzi representava um desafio para as tropas percebidas como ilegítimas pelo fato de serem dirigidas por “infiéis à fé muçulmana”. É nessa realidade, de acordo com Gimeno e outros (2015), que os poetas desenham uma futura emancipação coletiva de um povo que começa a ter consciência como tal.
Durante segunda etapa, entre os anos 1950 e 1960, a poesia saaraui reflete as contradições da transformação da vida beduína com a aparição de cidades e o estabelecimento da colônia.
“Nos anos 1960, a poesia saaraui joga um papel de vetor pedagógico da sociedade, reúne a confusão e as contradições derivadas da nova ordem e a ameaça às práticas culturais beduínas. A poesia assinala as ações dos delatores e aqueles que traem a sociedade. Há uma poesia antes da revolução e depois da mesma.” (Gimeno, 2015)
Aparecem em cena os poemas dedicados a líderes políticos que refletem o desejo de autodeterminação, uma poesia política que nesse momento deixa de lado o lírico e o amoroso. Uma expressão cultural que sente a perda geográfica de seu território e reivindica a luta por legitimidade.
O conflito, a separação do povo e o exílio passam então a marcar a produção poética saaraui. Um dos movimentos mais ilustrativos dessa poesia é o que nasce com a Geração da Amizade, grupo formado em 2005 em Madrid por autores e autoras saarauis no exílio espanhol “que acabou sendo um elemento unificador de uma boa parte de traços comuns” (Idem).
Bahia Awah, Luali Lehsan, Saleh Abdalahi ou Zahra Hasnaui, entre outros e outras, conformam o coletivo. Seus membros têm um denominador comum: sua educação foi em castelhano e experimentaram os últimos anos do colonialismo espanhol, a invasão e a perseguição marroquina, a guerra e seus muitos horrores. Todos eles, exilados e exiladas, com uma formação entre Cuba e Espanha, apresentam uma poesia em espanhol com cadências musicais cubanas e latino-americanas.
“Mas tem o sotaque e a melodia árabe e berbere. Atmosfera norte-africana misturada com uma tradição árabe de poesia galante e amorosa” (Idem). É uma poesia que reflete a historia de um homem, de uma mulher, de um menino, de uma anciã que se viu obrigado ou obrigada a nascer ou morrer em outra terra que não a sua. Ainda que definidores dessa geração de poetas em particular, estes traços já estão presentes na poesia saaraui desde o século XV, segundo Larosi Haidar (2013:363). São textos recitados e cantados. Desde então, música e poesia caminham lado a lado.
O trabalho de Larosi Haidar nos brinda boas referências das diversas formas e métricas poéticas da produção saaraui. Ele sublinha que a forma mais comum e simples é a denominada tal’a, que vem precedida de uma estrofe de quatro versos chamada gãf. Esses versos são os taflwãtan, de rima semelhante cruzada e com o mesmo número de sílabas (os octossílabos e os septissílabos são os mais comuns). Os dois primeiros versos do gãf são chamados de al-magiam e os dois últimos, al-maga’da. Por ser muito simples, é produzida por todos, sejam poetas ou não [1].
“O mais sublime amor de todas as minhas amantes
me converteu em Iram das Colunas”
(Gãf de Mohamed Salem) [2]
De acordo com Bahia Awah, a poesia saaraui em hassanía segue sendo oram, apesar da tentativa de escrevê-la e arquivá-la para evitar que desapareça. “O legado cultural saaraui bebe da própria memória de seus habitantes e foi conservado através de pessoas que se converteram em autênticas enciclopédias humanas (Awah, 2010:208). Ainda que o futuro da tradição oral pareça estar dando seus últimos suspiros, Larosi Haidar sustenta que há âmbitos da vida cotidiana que não podem acontecer fora da oralidade, como é o caso do cuidado, da criação ou da educação.
- “Proteção e carinho”. Família nos acampamentos saarauis de Tindouf. Crédito : Ana Valiño. Tindouf, Argélia.
Música saaraui
Não podemos fazer referência à música saaraui sem mencionar o estilo principal que une tradição e modernidade, o haul, desenvolvido na cultura hassanía no Saara Ocidental, Mauritânia e sul da Argélia. É principalmente composto por oito modos melódicos conhecidos como entamas, seinicar, fagu, leboer, lyen, lebteit e tehrar e sete ritmos que são bledia, charba, serbet, agarran, agassar, dubka e medra. É um gênero regido por regras simples e estritas e suas canções são interpretadas a uma voz, solo ou a coro, com temas específicos de amor, guerra ou território e acompanhadas por um instrumento de corda chamado tidinit e um pequeno tambor chamado t’bal, que costuma ser tocado pelas mulheres [3].
A manifestação musical saaraui foi modificando conceitos em relação ao seu passado. Hoje a encontramos enquadrada na ideologia socialista árabe da Frente Polisário. Luis Gimenez Amorós, músico e compositor que investiga o mundo sonoro no Saara, explica que uma de suas singularidades é justamente sua associação com o feminino, o que a diferencia do resto da África, onde é habitual que os instrumentos de percussão sejam entendidos como símbolo de masculinidade (2014:169)
Em quanto ao toque, os usos do t’bal são criativos e diferenciadores: “ainda quando os ritmos têm certas estruturas fixadas, as mulheres improvisam sobre eles através das palmas, duplicando o ritmo e as notas (de semínima a colcheia). Isso costumava acontecer também com as primeiras sociedades islâmicas” (Ahmed Fadel, 2014:169).
A sociedade saaraui estava organizada ao redor de um sistema hierárquico em que todas as pessoas pertenciam a uma “tribo”, a um grupo social determinado que, por sua vez, estabelecia três grupos mais que ofereciam seus serviços à comunidade – é o caso dos escravos, dos artesãos e dos músicos.
Em suas origens, os músicos migravam em direção ao norte buscando um chefe que os contratassem para oferecerem seus serviços. Se o chefe os recusava, compunham canções de chacota. Todo este sistema hierárquico e diferenciador se dissolveu em consequência do processo colonial, dando lugar a uma união para enfrentar os desafios que os saarauis foram encontrando como povo.
Como a poesia, a música saaraui se enquadra em três períodos: o primeiro deles coincide com o exílio, em 1975. À época, a cantora Mariem Hassan comentava que não havia tidnit na música saaraui em Smara (Idem). Os cantores se dedicavam a performar em eventos sociais acompanhados do t’bal.
A segunda etapa, de 1976 a 1980, é um período em que a revolução saaraui necessitava de uma definição de sua própria identidade. Aparece em cena a guitarra elétrica, levando consigo um peso político importante. Começam a ser criadas canções de revolução que refletem uma música própria e diferente de outros estilos do deserto.
Já na terceira etapa, nos anos 1990, é produzido um conhecimento do haul mais definido e com procedimentos técnicos corrigidos. É a guitarra saaraui a que começa a se relacionar com outros estilos internacionais, como o blues, com o que o haul compartilha alguns modos pentatônicos (Giménez, 2013:9). E aqui se relacionam as escalas maior e menor com outras músicas do Mali ou de países vizinhos, como a de Ali Farka Touré.
Nos últimos anos, apareceram iniciativas positivas e de divulgação que merecem ser reconhecidas, como o selo discográfico Nubenegra [4] Em 1998, o Nubenegra lançou quatro álbuns de Mariem Hassan, falecida em agosto de 2015. Foi a maior estrela musical saaraui de todos os tempos. Após décadas de profissionalização, levando sua mensagem de paz e liberdade, se converteu em uma grande referência musical.
É importante, ainda, destacar vozes no exílio como Jeirana ou Faknash, cantoras reconhecidas do Medej [5] saaraui. Hoje em dia, a música do Saara segue tingida de notas políticas de resistência usadas para denunciar os abusos e a diária violação dos direitos humanos dos saarauis. Os músicos contemporâneos usam suas armas – ritmo e poesia – para manter sua função mais importante, a de serem a alma do povo saaraui. Yslem Mohamed Salem Nafaa, conhecido no mundo musical como “Filho do Deserto”, é um MC procedente de Techla, no Saara. Além de interpretar músicas em espanhol, também o faz em hassanía.
Suas origens no movimento musical podem ser encontradas no contexto que vivem nos acampamentos, onde descobriu o rap argelino através de grupos como M.B.S. O rap se converteu em uma das mais importantes manifestações de consumo cultural através dos meios de comunicação e das tecnologias – e, por isso, estendeu-se rapidamente por outros territórios como o Saara. Depois de várias conversas mantidas com o artista no último mês, ele nos comenta que:
“Para mim, a música é essencial em todos os âmbitos. É a linguagem universal, algo livre que entra em todo mundo. Os governos podem comprar tudo, a música, a política, as armas, mas a música e a poesia sempre estarão e ninguém poderá derrota-las. A música é a melhor maneira de fazer a mensagem chegar e lutar contra o inimigo.”
Para ele, o problema de estudar o fenómeno artístico no Saara é que “não há arquivos físicos dos antigos poetas e músicos. Tampouco há musicólogos. Os artistas tocam, mas nenhum sabe ler uma nota”. Em relação aos instrumentos usados nesse contexto, argumenta:
“A música saaraui está representada pela guitarra e o t‘bal, originarios do Saara. Também na época da luta se usava muito a Nefara, uma flauta de madeira. A guitarra é o instrumento mais usado no Saara para as músicas de casamento, para fazer dançar. Os músicos jogam mito com a guitarra. Também compartilhamos com a Mauritânia o tidnit, usado mais por eles que pela gente.”
Na atualidade, Yslem está montando um projeto com Chris Baz, uma produtora de cinema independente focada em causas sociais.
Comentário
- “Anos de espera”. Há três gerações nascidas nos acampamentos de refugiados saarauis. As crianças olham para um horizonte incerto. Crédito : Ana Valiño. Tindouf, Argélia.
Depois de fazer uma tentativa de aproximação à janela da poesia e da música saarauis, suas diferentes características, usos e práticas musicais, destacamos o trabalho positivo de participantes que contribuíram com o resgate de diversas manifestações artísticas dessa terra, ainda que conscientes de que falta muito por fazer e investigar nesse mundo tão diverso: as formas musicais, os usos e cenários da música na sociedade saaraui e na educação, a poesia como arma de luta e resistência e etc. Para terminar esse trabalho nos fazemos a seguinte pergunta presente em um poema de Fatima Galia M. Salem: quantos versos fazem falta? Quantos sons são necessários para conseguir a liberdade dos povos? Esse poema nos apresenta uma reflexividade que nossa consciência deve ecoar. Acompanha uma foto muito significativa de Ana Valiño intitulada “Anos de espera: há três gerações nascidas nos acampamentos de refugiados saarauis. Os meninos e as meninas olham a um horizonte incerto”.