Saara Ocidental, ano 40 : História, estratégias e desafios para o futuro

O roubo de um país

A contínua exploração de recursos naturais no Saara ocupado

, por ALLAN Joanna , LAKHAL Malainin

Janeiro de 2016

O dia 10 de dezembro de 2015 foi não uma boa data para rei marroquino Mohammed VI. Naquele dia ele se tornava a parte derrotada em um julgamento do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no qual os frutos de “sua” terra cultivável no Saara Ocidental ocupado seriam excluídos do acordo de comércio entre o Marrocos e a União Europeia (UE). Era dia de festa para o povo saaraui.

O Saara Ocidental é a última colônia da África e sua descolonização segue incompleta, fruto de um processo iniciado nos anos 60. Em relação ao Saara Ocidental, muito se fala na mídia da presença da Organização das Nações Unidas (ONU) no terreno e de seu fracasso em resolver o conflito. No entanto, longe dos holofotes o território e o povo saaraui tem sofrido com o saque de seus recursos naturais, bem como com abusos e violações por parte da potência ocupante, o Marrocos, e de outras entidades e países ao redor do globo.

No início do mês de dezembro de 2015, o TJUE emitiu sua decisão final no caso da Frente Polisário contra a União Europeia acerca de um acordo comercial que permitiria a venda de produtos pilhados do Saara Ocidental ocupado pelo Marrocos aos mercados europeus e, ainda por cima, com tarifas preferencias. A sentença, que invalida o acordo no que tange o território saaraui, confirma a ilegalidade da espoliação da riqueza de um povo colonizado. A UE (que já apelou da decisão perante a Corte) possui outros acordos comerciais de natureza similar com o Marrocos. Em todos, estão ausentes as delimitações precisas das fronteiras marroquinas – o que acaba por incluir partes do território não-autodeterminado do Saara Ocidental.

Esta decisão do Tribunal Europeu é, portanto, uma grande vitória e um precedente importante para a luta saaraui. É, no entanto, apenas um primeiro passo, que deverá será acompanhado de novas ações e de um monitoramento contínuo. Neste artigo fazemos um breve resumo da questão dos recursos naturais no Saara Ocidental.

Terra rica, povo empobrecido

O Saara Ocidental é incrivelmente rico em recursos naturais. Suas reservas – não-renováveis - de água são utilizadas de maneira ilegal e abusiva em estufas pertencentes a um conglomerado da família real marroquina com a França na cidade ocupada de Dakhla. As frutas e legumes ali produzidos são em seguida exportados a supermercados na Europa. Suas ondas são utilizadas por desavergonhados turistas de kite-surfing e agências de viagem. Sua energia solar e eólica é capturada para uso em grandes projetos de energia renovável e sua areia é coletada e embarcada para adornar as praias das Ilhas Canárias espanholas.

O território possui imensas áreas pesqueiras, reservas de sal e é liderança mundial em reservas de fosfato (insumo fundamental para a produção de fertilizantes agrícolas). Apenas em 2014, a mina de fosfato Fos Bucraa gerou um total aproximado de 2,1 milhões de toneladas de fosfato, num valor próximo a 230 milhões de dólares. Possivelmente, pode surpreendentemente vir a liderar também - em termos comerciais – no mercado do petróleo (WSRW, 2015).

Imagem registra o início das operações da mina de fosfatos de Bu Craa. Crédito : Autoria desconhecida. El Aaiun, Saara Ocidental, 1974.

No final de 2014, início de 2015, a exploração marítima de petróleo (chamada de offshore) pela Kosmos e a Cairn Energy foi iniciada em Boujdour, seguida da exploração em terra (conhecida como onshore) pela San Leon, perto de El Aaiun ocupada.

São muitos os governos e as empresas envolvidos na pilhagem do Saara Ocidental, englobando tanto os suspeitos de sempre - multinacionais com sede nos Estados Unidos, Reino Unido e França, além da União Europeia - mas também algumas surpresas, incluindo o governo da Venezuela, que apoia a Frente Polisario, assim como empresas sediadas em outros países, supostamente apoiadores da causa.

A enorme quantidade de riqueza acumulada pelo Marrocos na venda de recursos naturais oriundos do Saara Ocidental ajuda na compensação dos recursos gastos pelo país com a ocupação. Não se pode esquecer que um terço dos marroquinos presentes em território saaraui são soldados, e além deles há também um número grande e desconhecido do público de policiais civis, agentes à paisana, policiais militares, agentes do Ministério do Interior e de órgãos de inteligência. Por fim, devem ser contabilizados também os custos associados à manutenção do infame muro marroquino, a mais extensa barreira militar em funcionamento (com 2,5 mil km de extensão), patrulhada por 100 mil soldados (Zunes; Mundy, 2010:158 e San Martín; Allan, 2007).

Acordos formais para exploração de recursos naturais firmados entre o Marrocos e a União Europeia, por exemplo, ou com outros Estados e grandes multinacionais, referem-se ao Saara Ocidental como parte do território marroquino, ajudando a perpetuar a ocupação. São também cúmplices nas violações dos direitos humanos cometidas contra a população saaraui nos Territórios Ocupados e fragilizam o processo de paz encabeçado pela ONU. Adicionalmente, no caso de recursos não-renováveis, a pilhagem também significa que o povo saaraui será privado da riqueza de seu próprio país quando finalmente alcançar sua independência, sem mencionar a degradação ambiental que as atividades de pesca já tem causado (OSRN, 2013).

A população do Saara Ocidental não é beneficiária desta intensa exploração. Saarauis nas zonas ocupadas tem manifestado quase que cotidianamente seu descontentamento, exigindo o pleno gozo de seus direitos econômicos, sociais e culturais, bem como o fim da exploração dos recursos naturais destes territórios. No fim de dezembro de 2015, por exemplo, a polícia marroquina reprimiu violentamente um grupo de estudantes saarauis desempregados, muitos dos quais acabaram gravemente feridos. Entidades de direitos humanos como a Human Righst Watch, Anistia Internacional, RFK Foundation, assim como relatores especiais das Nações Unidas, tem salientado as constantes violações cometidas pelo Marrocos nestas zonas ocupadas. Abusos vão de insultos verbais à intimidação por parte da polícia marroquina ou de agentes do Estado contra os saarauis, passando por detenções, tortura e execuções extrajudiciais. Recentemente, especialistas em direitos humanos saarauis e espanhóis descobriram valas comuns no Saara Ocidental nas quais se acredita estarem enterrados saarauis vítimas de execuções em massa (Beristain; Hidalgo, 2009).

Pilhagem internacional de recursos do Saara Ocidental: ilegal e ainda assim ignorada

A exploração de recursos naturais do Saara Ocidental por parte do Marrocos e de seus parceiros é absolutamente ilegal. Em uma reposta direta à exploração conduzida pela indústria petrolífera nos territórios ocupados, o Conselho de Segurança da ONU emitiu um parecer em 2002 afirmando que qualquer prospecção ou extração de recursos naturais do Saara Ocidental sem o consentimento do povo saaraui seria uma violação do direito internacional. O autor desta opinião jurídica no âmbito da ONU criticou a Kosmos, uma das empresas mencionadas anteriormente por suas atividades extrativas no Saara Ocidental, enfatizando a imoralidade e a ilegalidade de suas atividades (Corell, 2002). O ano de 2015 também foi marcado por um avanço normativo no âmbito da União Africana (UA) com a publicação de um parecer jurídico consultivo acerca da prospecção e extração de recursos naturais no Saara (The African Union, 2015). O parágrafo 60 deste parecer sintetiza bem o panorama jurídico da questão e clama por um boicote pan-africano a todas as entidades e países envolvidos na espoliação:

“(...) A prospecção e extração de recursos naturais por parte do Marrocos, de qualquer outro Estado, grupo de Estados ou empresas estrangeiras contratadas pelo Marrocos no Saara Ocidental é ilegal, uma vez que violam o direito internacional e as resoluções da ONU e da UA. A exploração de recursos naturais é também uma ameaça para a integridade e prosperidade do povo do Saara Ocidental. A este respeito, as empresas estrangeiras e qualquer outro Estado ou grupo de Estados firmando acordos/contratos com o Marrocos para a extração de recursos naturais do Saara Ocidental estão colaborando e sendo cúmplices de uma situação ilegal e, portanto, tais acordos/contratos são inválidos.”

Corporações, Estados e grupo de Estados como a UE se negaram a consultar a Frente Polisário, representante legítima do povo saaraui no processo de paz liderado pela ONU, sobre seus planos de comprar recursos saarauis do Marrocos. Tampouco têm dialogado com a sociedade civil saaraui, cada vez mais vocal em seu “não” à extração de recursos naturais de seu território.

Nos Territórios Ocupados, manifestantes põem em risco – como visto anteriormente – sua vida e sua integridade física ao se contraporem às autoridades marroquinas enquanto denunciam as atividades de empresas estrangeiras envolvidas na pilhagem. Enquanto isso, nos campos de refugiados, grupos tais como o Observatório Saaraui de Recursos Naturais (OSRN) e a Campanha Saaraui Contra a Pilhagem (SCAP) têm sensibilizado ao tema da extração de recursos e mobilizados os refugiados. Um recente protesto contra a empresa petrolífera britânica/irlandesa San Leon conseguiu agregar 8 mil pessoas no campo de refugiados de Auserd [1] .

Não cabe apenas aos saarauis denunciar esta espoliação. Cidadãos dos países envolvidos nesta exploração ou que são sede de empresas que realizam a pilhagem são também partes-interessadas e podem incluso estar, ainda que sem conhecimento de causa, consumindo bens saqueados. Ativistas internacionais solidários com grupos como o Western Sahara Resources Watch (WSRW) podem incidir sobre as empresas envolvidas na exploração destes recursos naturais em seu próprio país de origem. Eles contatam estas empresas, explicando-lhes as implicações morais e legais de seus atos. Caso as mesmas não cessem suas atividades, os ativistas passam a denunciá-las na mídia e a encorajar seus principais acionistas a desinvestir, já tendo logrado alguns sucessos significativos neste sentido [2]. Realizar pesquisas investigativas sobre as atividades das empresas envolvidas na exploração de recursos naturais também é fundamental. Um relatório nestes moldes, feito pela WSRW, foi o único ser admitido pelo Tribunal Europeu como prova no recente caso da Frente Polisário contra a UE [3].

Imagem registra o início das operações da mina de fosfatos de Bu Craa. Crédito : Autoria desconhecida. El Aaiun, Saara Ocidental, 1974.

Comentário

A exploração estrangeira e ilegal dos recursos naturais de um país colonizado viola o direito internacional. Ainda sim, países e empresas multinacionais seguem impunimente com seus atos criminosos, destruindo o presente e o futuro de populações inteiras apenas para satisfazer sua ganância. No caso do Saara Ocidental, a recente sentença emitida pelo Tribunal de Justiça Europeu é muito importante no sentido de punir tanto o Marrocos quanto a UE ao anular um acordo firmado por ambos para saquear recursos de um território ocupado.

A questão é ainda mais grave dado que afeta drasticamente a biodiversidade das ricas águas saarauis, além das outras ameaças que o extrativismo exacerbado tem causado ao meio-ambiente da região. É por isso que o parecer jurídico da União Africana, acima mencionado, concluiu claramente que:

“A ONU deve assumir suas responsabilidades políticas e jurídicas e proteger os recursos naturais renováveis ou não-renováveis saarauis, como o fez no Timor Leste e na Namíbia até que o povo do território possa expressar sua vontade e escolher o seu destino por meio de um referendo livre e justo.”

Imagem de satélite mostra a esteira que leva o fosfato da mina de Bu Craa até o porto. Crédito : Google Maps

Esta seria, é claro, a posição que a ONU deveria tomar. Será, no entanto, capaz de agir em conformidade com o direito internacional depois de tantas décadas tolerando uma ocupação ilegal em detrimento das vidas, do futuro e dos interesses de uma nação inteira sob o domínio colonial?

Notes

[1Ver um vídeo destas manifestações em: https://www.youtube.com/watch?v=3HNHdqBQYfw

[2Nos últimos 12 anos, diversas empresas cessaram suas atividades no Saara Ocidental após terem sido abandonados por alguns de seus principais acionistas e ter recebido coberturas negativas na mídia fruto do trabalho de entidades como a WSRW.

[3WSRW, “Tribunal Europeu anula acordo comercial entre UE e Marrocos”: http://wsrw.org/a105x3314

Commentaires

Malainin Lakhal é membro do Observatorio Saharaui de Recursos Naturales (OSRN) - www.osrn.info, e Joanna Allan é presidente do Observatório de Recursos do Saara Ocidental (WSRW) - www.wsrw.org.

Referências

Beristain, Carlos Martín e González Hidalgo, Eloísa. “The Oasis Of Memory, Historical memory and human rights violations in the Western Sahara”. Hegoa: San Sebastián, 2009. Disponível em: http://publicaciones.hegoa.ehu.es/assets/pdf2s/284/Resumen_Oasis_Ingles_e_Italiano.pdf?1386778905

Corell, Hans. "Letter dated 29 January 2002 from the Under-Secretary-General for Legal Affairs, the Legal Counsel, addressed to the President of the Security Council." In S/2002/161, Editada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, 2002. Disponível em: http://www.arso.org/UNlegaladv.htm-

Corell, Hans. "The Responsibility of the UN Security Council in the Case of Western Sahara." International Judicial Review, Inverno, 2015.

Observatorio Saharaui de Recursos Naturales. "Saharawis: Poor People in a Rich Country". Disponível em: http://www.wsrw.org/files/dated/2013-11-26/snrw_report_eng2013.pdf

San Martín, Pablo, e Allan, Joanna. "The Largest Prison in the World: Landmines, UXOs and the Role of the UN in the Western Sahara." Madrid, 2007.

The Office of the Legal Counsel and Directorate for Legal Affairs of the African Union Commission. "Legal Opinion on the Legality in the Context of International Law, Including the Relevant United Nations Resolutions and OAU/AU Decisions, of Actions Allegedly Taken by the Moroccan Authorities or any other State, Group of States, Foreign Companies or any other Entity in the Exploration and/or Exploitation of Renewable and Non-Renewable Natural Resources or any other Economic Activity in Western Sahara." 1-16. The African Union: Addis Ababa, 2015.

Western Sahara Resource Watch. "P for Plunder: Morocco’s exports of phosphates from occupied Western Sahara, 2012-2013." http://www.wsrw.org/a105x3185, 16 de março de 2015.

Zunes, Stephen, and Mundy, Jacob. War, Nationalism and Conflict Irresolution. Syracuse University Press: Nova York, 2010.