Janeiro de 2016
O conflito do Saara Ocidental carrega o estigma da geopolítica desde seu início. Na verdade, é possível afirmar que a geopolítica permeia tudo aquilo que se relaciona à questão da independência do Saara Ocidental, dado que o tema tem se inserido sistematicamente na agenda de segurança das grandes potências, influenciando e sendo influenciado por cálculos militares e pela estratégia de construção de ameaças – o que contribuiu significativamente para seu permanente impasse. A própria Missão de Paz para o Referendo do Saara Ocidental (Minurso), criada em 1991 e encarregada de realizar um referendo de autodeterminação que até hoje não aconteceu, é incapaz de impor um mandato de monitoramento dos direitos humanos devido ao veto persistente da França, uma das principais aliadas do Marrocos – que ocupa militarmente o território desde 1975 – no Conselho de Segurança da ONU.
Contra a tendência liberal predominante que visa compreender o atual estágio do conflito unicamente pela ótica da missão de paz ou através dos esforços de negociação e construção de medidas de confiança, neste breve artigo valorizamos a geopolítica como fator explicativo e necessário para qualquer reflexão ou tomada de decisão política quanto à resolução deste conflito que já dura 40 anos.

Geopolítica dos recursos naturais
Localizado na região do Magreb árabe, ao noroeste da África, o Saara Ocidental é o único território africano cuja descolonização ainda está pendente, figurando-se no âmbito das Nações Unidas como território não-autônomo. Abrangendo uma área de cerca de 266.000 km² em pleno deserto saariano, o território é rico em recursos naturais, com uma das maiores reservas de fosfato do mundo, ao lado da extração de minério de ferro, pesca e areia. Nos últimos anos, também têm crescido as especulações sobre seu potencial em reservas de petróleo e gás natural.
O condicionamento do Saara Ocidental a uma verdadeira geopolítica dos recursos naturais vem de longa data, desde a chegada oficial dos espanhóis em 1884, em plena partilha da África pelas potências europeias. A segurança do território para fins de interiorização, exploração econômica e colonização do povo autóctone (berberes nômades) foi garantida pela sua assimilação progressiva à corte espanhola: em 1884, alegou-se utis posidetis sobre o território na Conferência de Berlim, assegurando direito de ocupação contra investidas externas; em 1885, o território ascendeu à condição de protetorado espanhol; e em 1957, após perder uma guerra contra o recém-independente Marrocos, o governo espanhol mudou o estatuto jurídico do território, deixando de ser colônia para se tornar uma província espanhola, também conhecida como “Saara Espanhol”.
Com a criação da Frente Popular de Libertação de Saguía el Amra e Río de Oro (Frente Polisario) em 1973 e o surgimento do movimento nacionalista saaraui, somado ao quadro de crise do regime franquista na Espanha, iniciava-se o caminho para a descolonização. Em 1975, no entanto, o rei do Marrocos, Hassan II, tinha um plano geopolítico que transformaria o destino dos saarauis [1]. Após a sentença da Corte Internacional de Justiça (CIJ), estabelecendo que não havia “nenhum laço de soberania territorial entre o território do Saara Ocidental e o reino do Marrocos” (CIJ, 1975:100), Hassan agiu rápido para garantir que as “rendas estratégicas” da Guerra Fria o favorecessem. Iniciou um lobby político nos Estados Unidos com o objetivo de garantir apoio daquele país em caso de guerra, apresentando o movimento nacionalista como uma ameaça aos interesses do governo americano na região.
O primado da geopolítica logo mostrou as cartas. Na manhã seguinte ao pronunciamento da CIJ, o então secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, informou ao presidente Gerald Ford sobre o desenrolar da situação: “O Marrocos está ameaçando uma marcha massiva no Saara Espanhol. A CIJ deu uma opinião que dizia que a soberania tinha sido decidida entre o Marrocos e a Mauritânia. Isto é basicamente o que Hassan queria” (Mundy, 2005 [2]). Tendo claramente distorcido a decisão final da CIJ, Kissinger passou a pressionar a Espanha para que aceitasse uma solução favorável ao Marrocos. No dia 6 de novembro de 1975, Hassan II deu início à chamada “Marcha Verde”, que reuniu cerca de 350 mil marroquinos para apropriar-se do Saara Ocidental, representando um ato simbólico de “reconquista”. A Mauritânia também resolveu invadir o território e, nesse momento, iniciou o período de guerra que durou até 1988, ano do cessar-fogo [3] .
Com a ocupação militar marroquina, o reino encontrou uma causa sobre a qual garantir a estabilidade do regime a viabilizá-lo economicamente. Os investimentos bilionários para exploração dos recursos naturais do Saara Ocidental tornaram o Marrocos um dos maiores exportadores de fosfato do mundo. Estima-se que, apenas em 2013, foram exportadas 2,2 milhões de toneladas de fosfato do Saara Ocidental, representando um valor de cerca de 330 milhões de dólares (WSRW, 2014). Diversas empresas multinacionais operam no território ocupado, com atividades de prospecção, extração e comercialização dos recursos naturais em detrimento dos interesses do povo autóctone, o que constitui violação de diversos dispositivos jurídicos internacionais, como a IV Convenção sobre Direitos e Costumes da Guerra em Territórios e seus Anexos, o artigo 33 da IV Convenção de Genebra de 1949 e o artigo 16 da Carta das Nações Unidas sobre Direitos e Deveres Econômicos dos Estados, de 1974. A geopolítica dos recursos se mostrou ainda mais notória quando, em 2015, jornalistas denunciaram que a pré-candidata democrata à Casa Branca, Hillary Clinton, estaria recebendo doações de cerca de 5 milhões de dólares para sua campanha, através da OCP, estatal marroquina que controla uma das maiores minas de fosfato do Saara ocupado (NCR, 2015).
A fabricação de terroristas do deserto
Sendo um dos principais aliados dos Estados Unidos no mundo árabe, o Marrocos tem recebido significativo apoio econômico e militar daquele país em razão de suas agendas de segurança e estratégias geopolíticas, que acabam revelando-se rendas estratégicas para a monarquia persistir com sua política de ocupação do território saaraui . Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos temiam que uma expansão soviética advinda da África subsaariana tornasse o Saara Ocidental um centro de irradiação dos ideais socialistas. Portanto, não somente era importante que mantivessem a monarquia estável naquele período, como também se assegurassem de que o Saara Ocidental não se tornasse independente, pela “ameaça” que representava aos seus interesses. Isso explica em grande medida porque, entre 1975 e 1990, o Marrocos obteve mais de 1/5 do auxílio total dos Estados Unidos para a África, sendo mais de 1 bilhão de dólares em assistência militar e 1,3 bilhões de dólares em assistência econômica (Zoubir, 2010: 985).
Com o fim da Guerra Fria, a “ameaça” não cessou de existir, mas transformou de rótulo, cuja característica atual é a Guerra Global contra o Terrorismo, liderada pelos Estados Unidos desde 2001. A região do Magreb árabe está passando por uma reconfiguração das dinâmicas de segurança desde que os Estados Unidos começaram a investir em iniciativas contra-terroristas, como a Pan-Sahel Inititiative (2002) e o Trans-Sahara Counterterrorism Partnership (2005), com o objetivo de derrotar a Al Qaeda in the Islamic Maghreb (AQIM) e outras organizações terroristas regionais, como o Boko Haram. Fortalecendo as capacidades coercitivas de regimes regionais, especialmente o Marrocos, tais medidas, com seu viés essencialmente militarizado, repercutiram negativamente, alimentando, paradoxalmente, grupos que se radicalizavam como resposta a repressão política interna de certos regimes do Magreb e do Sahel.
Nessa dinâmica, o reino do Marrocos pôde aproveitar-se uma vez mais das rendas estratégicas da geopolítica global, construindo maiores empecilhos para o processo de independência e corroborando na construção de um imaginário (geo)político no qual os saarauis são percebidos como ameaça e os acampamentos de refugiados, como um espaço não-governado que fomenta atividades de tráfico e recrutamento por organizações terroristas locais. A despeito da pressão internacional cada vez maior para que o Marrocos se retire do território e cesse com a exploração dos recursos naturais, a estratégia utilizada pelo reino como tentativa de desviar a atenção dos problemas internos de seu país (desemprego, repressão, pobreza, etc.) e da comunidade internacional, a fim de conquistar apoio à anexação do território, tem se dado em grande medida pelo mecanismo da adjetivação do movimento saaraui como terrorista.
A propaganda ideológica do reino marroquino, denunciada por muitos acadêmicos e jornalistas [4], é difunda através de agências de imprensa e think tanks renomados. Uma manchete da revista Time, por exemplo, afirma: “Há uma nova ameaça terrorista emergindo no Saara Ocidental, e o mundo não está prestando atenção” (Time, 2014); de maneira semelhante, uma chamada do jornal The Washington Post declara: “Afiliada do Al Qaeda flexiona seus músculos no Magreb” (The Washington Post, 2011), em referência aos acampamentos do Saara Ocidental; e no think tank Carnegie Endowment, vemos o título do seguinte estudo: “Fervendo descontentamento no Saara Ocidental” (Boukhars, 2012).
Esse imaginário político, fixado em alguns dos principais centros de tomada de decisão do ocidente, é extremamente contraproducente para qualquer esforço de reconciliação. Como argumenta a antropóloga Kristina Isidoros:
“Os saarauis são notáveis por observarem um islã pacífico e uma tradição literária milenar. Eles são o grupo menos provável de querer estar envolvido com uma ‘entidade da Al-Qaeda’, porque seu objetivo principal é o de conquistar direitos internacionais aceitáveis. (...) Qualquer envolvimento com ‘fundamentalismo extremo’ e ‘terrorismo’ devastaria suas chances de alcançar seu direito internacional e de retornar à sua terra. (...) Ainda, enquanto refugiados habitando acampamentos, eles estão sob uma extrema observação pública por centenas de visitantes estrangeiros como funcionários humanitários, políticos e acadêmicos.” (Isidoros, 2010:65).

Comentário
Qualquer decisão política fazer avançar o processo de independência do Saara Ocidental deve levar em conta a configuração geopolítica que tem condicionado o protelamento do conflito a um permanente impasse. Embora a Minurso seja ainda relevante para a manutenção do acordo de cessar-fogo e da estrutura de apoio humanitário, a ONU esgotou todas as possibilidades de uma reconciliação com base na negociação e concessão mútua entre as partes, a Frente Polisário e o Marrocos. Apenas uma visão realista calcada nas dinâmicas locais e internacionais do poder dão conta do fato de que os atuais esforços diplomáticos da ONU acabam sendo benéficos para o reino marroquino e sua infraestrutura bilionária de exploração dos recursos naturais saarauis, além da urbanização e integração crescentes da sociedade em território ocupado à monarquia.
Enquanto isso, os saarauis que sonham com a independência permanecem à revelia desse grande jogo de estratégias políticas cruzadas. Nesse sentido, as alternativas políticas para o fim do conflito passam necessariamente pelo ativismo da sociedade civil de cada país no mundo, pressionando seus respectivos governos a reconhecerem a independência saaraui e proibindo empresas de participarem de atividades de prospecção, exploração e comercialização dos recursos naturais do território ocupado, que constitui uma violação ao direito internacional.
Longe de idealizadas, tais iniciativas seguem uma tendência estabelecida que já tem repercutido efeitos bastante positivos para os saarauis. Apenas para dar um exemplo recente, a Frente Polisario acabou de ganhar uma batalha judicial no tribunal europeu que exclui o território ocupado do acordo comercial entre Marrocos e a União Europeia. Conforme explicita a sentença, quando da formulação do acordo, o Conselho Europeu “deveria ter se assegurado de que não havia indícios de uma exploração dos recursos naturais do território do Saara ocidental sob controle marroquino que pudesse ser realizado em detrimento de seus habitantes e em violação aos seus direitos fundamentais” (El País, 2015).
Apesar do vibrante movimento ao redor do mundo de resistência não-violenta, os saarauis não descartam a opção de retomar o conflito armado, na medida em que há um sentimento de frustração crescente devido à marginalização e ao silenciamento perante o mundo. Nesse quadro, resta a conscientização política de uma sociedade civil solidária e engajada com a independência saaraui, que pressione seus governos para reverter esse quadro de crise humanitária.