Janeiro de 2016
Há um jargão no jornalismo para determinar se um assunto merece ou não um pedaço do disputadíssimo e limitado espaço de suas páginas: é o termo “noticiável”. Para saber se um assunto é noticiável ou não, aprendemos, há que se fazer um cálculo subjetivo e ideológico para determinar o quanto supostamente ele interessa às audiências. Na conta, para além dos interesses e especificidades do veículo, o jornalista deve levar em conta fatores como atualidade, proximidade, proeminência, raridade e frequência. Essa matemática política nunca fechou para o Saara Ocidental.
Em países como o Brasil, até muito pouco tempo atrás, não era possível encontrar uma linha sequer sobre o tema na chamada mídia tradicional e mesmo nos veículos considerados alternativos ou independentes. Era o que classificaríamos como um não-tema. Evidentemente esses níveis de exposição e interesse variam de um lugar a outro, mas, mesmo em regiões geográfica e historicamente ligadas ao conflito, como é o caso da Europa, pode-se dizer que o esquecimento do conflito saaraui é crônico.
Há um único flanco a partir do qual se resiste internacionalmente a esse apagamento: o da solidariedade. Para os que ocupam esse lugar, há questões humanitárias, históricas, de legalidade e de justiça suficientes para considerar a situação do Saara Ocidental, a última colônia africana, um dos maiores escândalos políticos e sociais do século XXI. Parte desse grupo pequeno, mas crescente, reuniu-se nesse dossiê para pensar em três tempos – passado, presente e futuro – o devir do conflito, que chegou no dia 27 de fevereiro de 2016 ao seu ano quarenta.
Essas análises foram somadas a testemunhos e aportes de homens e mulheres saarauis que, a partir da pesquisa, das artes, da política e do jornalismo construíram um tipo de espera ativo e incansável – uma das mais extraordinárias experiências de resistência de nossos tempos.
Parte 1 : Um país no exílio | A guerra, a ocupação e a fundação da República
Na primeira parte, voltada para os inícios do conflito, a antropóloga espanhola Sonia Vergara Ruiz reconstrói o processo de conformação histórica da identidade e do nacionalismo saaraui. A pesquisadora brasileira Carla Ricci, especializada em Oriente Médio e África muçulmana, explica a invasão marroquina do território antes ocupado pela Espanha e a difícil busca por refúgio no exílio do povo saaraui. Adriano Smolarek, professor de Direito Internacional Público na Universidade Estadual de Ponta Grossa, no Brasil, fala sobre os aspectos legais da ocupação e os interesses ocultos de cada ator político envolvido nesse processo. O capítulo é aberto por um poema do jovem saaraui Hamza Lakhal, que vive sob o jugo marroquino na capital ocupada de El Aaiun, e um testemunho marcante da refugiada saaraui Senia Bachir. Ela traça paralelos entre a história de fuga e sobrevivência de sua família e os desafios que encontrou para conseguir estudar no exílio.
Parte 2 : Um país dividido | Vivendo entre o refúgio e a ocupação
O segundo capítulo se volta aos desafios impostos pela divisão do povo e do território saaraui. Malainin Lakhal e Joanna Allan fazem um panorama da situação de espólio dos recursos naturais controlados pelo Marrocos no Saara ocupado e os passos que têm sido dados no sentido de acabar com o saqueio do território. Eneko Calle, da Coordenação Vasca de Associações de Solidariedade com o Povo Saaraui “27 de Fevereiro – Otsailak 27” fala sobre a importância da rede internacional de apoio ao povo saaraui para aliviar o drama humanitário vivido nos acampamentos de refugiados. Rodrigo Duque Estrada, pesquisador do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais da PUC-SP, discorre sobre o uso da geopolítica pelos atores envolvidos no conflito e a recente manobra de associar a luta saaraui à emergência de movimentos terroristas na região do Magreb. Ainda neste capítulo, um testemunho da jornalista saaraui Agaila Abba sobre a importância da solidariedade internacional para a formação de um novo “caldo cultural” nos acampamentos de refugiados e um relato do poeta saaraui Hamza Lakhal sobre a opressão marroquina nos territórios ocupados.
Parte 3 : Um país em construção | Acabar com a espera, alcançar o reconhecimento
O capítulo final reúne questões associadas ao estado da arte do conflito e os esforços que vêm sendo feitos a partir da cultura e da política para destravar o processo de autodeterminação. Em uma longa entrevista, o representante da Frente Polisário no Brasil, Mohamed Zrug, fala sobre a nova fronteira do trabalho diplomático saaraui – a conquista de democracias emergentes como a brasileira, com significativo peso internacional, e seu potencial de transformação do debate nos foros multilaterais. A antropóloga espanhola Jara Romero, por sua vez, busca na história da música e da poesia saarauis saídas contemporâneas para os desafios da sensibilização e comunicação da causa em escala global. O capítulo traz, ainda, mais um relato de Senia Bachir sobre a latente – e legítima – preocupação da juventude saaraui com a efetividade das estratégias pacíficas de resistência.