Os textos desta coletânea relatam práticas de formação que sensibilizam para questões contemporâneas, em especial as que indagam um modelo educacional pouco aberto às dimensões estéticas, corporais, sensitivas, cooperativas. Por outro lado, valorizam uma concepção de espaço educativo para além do universo escolar tradicional, enfatizando a importância de contato cotidiano com a natureza, movimentação ampla, expressão de múltiplas linguagens, música, dança, teatro, produção textual, participação em fóruns, aulas abertas...
Para além da formação estritamente teórica, os textos revelam outras possibilidades de reflexão sobre a realidade, que incluem os sentidos, o sensorial, o afetivo, o encontro, a interação com o universo natural-social de que somos parte. Eles evidenciam uma concepção de educação que não se limita à apropriação de conhecimentos via razão (teorias de desenvolvimento humano, concepções de sociedade, de educação, de escola, de infância). Pois não estamos interessados apenas por uma leitura critica da realidade. Queremos criar espaços de formação que favoreçam, façam emergir, recuperar ou seduzir à brincadeira, ao jogo, à livre expressão, à criatividade, ao que flui e emerge, acontece... (Deleuze, 2003).
Os textos – que compõe o acervo da Rede Humanidade Criança [1]
– foram escritos por professoras brasileiras vinculadas aos Cursos de Especialização e Extensão em Educação Infantil/CEDEI, uma iniciativa do Ministério de Educação em parceria com a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Eles são relatos de práticas desenvolvidas com o objetivo de formar professores, coordenadores, diretores de creches e pré-escolas e equipes de educação infantil das redes públicas de Educação Infantil, tendo como referência o direito das crianças ao desenvolvimento pleno. Vale esclarecer que através do projeto de extensão FINAflor (Forum Infancias da Natureza) cadastrado na UNIRIO, é retomada e potencializada uma trajetória que se desenrolou nos últimos 16 anos, em iniciativas de registro das experiências sustentáveis pelos próprios sujeitos destas práticas, através da produção de pequenos artigos no formato específico das redes “humanidade criança” - vinculada às redes internacionais : Diálogos, Propostas e Historias para uma Cidadania Mundial (DPH)”e COREDEM.
Hoje, a Rede DPH reúne cerca de 7.500 pequenos artigos que relatam experiências, análises, leituras e dossiês, colocando em contato indivíduos e grupos que trabalham para a construção de um mundo plural, solidário e responsável. Alimentando a produção desses artigos, a Fundação promove, há mais de 20 anos, o intercâmbio internacional de experiências - condição de um conhecimento útil à ação – e apóia a criação de sub-redes, entre elas, a “rede humanidade criança”.
Para além da UNIRIO, o Cursos de Especialização e Extensão em Docência na Educação Infantil são oferecidos por cerca de 25 Instituições de Ensino Superior/IES. Sua realização tem como protagonistas as IES e o Ministério de Educação/MEC, envolvendo a Secretaria de Educação Básica/SEB, através da Diretoria de Concepções e Orientações Curriculares para a Educação Básica, a Coordenação Geral de Educação Infantil (COEDI) e a Diretoria de Políticas de Formação. O Projeto básico foi estruturado em dinâmica dialógica que envolveu professores das IES na elaboração de uma matriz curricular. A implementação é acompanhada pelo MEC, privilegiando-se a estratégia de troca de experiências e construção coletiva, de forma a constituir-se uma rede entre as agências formadoras e o Ministério. Em 2013, o processo de avaliação permanente pelo coletivo de universidades/professores das IES levou à elaboração de uma nova matriz, que prioriza uma formação para a qualificação da docência, isto é, para a transformação das práticas pedagógicas em curso.
Fazer cumprir das DCNEI : este é o desafio fundamental, se queremos de fato tornar realidade o que está afirmado na lei. Como fazê-la sair do papel : esta é a pergunta central para nós, educadores, pensadores da formação – inicial e em serviço - de profissionais que atuam junto às crianças ? Pergunta que nos mobiliza porque, em seu conjunto, as novas DCNEI contém elementos de um novo paradigma, de uma nova visão de ser humano, de conhecimento, de educação e de escola que não estão asseguradas nos referenciais teóricos que são hegemônicos na sociedade nem nas instituições formadoras.
Hoje, que escolas temos ?
Em que medida as crianças brasileiras, frequentadoras de redes públicas desfrutam efetivamente de seus direitos à brincadeira, aos movimentos amplos, à expressão de sentimentos, à criatividade, à inventividade ? Ainda que assegurados em lei, de fato, esses direitos não estão garantidos, e o que assistimos, na grande maioria das creches e pré-escolas do país, é à rotinas que ensinam, desde a mais tenra idade, o controle dos impulsos, a sublimação dos desejos de expansão, o não questionamento da ordem estabelecida, a submissão à autoridade do adulto (posteriormente, a do chefe), a impossibilidade de “pronunciar a palavra”.
Alguém poderá objetar que os tempos mudaram, que hoje vivemos numa democracia, que dispomos de legislação que afirma o direito das crianças e o dever do Estado na oferta de creches e pré-escolas comprometidas com educação integral.
É verdade, mudou o regime de governo da sociedade brasileira. Mas não mudou o sistema econômico. Portanto, não mudou a função social da escola, ela segue em linhas gerais, cumprindo os papéis para a qual foi criada : preparar as novas gerações para a reprodução do status quo ! Crianças e jovens não são considerados por seus interesses, desejos e necessidades atuais, mas têm sua infância e juventude apressadas por um modelo de desenvolvimento que tem a acumulação e o lucro como horizontes. O modo de funcionamento da escola é regido pelo imperativo de reprodução de uma lógica socioeconômica que é voltada para os interesses de mercado.
Com este objetivo, o poder disciplinar é aceito e praticado “naturalmente”, mantendo o fosso entre direitos declarados e a realidade cotidiana de crianças e adultos em instituições educacionais. Filas do pátio para a sala de atividades, do refeitório para o banheiro, longas esperas, pouco tempo destinado ao que mais interessa às crianças : brincar livremente, exercer sua curiosidade, seu espírito pesquisador frente ao que a realidade lhes apresenta, em termos físicos, sócio-culturais, afetivos. Se, de acordo com as DCNEI, as crianças são o centro da proposta pedagógica, por que elas não têm sequer o direito de circular livremente pelos espaços que, por direito, são seus ? Considerando que é no aqui e agora dos espaços e rotinas das creches, nos atos e expressões que permeiam as relações entre adultos e crianças que asseguramos, ou não, “a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais” (ECA, art.15), a transformação desta realidade não depende apenas da lei, porque, como afirma Guimarães (2003) :
A raiz do problema educativo está fora da escola, e uma outra educação só será viável em larga escala quando a experiência cotidiana de cada cidadão, de cada comunidade ou de cada grupo social – em sua vida e em seu trabalho, em seu modo de comportamento e em suas relações com os outros – se transformar em fonte de questionamento, de criatividade, de participação e de conhecimento. ( p.54)
Neste momento, em que o grande desafio é o de materializar as DCNEI - fazer com que cada artigo torne-se realidade, seja exercitado todos os dias como direito das crianças - é preciso ter em conta que a transformação exige mudança no olhar da sociedade. E não apenas mudança no olhar para as crianças, mas também para a vida, no sentido de responder : que compromissos éticos devemos assumir, o que é realmente importante oferecer às novas gerações, em termos de espaços, tempos, interações, cuidados, aprendizagens ?
Apostamos em metodologias de formação que convidam os professores a vivenciar o que os discursos teóricos do campo da educação infantil, assim como os documentos nacionais que orientam as práticas pedagógicas apontam como fundamentais para as crianças : brincadeiras, música, dança, teatro, artes visuais, literatura, movimentação ampla em espaços abertos, convívio e desfrute da natureza.
Buscamos superar as práticas de formação que se limitam à transmissão teórica, ousando romper com os divórcios típicos da modernidade, entre conhecimento e vida, corpo e mente, razão e emoção, através de metodologias que são teórico-cantantes, teórico-dançantes, em processos de formação que considerem os seres humanos em todas as suas dimensões : corporais, emocionais, cognitivas, espirituais, culturais, ambientais.
Assim, os textos desta coletânea buscam dar respostas a estas indagações.
Foram escritos a partir de experiências metodológicas, oferecidas por uma equipe de formadores que inclui professores da Escola de Educação de Música e de Teatro da UNIRIO, além de outros, vinculados à Escola Angel Viana, ao Instituto Antrophus e ao Núcleo de Artes da Urca (NAU). Inclui também estudantes monitores de pedagogia, música, teatro, dança, artes cênicas e ciências ambientais, que atuam diretamente com as professoras-cursistas, no contexto das aulas que integram a programação do curso. . Respostas que nasceram de um compromisso com as crianças, com a alegria com a vida que pulsa no cotidiano, portanto, com a subversão de uma ordem escolar que apresiona.
Abrindo a coletânea, está o texto de Léa Tiriba, Ensaiando práticas de formação teórico-brincantes, que apresenta a centralidade das brincadeiras, das interações com o universo sócio-ambiental e a aprendizagem-ensino da democracia como opções filosóficas, políticas e conceituais dos Cursos de Especialização e Extensão em EI. O segundo texto de Adrianne Ogêda Guedes e Nuelna Vieira, Arte, corpo e natureza na formação estética de educadoras/es da infância expõe de forma geral a metodologia trabalhada no curso de Extensão em Educação Infantil, tendo como objetivo qualificar os profissionais, no que se refere aos princípios teórico-práticos do campo das Artes, promovendo relações com as experiências cotidianas na Educação Infantil. No terceiro texto de autoria de Léa Tiriba, Interações, brincadeiras, paixão pela natureza, a autora parte da premissa de que somos seres da natureza para justificar a paixão das crianças pelos espaços ao ar livre, e apresenta razões para que satisfaçamos essa procura dos pequenos por brincadeiras em contato com elementos do mundo natural no ambiente escolar.
O quarto texto, escrito por Nuelna Vieira, Acolher : um convite para acessar o coração, saindo da tensão e encontrando um estado de atenção aos afetos aborda a metodologia da “Acolhida” como encontros capazes de ampliar as possibilidades de relação com o próprio corpo e tecer elos entre corpo, sentimentos e razão. O quinto texto O brincar como dimensão cultural humana e como direito da criança, de autoria de Nubia de Oliveira Santos trata do lugar da brincadeira na educação infantil, compreendendo-a numa perspectiva cultural humana, como direito da criança e, por conseguinte, como eixo articulador do trabalho na Educação Infantil. O sexto texto, intitulado A criança, o palhaço e o professor : acontecimento e primeiro olhar, que tem como autora Flavia Reis, traz uma experiência que relaciona os princípios dos treinamentos dos palhaços com o trabalho dos professores. Aqui, a autora aposta na ideia de que os conceitos que acompanham os gestos do palhaço – quando ele se deixa acontecer no encontro com a criança – seriam os mesmos que acompanham o professor numa relação com a criança, que vai além do simples ensino-aprendizagem, é uma relação de encontro, que tem a ver com uma qualidade de presença : olhar, escuta, relação com o corpo da criança, relação com o corpo do profissional.
O sétimo texto escrito por Joana Ribeiro da Silva Tavares & Marito Olsson-Forsberg, Temas, estratégias, materiais e sabores - relatos de uma oficina de dança, aborda a dança como lugar de conhecimento e consciência corporal no cotidiano. Apresenta exercícios sobre a sensorialidade como uma (re-)descoberta proprioceptiva do corpo, com o objetivo de investigar “por onde começamos a dançar.” O oitavo texto, A dança como experiência de conexão com o mundo é de autoria de Andrea Jabor e tem como foco a importância da experiência de movimento, mais especificamente o lugar da dança na formação de educadores que trabalham com crianças pequenas. O nono texto Manifestações populares brasileiras e educação infantil : Um bom encontro de André Grabois, Igor Siqueira e Léa Tiriba trata de metodologias lúdicas, artísticas, ecológicas e corporais mais especificamente as oficinas de práticas de danças populares brasileiras como possibilidade de enriqueciomento e humanização do espaço escolar infantil, conectando corpo, cultura e meio-ambiente.
O décimo, Artes visuais : contextualizações sobre o fazer, o apreciar e o teorizar, escrito por Gabriela Moretti, Moema Quintanilha e Terezinha Losada é um texto que apresenta a experiência de três oficinas de artes plásticas que levaram as cursistas a dimensionar vivencialmente as múltiplas possibilidades e a importância da arte na educação infantil.. O último texto Literatura infantojuvenil : modos de ver, modos de ser, que tem como autora Rona Hanning traz uma proposta do trabalho com Literatura Infantojuvenil dentro da vertente de Artes, buscando promover, a partir de exercícios de olhar e ver com o auxílio de novas linguagens estéticas, uma ruptura de padrões previamente estabelecidos, muito comumente construídos dentro da escola, em que os paradigmas do belo/feio fincam estacas difíceis de serem removidas.
Por fim, destacamos, na produção deste trabalho, a valiosa parceria dos Grupos GITAKA (Grupo Infância, Tradições Ancestrais e Cultura Ambiental e FRESTAS (Formação, Ressignificação do Educador : Saberes,troca, Artes e Sentidos ), do NINA (Núcleo Infâncias, Natureza e Arte. Agradecemos também aos professores autores desta coletânea, as alunas dos Cursos de Extensão e Especialização da UNIRIO, assim como aos monitores e bolsista. Agradecimentos especiais a Adrianne Ogêda Guedes e Nuelna Vieira, pela importantes contribuições na realização dessa coletânea, a Eunice Muruet Luna pela participação na edições dos textos.