Emergência da extrema direita e ameaças à democracia no Brasil

Liberdade de expressão é direito em risco no Brasil de Bolsonaro

, por MIELKE Ana Claudia

O Brasil vive um momento singular de sua história. O golpe jurídico-parlamentar-midiático contra a ex-presidenta Dilma Rousseff marcou o início de um novo ciclo ao derrubar um governo democraticamente eleito e substituí-lo por um projeto não referendado nas urnas. O que se vê desde então é uma política econômica de austeridade e retirada de direitos sociais da população. Com a eleição de Bolsonaro novos desafios são impostos à nossa ainda pouco consolidada democracia, especialmente, no que se refere ao pleno exercício da liberdade de expressão.

A liberdade de expressão é um direito fundamental, base de toda sociedade democrática. Sua relevância para as sociedades modernas é afirmada no pós-guerra quando, em 1948, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), promulga a Declaração Universal dos Direitos Humanos [1]. “Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”, ratifica seu Artigo 19.

No Brasil, a histórica concentração dos meios de comunicação sempre foi um limitador ao pleno exercício do direito à comunicação [2], entendido aqui como um direito que engloba a liberdade de expressão, a garantia de receber e produzir informações e de acessar uma imprensa livre. Condições que não são possibilitadas quando 5 grupos econômicos controlam 26 dos 50 veículos de mídia mais assistidos, lidos ou acessados no país [3].

Esta concentração tem impactos significativos na livre expressão e pode, a depender dos interesses em disputa, movimentar o pêndulo da opinião pública para determinada posição. Já no início de 2015 isso ficou evidente na forma como os meios de comunicação ecoaram as divergências de opiniões acerca do governo recém-reeleito. Enquanto os protestos em defesa do governo eram pouco noticiados, as manifestações contrárias à ex-presidenta Dilma Rousseff recebiam visibilidade exaustiva no horário nobre da programação televisiva. Na imprensa escrita, declarações sobre possível fraude nas urnas e pedido de auditoria dos votos por parte do candidato derrotado nas eleições de 2014 ajudavam a inflamar os ânimos dos opositores.

Em inúmeras ocasiões, como na manifestação de 15 de março, que ficou conhecida como #15M [4], repórteres e apresentadores desempenharam o papel de mobilizadores, convocando a população brasileira a estar nas ruas. Os flashes ao vivo durante a programação daquele domingo eram acompanhados de comentários de estúdio em que se valorizava o papel “da sociedade brasileira” naquele cenário de escândalos de corrupção pela qual passava o país. Vale lembrar que a esta altura os desdobramentos da Operação Lava Jato da Polícia Federal estavam a todo vapor e eram frequentes as matérias que tentavam implicar o governo.

O dia 15 de março de 2014, milhares de pessoas marcharam em Copacabana para pedir pelo Impeachment da Presidenta Dilma Rousselff.. @Midia Ninja (CC BY-NC-SA 2.0)

A seletividade da mídia na cobertura dos protestos acompanhou todo o ano de 2015, repetindo-se nas manifestações dos anos seguintes. A mesma fórmula era usada também na cobertura da Operação Lava Jato, com diferenças significativas de tratamento dado aos desdobramentos da investigação policial a depender de quais eram os envolvidos nas denúncias de corrupção.

Vale mencionar a adição do Jornal Nacional do dia 4 de maço de 2016, quando o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva foi levado para depor de forma coercitiva pela Polícia Federal. O diário, que costuma ter em média 40 minutos de duração, teve naquele dia uma hora e vinte minutos. Foram 64 minutos de matérias acusando o ex-presidente Lula e publicizando os argumentos da Polícia Federal e menos de 13 com o lado da defesa [5] – em total desapreço pelos princípios da isonomia e do contraditório que deveriam reger o bom jornalismo.

E não são apenas as questões da política institucional que são afetadas pela falta de diversidade de vozes na mídia. A reforma trabalhista, aprovada em 2017 durante o governo de Michel Temer, recebeu majoritariamente cobertura positiva por parte dos veículos de comunicação. Um monitoramento feito pela organização Repórter Brasil mostrou que nos 10 dias em que se discutia o parecer do relator da reforma no Congresso Nacional o Jornal Nacional usou 77% da cobertura sobre a reforma trabalhista para defendê-la; já o Jornal da Record – da emissora concorrente – usou 100% de sua cobertura na defesa da reforma que estava em curso [6].

Mais uma vez essa falta de diversidade de vozes – consequência direta da concentração da propriedade dos meios de comunicação – revelou-se determinante para a formação de uma opinião pública pouco plural, em que poucos acabam por determinar consensos que afetarão a vida de muitos. Ela impede que os cidadãos reconheçam, reflitam e optem pelas melhores caminhos, encapsulando a opinião pública. E uma opinião pública que não reflete a pluralidade de opiniões de uma sociedade é, certamente, um entrave à participação cidadã e a realização da democracia.

Concentração e desinformação

Em um cenário de concentração dos meios de comunicação, a desinformação, como vem sendo tratado o fenômeno massivo das fakes news, certamente pode produzir estragos consideráveis à democracia, violando o direito à informação e à livre expressão. Não é por acaso que o uso das notícias falsas nas eleições de 2018 foi considerado “fenômeno sem precedentes” pela missão da Organização dos Estados Americanos (OEA) que esteve no Brasil para acompanhar as eleições.

Antes, porém, é preciso lembrar que a própria mídia brasileira contribuiu sobremaneira nos últimos anos para um processo de criminalização da política ao corroborar a construção de um imaginário de que “todos os políticos são corruptos” ou de “todos os políticos são iguais”. Somado a isso, boa parte dos veículos tradicionais de mídia se furtaram a realizar o debate programático sobre os projetos em disputa para o país, tratando os arroubos violentos e autoritários do então candidato Jair Bolsonaro (PSL) como mera expressão de uma personalidade controversa, folclórica.

A complacência dos veículos de mídia com as atitudes de Jair Bolsonaro, por um lado, e a criminalização da própria política pelos meios de comunicação, por outro, ajudaram a construir o atual desencantamento com a política por parte dos eleitores e, consequentemente, a produzir o fenômeno eleitoral nas urnas. E enquanto alguns veículos demonstravam indiferença, outros não negavam sua adesão total. A TV Record levou ao ar entrevista de 26 minutos realizada exclusiva com Jair Bolsonaro, o que contraria a legislação eleitoral brasileira [7]. O fato aconteceu logo após Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e proprietário da Rede Record declarar publicamente apoio ao candidato do PSL. O tratamento privilegiado dado ao candidato pela TV Record e outras emissoras é objeto de representação no Ministério Público Federal (MPF).

Nas redes sociais e, principalmente, no Whatsapp, se construía a imagem do mito – do homem que livraria o país da corrupção e também de toda sorte de “desvios morais” [8]. A distribuição massiva de mensagens com conteúdos mentirosos e caluniosos durante as eleições desafiou frontalmente a Justiça Eleitoral, que se omitiu diante do problema. As poucas iniciativas realizadas pelo conjunto da sociedade foram relativas a mecanismos de fact check criados por agências em parceria com jornais. Como eram voltados a checagem de informação noticiosa, obviamente, passaram à margem da tsunami de memes e montagens audiovisuais que inundavam as comunicações peer-to-peer.

Além disso, o escândalo envolvendo o uso do Whatsapp para distribuição massiva de mensagens trouxe à superfície a importância de outro debate, o da proteção dos dados pessoais. Ficou evidente, sobretudo, depois da publicação de denúncia, pelo jornal Folha de S.Paulo [9], que foram usados dados pessoais, como número de telefone, obtidos de forma não consentida pelos usuários para despejar nas redes informações de caráter duvidoso e muitas vezes caluniosos contra os adversários. E que esse fenômeno da desinformação estava sendo produzido em escala industrial.

Atualmente o país conta com uma Lei de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018), aprovada justamente no conturbado ano de 2018. E embora ela contenha mecanismos que viam proteger os usuários dos abusos cometidos na coleta e no tratamento dos dados pessoais, tanto por empresas privadas quanto públicas, sua execução ainda é incerta. O presidente Jair Bolsonaro converteu em lei a medida provisória do governo anterior que estabelece a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e suas competências e manteve o órgão vinculado à Presidência da República – contrariando os que defendiam uma autarquia independente. Além disso, manteve vetos a dispositivos relacionados às sanções administrativas possíveis em caso de infração.

Desmontes e Retrocessos

A eleição de Jair Bolsonaro impôs novos desafios aos brasileiros e um deles diz respeito à garantia da liberdade de expressão. Ainda quando candidato o atual presidente desferiu comentários que atacavam a imprensa livre, insinuando possibilidades de retalhação aos veículos opositores. Logo no início do atual mandato, editou decreto que alterava a Lei de Acesso à Informação (LAI) e previa novas regras de classificação de informações secretas e ultrassecretas, aumentando consideravelmente o número de agentes públicos com poderes para executar tais classificações. Por pressão da sociedade civil esse decreto e outras investidas autoritárias foram derrubadas.

O novo presidente também fez questão de nomear para cargos importantes da administração pública muitos oriundos da estrutura militar. Até maio de 2019, os militares representavam 30% dos cargos do primeiro, segundo e terceiro escalão do governo federal – índice semelhante ao período da ditadura civil-militar, entre os anos de 1964-1985. Parte considerável dos cargos relacionados à agenda do direito à comunicação foram entregues a militares, começando pela nomeação do tenente-coronel da Aeronáutica Marcos Pontes para a pasta do Ministério da Ciência, Tecnologias, Inovações e Comunicação (MCTIC) e chegando à Secretaria de Governo, com a nomeação do general Santos Cruz – exonerado em maio por divergências com o governo.

A Empresa Brasil de Comunicação (EBC), empresa pública de comunicação criada em 2009 de forma a promover a complementaridade do sistema de comunicação brasileiro entre público, privado e estatal, sofreu impactos consideráveis. Ela já vinha passando por processo amplo de sucateamento, desde a gestão anterior de Michel Temer, com redução de investimentos estatais, programa de demissão voluntária, finalização de programas, desligamento de apresentadores e até denúncias de censura a conteúdos. Em março de 2018 houve denúncias internas sobre a tentativa de diminuir a cobertura sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco, por exemplo. Além disso, foi durante a gestão de Michel Temer também que se cassou o Conselho Curador da EBC, órgão criado para garantir participação mínima da sociedade sobre os rumos da empresa.

Sob a tutela da Secretária de Governo entregue aos militares, as coisas pioraram. A programação foi alterada, dando lugar a programas que tratam de temas ligados às Forças Armadas brasileiras e o jornalismo - pensado para tratar de temas de interesse público da sociedade - passou a ser uma correia de transmissão das ações do governo, sobretudo, depois da unificação, por decreto, entre TV Brasil e NBR – algo que deu ao novo canal um perfil estatal e propagandista dos atos do executivo. Mais recentemente, o governo federal também anunciou a intenção de também acabar com a Rádio MEC AM – a mais antiga rádio em atuação no Brasil.

A busca por fortalecer a comunicação pública sempre esteve na agenda dos movimentos que lutam por maior diversidade e pluralidade na mídia brasileira. As consequências desse novo cenário para o campo do direito à comunicação no Brasil são desastrosas, sobretudo, se pensadas à luz da histórica concentração da propriedade midiática. Nesse sentido, a liberdade de expressão no Brasil não pode ser entendida dentro apenas dos limites das liberdades individuais. A concentração da propriedade dos meios, somada ao crescimento da desinformação e aos rompantes autoritários do atual governo afetam a participação cidadã e colocam em risco a própria democracia.

Notes

[1Declaração Universal dos Direitos Humanos. Genebra, 10 ago. 1948. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/wp-content...> . Acesso em: 5 ago. 2019.

[2Em resumo, o direito à comunicação se expressa no direito de todos os cidadãos à participação, em condições de igualdade formal e material, na esfera pública mediada pelas comunicações sociais e eletrônicas.

[3Pesquisa Media Ownership Monitor Brazil. São Paulo: Intervozes e Repórteres Sem Fronteiras, 2017. Disponível em: <https://brazil.mom-rsf.org/en/> . Acesso em: 4 ago. 2019.

[4Embora com mesmo nome, o 15M no Brasil não guardou similaridades programáticas com o 15M da Espanha. No Brasil foi um movimento de direita convocado por organizações como MBL, Vem pra Rua, Revoltados Online, partido Solidariedade e o movimento SOS Forças Armadas. A manifestação reuniu quase 1 milhão de pessoas em 26 estados e no Distrito Federal, e se tornou a primeira de uma série de grandes manifestações contra o governo federal.

[5CARTA CAPITAL. Operação Aletheia e a nova aula global de manipulação midiática. São Paulo, 5 mar. 2016. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/blog...> . Acesso em: 5 ago. 2019.

[6REPÓRTER BRASIL. Reforma trabalhista: maior parte da mídia não aborda o impacto negativo das mudanças. São Paulo, 5 jun. 2017. Disponível em: <https://reporterbrasil.org.br/2017/...> . Acesso em: 5 ago. 2019.

[7A Lei 9.504 de 1997, que estabelece as normas eleitorais, afirma em seu artigo 45: “Encerrado o prazo para a realização das convenções no ano das eleições, é vedado às emissoras de rádio e televisão, em sua programação normal e em seu noticiário: Inciso (quarto) IV - “Dar tratamento privilegiado a candidato, partido ou coligação”.

[8Os chamados desvios morais camuflam na verdade uma exposta intenção do atual Presidente em reduzir ou acabar com os direitos conquistados por mulheres, população negra e LGBTQI+, entre os quais a igualdade de salários e condições e as ações afirmativas, vistos por ele como privilégios e não como reparações históricas.

[9A matéria do jornal Folha de S.Paulo, publicada em 18 de outubro de 2018, apontava ainda o uso de suposto “Caixa 2” e abuso de poder econômico por parte da candidatura de Jair Bolsonaro, uma vez que os disparos em massa teriam sido contratados por empresários e, portanto, não contabilizados como recurso de campanha. Destaca-se ainda que o financiamento de campanha por empresas/empresários é proibido pela legislação eleitoral brasileira.

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Ana Claudia Mielke é jornalista, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP; associada ao Intervozes e Secretária-geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC)