As árvores estão presentes no nosso dia a dia, tanto no campo, quanto nas cidades. Elas estão ao redor das nossas casas, na divisa dos nossos assentamentos e acampamentos, nas entradas das nossas escolas e centros de formação, nos nossos quintais, nas agroflorestas... As árvores também fazem parte da paisagem das cidades, elas estão nos canteiros, avenidas, praças e contribuem para a melhoria da qualidade de vida da população urbana.
Estima-se que em todo o mundo existam cerca de 60 mil espécies de árvores. Só no Brasil temos em torno de 14% dessas espécies, ou seja, temos em nosso território uma das maiores diversidades de árvores do mundo.
Poucos de nós sabemos, mas muito dessa diversidade de espécies só existe porque houve ao longo de milhares de anos uma profunda relação metabólica entre os povos em diferentes partes do mundo, a partir da interação, circulação e intercâmbio desses povos com o meio ambiente ao seu redor. Um exemplo dessa relação entre povos e meio ambiente ocorre na região Amazônica brasileira, onde estudos apontam que no território do Sítio de Pedra Pintada/Pará a espécie humana está presente há 11.200 anos, o que é muito anterior à formação da floresta amazônica do tipo ombrófila como a conhecemos hoje.
A presença de populações indígenas nos territórios da Amazônia deixou um legado na floresta que se mantém até os dias atuais e que são muito relevantes para os sistemas de produção diversificados que incluem as árvores no manejo produtivo. Diversas pesquisas têm apontado que cerca de 11,8% da terra firme da Amazônia brasileira é de origem cultural e que 3,2% de sua área é formada por solos de origem antrópica - ou terra preta de índio. Esses solos antrópicos formados há centenas de anos são o resultado de práticas de manejo com fogo, restos de alimentos e até fragmentos de cerâmicas, configurando solos com alta fertilidade.
Estudos também registram que as áreas com maior diversidade biológica na Amazônia são aquelas com a presença dos povos tradicionais e que várias espécies nativas são na verdade cultivares, ou seja, foram plantadas e manejadas por esses povos há centenas de anos, como a pupunha, o ouricuri, a castanha. Portanto, ao reconhecer os povos originários como produtores de biodiversidade podemos compreender e valorizar a coevolução entre ser humano e a natureza e seus resultados na domesticação de espécies, na seleção de sementes, no plantio e manejo, na organização de comunidades e nas diferentes formas de praticar a agricultura. Foi essa coevolução que estabeleceu os fatores fundamentais para a dinâmica metabólica da formação das florestas, assim como, as práticas de sistemas produtivos que incluem as espécies de árvores que fomos experimentando e construindo.
A trajetória histórica de dinâmica metabólica caracteriza a forma como os povos originários, quilombolas e outros grupos do campesinato se relacionam com o meio ambiente ao redor, tanto no âmbito produtivo quanto no âmbito dos saberes e dos conhecimentos. Entender os fluxos da água, o regime de chuvas e do clima, a fertilidade do solo, as características produtivas das espécies, os diferentes usos das espécies para alimentação, uso medicinal, espiritual, também foram organizando a relação com os bens comuns da natureza - água, terra, sementes, biodiversidade.
As práticas produtivas e as formas de organização dos povos do campesinato são, portanto, resultado dessa coevolução, de experimentação e construção social entre as comunidades e o meio ambiente ao seu redor, em um modo característico de reproduzir a vida e produzir alimentos considerando cada elemento da natureza como parte de um todo.
O MST e o Plantio de Árvores
Desde a origem do Movimento Sem Terra compreendemos que além de nos organizar na luta pela terra também seria necessário construir outras dimensões da sociabilidade nos territórios, como a formação política, educação do campo, questões culturais, novas relações de gênero e formas de produção que respeitassem a conservação ambiental. A incorporação da preocupação ambiental na organização da produção e da cooperação agrícola foi muito importante para construirmos as experiências práticas de produção de alimentos saudáveis e organização dos territórios em cada canto do País e para avançar na consolidação da construção de outro modelo produtivo e político: a agroecologia.
No entanto, todo esse processo não se deu de forma natural. Ele também é resultado da necessidade de enfrentamento e superação do modelo de exploração e destruição da natureza promovido pelo sistema capitalista, cujos impactos podemos sentir de forma concreta nos nossos territórios, com as terras degradadas, escassez de água, contaminação pelos agrotóxicos, desmatamento e queimadas.
Portanto, agroecologia para nós é a possibilidade de criar sistemas produtivos diversificados que combinem o diálogo de saberes entre os conhecimentos seculares dos povos do campo e da floresta com os conhecimentos científicos e tecnológicos que estão ao lado da transformação da sociedade. Além disso, a produção de base ecológica é também uma ação social coletiva, à medida em que é colocada em prática por milhares de famílias em reconexão com a natureza, mas também na reprodução da vida em sua totalidade, onde se produz alimento saudável e se estabelece novas relações sociais. Por isso, a agroecologia também se coloca em contraponto ao projeto do agronegócio e do sistema capitalista de exploração dos bens comuns, apontando os alicerces da possibilidade de outro projeto de campo a partir da luta popular.
É a partir do acúmulo enquanto organização que a agroecologia foi assumindo a centralidade na nossa estratégia política. E a partir da compreensão de que a Reforma Agrária deve ser uma luta do conjunto da sociedade que chegamos na construção da Reforma Agrária Popular, apontando dois grandes desafios para todo o nosso Movimento:
- 1. Produzir alimentos saudáveis, de forma massiva, para atender às necessidades de todo o povo brasileiro;
- 2. Recuperar e cuidar dos bens comuns da natureza, como a terra, sementes, biodiversidade, água, matas e florestas.
Diante da tarefa revolucionária que garante as necessidades alimentares do povo e ao mesmo tempo enfrenta e denuncia as ações cada vez mais destrutivas do agronegócio e da mineração, que lançamos em 2020 o Plano Nacional Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis. Serão plantadas 100 milhões de árvores ao longo de 10 anos nos territórios do Movimento Sem Terra e nas cidades.
O Plano estabelece que sua construção seja realizada desde a nossa base, envolvendo as famílias sem terra nos assentamentos e acampamentos e também cada força-viva dos nossos territórios, como as cooperativas, associações, escolas, centros de formação e grupos coletivos. Da mesma forma, sabemos que esse não deve ser um esforço só da nossa organização, portanto, devemos nos empenhar em construir vínculos com outros territórios camponeses e com as cidades em torno do plantio de árvores.
E por que plantar árvores?
Além de denunciar e lutar contra o agronegócio e seus impactos, temos a tarefa enquanto Movimento popular de apontar o caminho de mudança. Portanto, plantar árvores é também o anúncio das possibilidades de re-existir nos nossos territórios.
Temos a tarefa política de denunciar e enfrentar as agendas de retrocesso agrário e ambiental promovidas pelo governo Bolsonaro e Congresso Nacional, além de denunciar quais são os impactos e quem são os verdadeiros culpados pelos crimes ambientais, como o rompimento de barragens, desmatamento, queimadas, contaminação com agrotóxicos, seca dos rios, poluição.
Dessa forma, precisamos apontar que os efeitos das contradições ambientais não são sentidos da mesma forma por toda população, são os camponeses e a população nas periferias da cidade que mais sentem as mudanças no clima, a diminuição do acesso à água e aos alimentos e doenças relacionadas aos agrotóxicos e poluição, como os cânceres e doenças respiratórias.
Diante desse cenário de crise ambiental, o Plano Nacional é uma tarefa histórica e coletiva para o conjunto da classe trabalhadora para o cuidado e preservação da biodiversidade e da vida dos seres humanos na casa comum, a terra. Pesquisadores apontam que estamos no decênio decisivo para minimizar os efeitos climáticos e observamos que o capitalismo tem ressignificado o debate da proteção à biodiversidade a seu favor, sobretudo, com a discussão da retomada verde, que consiste na financeirização da biodiversidade com o objetivo de preservar o capitalismo da sua crise estrutural. Deste modo, o Plano se faz como uma perspectiva da classe trabalhadora para a crise climática, um projeto de sociedade alicerçado na relação ser humana e natureza.
Em face dessa disputa e das desigualdades climáticas, plantar árvores é a condição para criarmos ambientes mais resilientes, ou seja, quanto mais diversidade de espécies incorporarmos nos nossos agroecossistemas, mais facilmente esse sistema resiste e responde a um dano, como uma queimada, chuvas intensas, estiagens, geadas, ventos fortes, desequilíbrio de insetos. Esta prática coletiva, o plantio de árvores, é uma das medidas de primeira hora para abrandarmos as mudanças climáticas e assim recuperarmos a biodiversidade de nossos vários biomas.
Ademais, plantar árvores proporciona o aumento e a potencialidade de usos que podemos fazer com os frutos, sementes, folhas, cascas e raízes - alimentícias, medicinais, ornamentais, madeiráveis, adubadoras, forrageiras, entre outras. Essa construção da diversidade também possibilita que a gente incorpore novos hábitos alimentares e resgate culturas locais e regionais a partir da valorização do consumo de alimentos dos nossos biomas.
Plantar árvores aumenta a nossa diversidade produtiva e também amplia as possibilidades de formas de geração de renda a partir da comercialização, que pode ser a partir da coleta e extração dos frutos, resinas, óleos, fibras, sementes, madeira. Essa diversidade de alimentos e espécies também produz matéria orgânica mais diversificada e consequentemente enriquece as formas de vida no solo - animais invertebrados, fungos e bactérias. Essa variedade de vida no solo por sua vez aumenta a variedade de nutrientes para as plantas.
Como nos lembra Ana Primavesi, na natureza tudo está inter-relacionado: solo, água, clima, microrganismos, plantas, animais. Assim, esse solo vivo també é muito
importante para melhorar a infiltração da água, que além de ser disponibilizada para as espécies vegetais, segue seu ciclo alcançando os lençóis freáticos e retorna através das nascentes, formando os córregos, riachos e os rios. Da mesma forma, as árvores ao transpirarem pelas suas folhas liberam água para a atmosfera, que posteriormente retorna como chuva, no que é compreendido como ciclo da água.
E pensando em ciclo, quando falamos da relação entre ser humano e natureza, o ato de plantar árvores faz parte da nossa cultura enquanto agricultores camponeses do MST. Faz parte da nossa história desde quando ocupamos uma terra e plantamos árvores ao redor de um barraco, aos arredores de nossas casas e para embelezar nossos espaços, nossas plenárias e escolas.
Assim, mais do que uma meta numérica de plantar 100 milhões de árvores, o Plano faz parte de todo um processo organizativo de nosso Movimento, que envolve o exercício de planejamento, fortalecimento da nossa organicidade e das articulações locais. E como nos lembra o companheiro Pedro Tierra é preciso ORGANIZAR:
“Organizar a esperança,
conduzir a tempestade,
romper os muros da noite,
criar sem pedir licença
um mundo de liberdade.”