MST completa 40 anos com ’cicatrizes’ da luta pela terra e disputa pelo modelo de agricultura no país

Os paradigmas da reforma agrária popular

, por MST

No contexto de seus 40 anos, o MST elabora um novo programa de reforma agrária. Intitulado Reforma Agrária Popular, a nova formulação aponta os limites que os projetos de reforma agrária clássica apresentam no cenário atual do capitalismo globalizado e hegemonizado pelo setor financeiro. Além das mudanças no plano econômico, político e social, a grave crise ambiental que vive a humanidade e que coloca o planeta em risco estabelece novos objetivos para a reforma agrária e a produção camponesa. Este texto faz parte da elaboração coletiva do MST para a definição de seu programa estratégico formulado em seu VII Congresso Nacional de 2024, apresenta as bases filosóficas e a visão de mundo do MST que orientam seu projeto para o campo.

Introdução

A Reforma Agrária clássica burguesa foi sepultada, na última década do século XX, pelo próprio capitalismo. Fez isso através da adoção das politicas neoliberais e da globalização capitalista, da supremacia do capital financeiro sobre o capital produtivo e da divisão planetária da produção capitalista que, em nosso país, promoveu a desindustrialização e incorporou a economia nacional ao mercado internacional como um mero exportador de produtos primários.

Assim, a Reforma Agrária burguesa, um dos alicerces no surgimento e consolidação da sociedade urbano-industrial, passou a ser um entrave ao próprio desenvolvimento do capitalismo. Esse modelo de desenvolvimento eliminou, nos países da periferia do capitalismo, a exigência de um mercado interno e a necessidade de utilizar as terras agricultáveis para produzir alimentos para suas populações.

A burguesia brasileira, coerente com sua histórica postura de subordinação aos interesses do capital internacional, mais uma vez mostrou-se incapaz de liderar um projeto de desenvolvimento nacional. Além dessa sua incapacidade, a burguesia passou a atuar ativamente para bloquear qualquer alternativa de desenvolvimento econômico que atenda, prioritariamente, os interesses e as necessidades do povo brasileiro.

Contraditoriamente, ao eliminar a possibilidade de uma Reforma Agrária clássica burguesa, criaram-se as condições objetivas e subjetivas para que as classes subalternas do campo elaborassem suas propostas de democratização do acesso às aterras agricultáveis e de promoção de um desenvolvimento econômico, social, politico e cultural do campo.

O MST denominou a sua elaboração teórica de Reforma Agraria Popular. Não é uma proposta de Reforma Agraria socialista. Mas também não é uma reforma agraria burguesa, capitalista.

Centrada no binômio da democratização das terras e num modelo de desenvolvimento da agricultura que priorize a produção de alimentos saudáveis e a preservação ambiental, a Reforma Agraria Popular se propõe: a) enfrentar e superar as mazelas criadas pelo capitalismo que penalizam o povo brasileiro; b) obter melhores condições de vida para os camponeses; c) promover um desenvolvimento econômico sustentável; d) aperfeiçoar e fortalecer os mecanismo democracia e participação popular no destino do país; e) contribuir na construção de um projeto de desenvolvimento do país, centrado na Justiça Social e Soberania Nacional.

Em síntese, queremos contribuir de forma permanente na construção de uma sociedade livre da exploração e das opressões, articulada ao debate estratégico de um Projeto Popular para o Brasil.

A esses objetivos soma-se um conjunto de referências fundamentais, tidas como paradigmas, que buscam dar unidade entre uma visão de mundo e as propostas político-econômicas apresentadas pelos protagonistas da Reforma Agrária Popular.

Credito : Gabrielle Alves, via mst.org

A Reforma Agrária Popular tem sua centralidade nos seguintes paradigmas:

1. A terra e defesa da natureza

A Terra é um bem da humanidade. Juntos, a Terra e a Vida, são nossos bens mais preciosos. É nossa casa comum, um organismo vivo que nos garante o equilíbrio natural da vida.

O mercantilismo ambiental, cada vez mais exacerbado e irracional, promovido pelo capitalismo, coloca em risco a vida no planeta.

A água, as florestas, os minérios que estão no subsolo, a biodiversidade, são bens da natureza e devem ser tratados como um direito de todos os povos. Eles não podem ser tratados como mercadorias e nem ser objeto de apropriação privada. Todos esses bens são a garantia da saúde humana e do nosso planeta.

E, ao defender a natureza como portadora de direitos, negamos as imposições ideológicas e econômicas do capital que considera a natureza como uma mera mercadoria. Portanto, nos opomos a apropriação privada da natureza promovida pelos capitalistas.

O primeiro passo a ser dado é o de democratizar o acesso às terras agricultáveis. Reformar a estrutura fundiária é uma necessidade imprescindível para impulsionar e consolidar uma nova organização da produção e promover novas relações sociais no campo.

Nos tempos atuais, é imperativo uma Reforma Agraria que atenda as necessidades dos povos do campo e, ao mesmo tempo, cuide da natureza, promovendo uma ruptura civilizatória com essa sociedade baseada na apropriação privada da natureza. Todo agricultor de ser um guardião da natureza.

A conquista de melhores condições de vida no campo e o desenvolvimento da agricultura brasileira não está dissociada do cuidado com a Terra, do cuidado com os bens comuns da natureza.

2. A Reforma Agrária Popular depende da classe trabalhadora

Incapaz de liderar um projeto de nação, a burguesia brasileira criminaliza as lutas populares e busca impedir o protagonismo da classe trabalhadora em promover as transformações estruturais necessárias ao nosso país. Sem a participação maciça da classe trabalhadora nessas transformações, as potencialidades nacionalistas e democráticas se tornam insignificantes.

Portanto, as mudanças estruturais que visam fortalecer e aprofundar a democracia, promover o combate à pobreza e à desigualdade social, impulsionar um desenvolvimento econômico ambientalmente sustentável e socialmente justo e assegurar a soberania nacional terão a iniciativa e o protagonismo das classes despossuídas e da classe trabalhadora.

No campo, a partir da modernização capitalista da agricultura, as massas populares foram consideradas como excedentes históricos, uma vez que perpetuavam formas de produzir arcaicas, não capitalistas, e, como tais, deveriam ser excluídas pelas relações sociais de produção capitalista.

As classes dominantes, e seus intelectuais orgânicos, idealizaram o futuro do país com um mundo rural sem camponeses, sem quilombolas, sem povos indígenas, sem populações extrativistas e ribeirinhas. No modelo do agronegócio, não cabe o povo brasileiro.

Portanto, os alicerces de uma nova organização socioeconômica, cultural e política para o campo, exige necessariamente o protagonismo das mulheres, do campesinato e assalariados rurais, dos extrativistas, dos povos indígenas, dos quilombolas, pescadores artesanais e ambientalistas, articulados com as lutas populares urbanas.

Somente com o protagonismo das classes subalternas na organização da produção de alimentos e na reapropriação social dos bens comuns da natureza, será possível construir a soberania alimentar do país. O campesinato, os povos indígenas, os quilombolas, povos extrativistas, pescadores artesanais e ambientalistas, são os principais protagonistas das lutas sociais anticapitalistas no campo.

3. Uma Reforma Agrária de novo tipo

A Reforma Agrária clássica burguesa, se limitou, onde aconteceu, a promover a distribuição de terras para os camponeses e camponesas afim de aumentar a produção de matéria-primas para a indústria e a produção de alimentos para as populações urbanas.

Mas, na maioria das vezes, a reforma agrária hegemonizada pelas classes dominantes do capitalismo não foi além da adoção de politicas publicas para promover assentamentos pontuais e ocasionais, para beneficiar um numero ínfimo de famílias de sem terras.

A burguesia brasileira jamais se propôs a reformar a estrutura fundiária e, muito menos, a reformar o seu modelo de agricultura.

O envenenamento do solo, da água e dos alimentos; a destruição ambiental; o uso de maquinas e tecnologias inadequadas; um padrão de produção e consumo irracionais e excludentes; são algumas características inerentes ao modelo de agricultura capitalista.

A Reforma Agraria Popular quer ser uma construção embrionária de uma nova sociedade no campo.
O Legado dos povos originários do nosso continente, com sua concepção de um mundo do “Bem Viver”, nos serve de referencia e estimulo para a construção de uma nova sociabilidade no campo.

Precisamos ressignificar a conexão ser humano-agricultura-natureza, que possibilite um modelo de agricultura voltado para a produção de alimentos saudáveis e assegure a soberania alimentar do país. A adoção da agroecologia, da agricultura orgânica, do pastoreio racional, da agroindústria popular, de novas técnicas, tecnologias e maquinários que promovam o desenvolvimento e a modernização da agricultura, sem promover a destruição ambiental, são características imperativas do modelo de agricultura da Reforma Agraria Popular.

Promover uma grande transformação nas formas e modos de produzir, e nos padrões de consumo, exige estimular e implementar princípios ecológicos; promover o uso de práticas agrícolas comprometidas com a vida; lutar pela apropriação e difusão de novas técnicas e tecnologias de produção e preservação ambiental; a valorizar os saberes e técnicas tradicionais e os valores culturais e sociais que alimentam as práticas do cuidado, afeto, solidariedade e coletividade entre os povos, respeitando seus modos de viver e existir.

O processo de Reforma Agrária deve ser converter em um bem público, com seu potencial intelectual e político voltado para promover a integração entre as populações do campo com as das cidades. A partir dessa integração, a luta pela reforma agrária deve ser vista como parte das lutas sociais, econômicas, políticas, ideológicas, ambientais e culturais em defesa da Terra.

Ao democratizar o acesso e a propriedade das terras agricultáveis e ao romper com o sistema de apropriação privada dos bens da natureza, se rompe com o poder políticos de uma minoria de proprietários rurais que hegemonizam as terras e, em pleno século XXI, mantem curais políticos em nosso país.

Portanto, o fortalecimento e a consolidação da democracia do país passa, necessariamente, pela realização da Reforma Agrária.

Credito : Stela, via mst.org

4. O Estado

O capitalismo, com suas políticas neoliberais, subordina o Estado aos monopólios empresariais, tornando servil ao grande capital internacional.

E, subordinado à lógica do mercado, o Estado preocupa-se em mostrar eficiência fazendo cortes de gastos nas áreas sociais, em incentivar a mercantilização em todas as esferas da vida e em adotar um padrão de gestão similar ao das empresas privadas, eximindo-se do imprescindível papel de promover o desenvolvimento socioeconômico. Mesmo estando ciente que é a riqueza pública que dá sustentação ao processo de reprodução do capital privado.

Essa subserviência do Estado ao mercado exige a construção uma ordem institucional e jurídica que proteja e incentive o funcionamento do mercado e a competição entre as pessoas.

E, exige ainda, a difusão de um padrão cultural que naturalize uma competitividade exarcebada entre as pessoas, um individualismo extremado, um sentimento de culpa por sua própria exclusão do sistema, que nega a ideia da solidariedade, recusa a ideia da coletividade e valoriza o privado em detrimento ao público.

É preciso um processo de desenvolvimento solidário, social, que promova o crescimento econômico ao mesmo tempo que preserva a natureza e promova a redistribuição da riqueza produzida, consolidando uma sociedade socialmente justa, igualitária e democrática.

Cabe ao Estado promover políticas de fomento de novas forças produtivas e de instauração de novas relações de produção que priorize a busca de melhores resultados em termos de qualidade de vida. Que promova um padrão de consumo dentro do limites ecológico e atenda a todos e todas sem comprometer o futuro das novas gerações.

Um desenvolvimento econômico que se contrapõe a lógica do mercado, responsável pela destruição das duas maiores fontes de riquezas: a força de trabalho e a natureza.

Enfim, necessitamos de um Estado, liderado por um governo popular, que atenda as reais necessidades do povo brasileiro, tenha autonomia em relação as forças do mercado capitalista e crie canais de participação popular para definir investimentos e prioridades públicas.

A realização Reforma Agrária Popular exige essas mudanças democráticas na forma de organização e funcionamento atual do Estado. Exige democratização do aparato burocrático - serviços, órgãos de fiscalização, instituições de segurança pública e financeiras - e de funcionamento de todas as esferas dos governos federal, estadual e municipal.

A democratização do Estado será uma conquista do povo brasileiro. Faremos com que a luta pela Reforma Agrária Popular esteja intrinsicamente ligada a este objetivo, conquistando um aparato estatal que priorize o bem estar do povo, promova um desenvolvimento econômico ambientalmente sustentável e assegure a soberania nacional do nosso país.

5. A Emancipação Humana

A Reforma agrária burguesa, subordinada ao desenvolvimento urbano-industrial, limitava-se em transformar o campesinato em produtor e consumidor de mercadorias.

A Reforma Agrária Popular se propõe a transformar os camponeses e camponesas em protagonistas de suas lutas, conquistas e destinos, superando os preconceitos políticos que os considera uma expressão do atraso tecnológico, cultural e político e, portanto, com potencial anti-revolucionário. Os protagonistas da Reforma Agrária Popular se tornam sujeitos de sua própria história.

Assim, a Reforma Agrária Popular não é um processo apenas produtivo e ambiental. É, também, um processo, permanente, de re-humanização e emancipação humana. Os camponeses e camponesas exercem, certamente, duas das mais nobres e dignas missões de um ser humano: produzir alimentos e ser os guardiões da bio-diversidade. Em resumo, cuidar da vida, em toda suas diversidades e complexidades. Assim ele e ela devem se ver e assim devem ser vistos.

É preciso, a partir da convivência social e com a natureza, possibilitar a formulação e a prática de novos valores culturais. Valores que promovam uma relação harmoniosa do ser humano consigo mesmo, entre todos os seres humanos e destes com a natureza.

A luta pela Reforma agraria Popular não deve ser vista apenas com um meio para os sem terras acessarem a terra. Essa luta precisa esta conjugada com as lutas contra a privação da ciência e da tecnologia, a apropriação privada dos saberes populares, a concentração e centralização da natureza e tantas outras lutas necessárias para superar o modo de produção capitalista.

E, acima de tudo, a Reforma Agraria Popular pressupõe, enquanto consciência de luta social, a construção de uma nova referência para o campo, centrada na reapropriação social da natureza pelas classes populares do campo, para o usufruto de toda a humanidade.

A emancipação humana e social pressupõe, ainda, o princípio da igualdade entre os seres humanos e a radicalização da democracia. Princípios que serão inalcançáveis se a agricultura continuar sob o controle dos interesses do mercado, a produção de alimentos seguir a lógica das taxas de juros e se os camponeses continuarem afastados das terras agricultáveis.