No Limite

Os desafios da Cúpula dos Povos

, por IBASE , CORREA José

A Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, ocorre num momento em que a crise econômica estrutural que irrompeu abertamente em agosto de 2008 mergulhou Estados Unidos, União Europeia e Japão numa recessão, acirrou a competição entre os governos dos países centrais e dos emergentes e enfraqueceu as veleidades ambientais de todos eles.

Nesse contexto, revisitar as metas estabelecidas na Rio-92, um dos propósitos originais da conferência, apenas exporia os governos e as elites empresariais ao ridículo das promessas não cumpridas.

Enfrentar a crise ambiental que assoma a todo o planeta significaria, por sua vez, sucatear enormes capitais investidos em setores com grande peso econômico e poder político (petróleo, automotivo, consumo ostentatório e etc.) e reverter a tendência de dilapidação dos recursos naturais, combatendo assim os gêmeos siameses “modelo chinês” (e mais amplamente asiático) e “neodesenvolvimentismo sul-americano”.

Setores muito minoritários do capital aventuram-se pela “economia verde”, mas sem condições de galgarem posições e se colocarem no coração do processo de acumulação neoliberal globalizado e financeirizado, cuja hegemonia não encontra contestação.

Assim, a tônica dominante da conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) será a de um circo de relações públicas no Riocentro, em plena Miami carioca, o mais longe possível das manifestações populares. Nele, o governo Dilma pretende desviar a discussão da marcha da humanidade rumo a um colapso ambiental para o tema dos avanços brasileiros no combate à pobreza. Já os mercados buscam obter na Rio+20 um mandato que legitime uma nova ofensiva de mercantilização da natureza e dos bens comuns, empreendendo novos “cercamentos” e criando ou consolidando novos espaços de acumulação.

O único local para a discussão dos dilemas estratégicos colocados para a humanidade é a Cúpula dos Povos, a contraconferência da sociedade civil e dos movimentos sociais, programada para o Aterro do Flamengo, de 15 a 23 de junho. É ela que pode articular o questionamento das políticas de concentração de riquezas com a crítica à crise ambiental, oferecendo uma alternativa às políticas do capitalismo global. Ela pode oferecer uma oportunidade para avançarmos na crítica não apenas do modo de produção capitalista, mas da civilização que ele produz, urbana, industrial, produtivista e cada vez mais consumista. Ela pode nos oferecer mapas dos caminhos para a superação dessa forma de organização social e do metabolismo que esse modelo estabelece com a natureza.

A critica de uma civilização em crise

Marx fez a crítica da economia política do século 19, utilizando as análises mais avançadas produzidas pela ciência de sua época. E se um materialismo histórico deve resgatar esse método para a crítica da sociedade contemporânea, o mesmo deve ser feito para nosso tempo, ajudando-nos a construir um projeto de transição para a superação do capitalismo em nossa época, quando ele demonstra ter esgotado suas potencialidades emancipatórias e se alimenta cada vez mais da predação de toda a biosfera terrestre.

A compreensão de que a economia do carbono, do desperdício e da descartabilidade produz um aquecimento global e transformações extraordinárias teve que ser aceita – ainda que apenas formalmente – pelos governos de todo o mundo. O quarto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, de 2007, afirma que as emissões de gases do efeito estufa podem levar a um aquecimento de mais de cinco graus em 2100, suprimindo as condições ambientais que favorecem a humanidade desde o final da Era do Gelo.

Esta é apenas uma das ameaças que enfrentamos. O Instituto de Resiliência de Estocolmo publicou, em 2009, um vigoroso estudo interdisciplinar sobre os limites (ou fronteiras) planetárias (ver http://www.ecologyandsociety.org/vol14/iss2/art32/). As mudanças climáticas são apenas um dos limites ultrapassados pela ação humana. A perda de biodiversidade e o desequilíbrio do ciclo do nitrogênio pela agricultura industrial são outros processos que já fugiram do controle. A acidificação dos mares, as mudanças no uso do solo, os desequilíbrios no ciclo do fósforo, a utilização da água potável disponível e a destruição do ozônio estratosférico são outros processos conhecidos e crescentes. Além disso, a ciência ainda não conhece bem quais seriam os impactos da poluição química e da emissão de aerossóis na atmosfera. Quando uma destas fronteiras é ultrapassada, ela desloca outras, em uma dinâmica complexa. Enfrentamos um conjunto de desequilíbrios crescentes, cumulativos e velozes.

Alguns cientistas chamaram esses desequilíbrios provocados pelo impacto das atividades agroindustriais capitalistas de a “grande aceleração”. Entramos em uma nova era onde essas atividades já tem o impacto de uma força geológica. Vivemos agora na Era Antropocena.

Mesmo cientistas moderados estão chegando a conclusões radicais. James Hansen, da agência espacial norte-americana, Nasa, destaca que a luta contra as mudanças climáticas tem o mesmo sentido ético hoje que a luta contra a escravidão no século 19. Não poderíamos deixar um mundo exaurido para nossos filhos e netos.

Mas para isso é necessário reverter grande parte das atividades que estruturam hoje o funcionamento da sociedade. Grande parte do que é produzido no capitalismo é desnecessário para uma vida digna e saudável e é prejudicial para o planeta e a maioria dos seres humanos. O sistema aprofunda o desperdício de recursos: geração de energia pela queima de combustíveis fósseis, produção e uso dos automóveis, produção e uso de artigos descartáveis, produção e uso de armas, o papel, a química e a petroquímica, o apelo ao consumo ostentatório, cristalizado nas estruturas dos grandes shopping centers, a pecuária industrial, a pesca intensiva e, de maneira geral, a agricultura industrial. O mesmo se aplica para toda a matriz de transportes baseada no petróleo e, crescentemente, para a indústria do turismo, para os padrões dominantes de construção de moradias e edificações. A escala nas atividades produtivas e comerciais não são em muitos casos ganhos de produtividade do trabalho humano, mas apenas ganhos dos distintos patamares de concentração de capitais, irracionais do ponto de vista das necessidades humanas.

Quando colocamos tudo isso em perspectiva, fica claro o quão profunda é a mudança necessária para enfrentar a crise ambiental. O choque com o capitalismo, que só apresenta paliativos, deve ser frontal. Enquanto um estudo publicado na Nature em março (ver: http://climateprediction.net/science/pubs/NatGeoSci_2012a.pdf) afirma que a temperatura pode aumentar em três graus já em 2050, as negociações sobre o clima foram postergadas para 2015, e a vigência de um eventual e improvável acordo começaria em 2020. As grandes catástrofes, que tendem a ocorrer se uma revolução social não confrontar as bases da civilização estabelecida, não são coisas para um futuro distante, mas ameaças que afetarão aqueles que hoje já são adultos.

Superar o desenvolvimentismo

Uma conclusão, de enorme repercussão para a esquerda, se impõe desse conjunto de informações A política do binômio modelo chinês e neodesenvolvimentismo (desindustrialização e reprimarização) sul-americana não é uma alternativa às variantes mais regressivas do neoliberalismo global. Ao contrário, representa uma trilha de rápida aceleração da crise ambiental e social. Essa não é apenas uma constatação cientĩfica, mas uma percepção de atores sociais cada vez mais significativos na nossa região.

Não se trata de negar que haja ganhadores com esse modelo, mas de avaliá-lo de forma qualitativa e destacar que ele produz uma legião de perdedores. No Brasil e por quase toda a América do Sul, movimentos populares têm se chocado com os projetos desenvolvimentistas de burguesias cada vez mais fornecedoras do capitalismo chinês. A reprimarização das nossas economias se faz acompanhar de um aumento significativo da predação dos recursos naturais e da destruição de ecossistemas. O combate à reforma do Código Florestal no Brasil, a luta contra a mineração no Peru, Equador ou Argentina, a oposição a corredores de exportação e a hidroelétricas destinadas a baratear a extração de minérios vendidos para a Ásia são, por todo continente, parte do mesmo movimento estratégico de recomposição da esquerda em torno de uma alternativa de superação do capitalismo.

A luta por igualdade e justiça social e ambiental não é compatível com as políticas de ampliação do consumo capitalista, políticas que oferecem não serviços públicos básicos, e sim mais automóveis, motocicletas, bugigangas descartáveis e serviços privatizados. Esse aumento do consumo que não mexe com a estrutura perversa de nossas formações sociais, marcadas pela colonialidade do poder, é alimentado pela renda da exportação de produtos primários ou semiprimários. Os “ganhos” recentes das economias sul-americanas e, em especial, da brasileira estão se dando ao preço de uma desarticulação das cadeias produtivas industriais mais complexas, uma perda de dinamismo dos setores indutores de progresso técnico e inovação industrial e uma perda de competitividade da economia de conjunto. Encaminhada por governos que se afirmam de esquerda, essa política oferece uma maquiagem progressista para mascarar novos cercamentos dos bens comuns, uma crescente privatização da vida, o aumento da dependência externa e o desmonte das economias nacionais.
Esse é o marco do debate estratégico colocado para a esquerda continental e da contribuição que ela pode dar a um movimento global cada vez mais desarticulado pelas consequências da crise. Este é o pano de fundo dos debates colocados para a Cúpula dos Povos.

Aprender com as novas gerações e radicalizar a democracia

A radicalização da oposição ao capitalismo, ao desenvolvimentismo e ao consumismo nos distancia de uma certa tradição produtivista da esquerda, cujo melhor exemplo era a antiga União Soviética. Ela abre o diálogo com grandes parcelas da juventude que intuem o rumo catastrófico da civilização atual.

A magnitude das mudanças necessárias exige que as massas populares entrem em cena, compreendam a situação crítica em que a nossa civilização se encontra e imponham uma profunda mudança de rumo na história. Mas para isso é preciso que modifiquem a si mesmas no processo: as instituições se reproduzem nos indivíduos e são eles que as mantêm funcionando. Não é possível empreender a transição que a humanidade e o planeta demandam com povos cujo ideal de felicidade é o consumismo e cujo modo de vida é baseado na exploração da natureza. Os “educadores” também devem ser educados, e a pedagogia para isso é a atividade prática nas lutas reais.

O surgimento de uma nova geração política nos movimentos dos indignados europeus, na Primavera Árabe, nas ocupações nos Estados Unidos exige da esquerda uma aposta, a de que aí germinam as forças sociais e políticas capazes de construírem uma nova civilização. A rigor, essa aposta não é uma opção, mas uma imposição para a esquerda socioambiental que luta contra o neoliberalismo e o neodesenvolvimentismo e que deve articular globalmente suas lutas.

O terreno para isso é o do exercício de uma democracia participativa. O lema de algumas correntes de jovens indignados, “democracia real já”, é inseparável do desafio socioambiental. Só apoiados na democaria real poderemos superar a crise civilizacional vigente.