Não é de hoje que os atores hegemônicos são vitoriosos na manutenção dos padrões vigentes de exploração da natureza e do trabalho. Desde 1972 quando o então Clube de Roma apontou os “limites do crescimento”, governos e corporações passaram a acomodar sua busca de lucros e expansão crescentes aquele novo contexto. Em 1987 o Relatório Brundtland lança seu documento “Nosso Futuro Comum”, onde aprofunda a discussão sobre o limite à utilização dos recursos naturais.
Tanto o Clube de Roma como o Relatório Brundtland contribuíram para colocar na agenda global o tema dos limites do crescimento e da necessidade de uma administração mais eficaz do modelo, que levasse em conta a finitude e o escasseamento dos recursos naturais, porém sem a necessária ênfase nas disparidades no acesso e apropriação de tais recursos nem nos conflitos e disputas daí decorrentes.
A Rio 92 buscou consolidar aquele novo contexto sob a forma de uma ampla e massiva legitimação da ideia do desenvolvimento sustentável, cujo consenso dominante era o de se buscar uma acomodação do ideário desenvolvimentista aliado a medidas de gerenciamento ambiental.
Sendo um conceito em disputa, em nome do desenvolvimento sustentável governos adotaram compromissos insuficientes, corporações passaram a adotar o marketing verde, organizações e movimentos sociais tiveram níveis distintos de apropriação, deparando-se com visões que incluem desde o desenvolvimentismo liderado pelo Estado até as tentativas de se encaminharem soluções privatistas de administração da crise do modelo em curso.
Um dos sintomas desta disputa de sentido e ao mesmo tempo de esvaziamento da proposta de um desenvolvimento sustentável são as negociações sobre mudanças climáticas. Nestas negociações, o mundo assiste a falta de vontade política dos governos de fazerem a transição de seus modelos de produção de altas para baixas emissões de gases do efeito estufa e ao mesmo tempo o avanço das propostas de mercado de carbono e outras falsas soluções.
Em meio a esta trajetória de frágeis compromissos o planeta e a humanidade dão claros sinais da urgência de soluções reais. A Rio+20 pode e deve ser um marco no sentido da construção de uma nova vontade política, do reconhecimento da obsolescência dos arranjos políticos e institucionais vigentes que visam dar sobrevida a um sistema em crise de legitimidade e que está pondo em sério risco a vida no planeta. No entanto é preocupante que dois temas centrais da agenda oficial da Rio+20 – economia verde e arquitetura institucional – corram o risco de serem pautados pelos interesses das corporações e não pelos direitos dos povos.
No caso da economia verde circulam propostas sobre um New Green Deal que aponta como aumentar a riqueza com redução dos riscos ambientais e como impulsionar novas formas de crescimento com eco-eficiência e novas tecnologias. Orientando os fluxos de capital a setores de baixo carbono, ao invés de se reduzirem os fluxos financeiros e do comércio global, pensam que se poderia levar tais fluxos aos setores verdes abrindo novos nichos de crescimento e de mercados, fazer melhores condicionalidades ambientais e gerar empregos nos setores verdes, apostando-se em novas formas de crescimento.
Sendo o trabalho uma dimensão central da sociedade, é crucial que se faça uma transição justa rumo a uma participação crescente dos empregos verdes no mundo do trabalho; é preciso, porém que o significado de emprego verde seja prioritariamente relacionado ao trabalho decente, a direitos assegurados, a salários e condições dignas. Seria mais uma falsa solução a aposta na alocação de empregos em setores de baixa emissão de carbono, porém com condições degradantes de trabalho. Além disso, até agora o debate sobre economia verde tem ressaltado a perspectiva de erradicação da pobreza, sem colocar ênfase no necessário enfrentamento das desigualdades, do combate a riqueza e a concentração, e da urgência da redistribuição da renda e do acesso a recursos. O mundo precisa menos de produção de riquezas e mais de sua distribuição.
As experiências que emergem de novos sistemas de produção que questionam a lógica da acumulação e o crescimento infinito dos fluxos globais de investimentos e comércio, que propõem o encurtamento de circuitos entre produção e consumo, e que fortalecem os direitos dos grupos sociais e econômicos não-hegemônicos têm sido desconsiderados no debate dominante sobre economia verde. Por que sistemas de produção como a agroecologia, a economia solidária, os sistemas agroflorestais das populações tradicionais em seus territórios, as tecnologias sociais que visam a socialização e apropriação coletiva do conhecimento, contribuindo para a ideia de bens comuns, são desconsiderados por estas teses dominantes, se já comprovaram que são capazes de produzir sem emitir carbono, que fortalecem direitos, reduzem desigualdades e alimentam a população sem envenená-la? Por que são colocados à margem se são verdadeiramente sustentáveis política, econômica, social, ambiental e culturalmente? Porque não se trata de uma questão de comprovação prática e técnica, e sim de uma questão política: estes sistemas e seus atores não são hegemônicos. Sua produção e disseminação ocorrem combinadas com a resistência ao modelo dominante, e o confronto entre estes modelos antagônicos resulta em conflitos inconciliáveis em inúmeros territórios ao redor do mundo.
É preciso, portanto, acumular forças na base da sociedade, na política, na opinião pública, nas instituições acadêmicas e científicas para que possamos ver estes novos sistemas de produção e consumo ganharem corações e mentes. Os movimentos globais foram capazes de fazer isso com Seattle, a campanha contra a ALCA e o Fórum Social Mundial, ao disputarem na opinião pública contra o neoliberalismo, e assim contribuíram decisivamente para a deslegitimação e quebra do pensamento único e para a inauguração de um novo ciclo político na América Latina. O que está em jogo na Rio+20 é se teremos força política para alavancar uma iniciativa com um questionamento mais profundo, sobre as bases fundantes do modelo vigente, e elevar o patamar das experiências destes novos sistemas de produção à altura de uma disputa contra-hegemônica.
Outro tema central da Rio+20 – arquitetura institucional – deveria partir do diagnóstico sobre a crise de legitimidade vivida pela sistema internacional e de suas instituições. De um lado uma ONU sem poder de implementação de suas resoluções; de outro, com poder de sanção, instituições criadas no pós-Segunda Guerra, como FMI, OMC e Banco Mundial, refletindo o concerto de poder então vigente, tentam produzir diretrizes para um sistema internacional em clara crise de hegemonia e em transição para múltiplos centros de poder após ter passado por um longo período bipolar e por um brevíssimo momento unipolar expresso pelo “fim da História”.
Sem condições políticas de gerirem o sistema global através destas instituições com agendas obsoletas e processos decisórios complexos, os governos que concentram poder econômico se organizam em coalizões informais e auto-convocadas como o G20, e através delas emitem resoluções que afetarão os povos do mundo todo.
É crucial, portanto, a luta por uma real democratização do sistema internacional, e isso requer muito mais do que a mera inclusão dos chamados países emergentes no fechado processo decisório. É preciso enfrentar a necessidade de uma nova institucionalidade, que expresse democraticamente os novos interesses, agendas, atores – inclusive os não-Estatais -, conflitos, contradições e correlação de forças do mundo de hoje. É claro que não se trata apenas da governança ambiental, e sim do conjunto dos arranjos institucionais nas áreas financeira, econômica, social e ambiental que devem ser repensadas em conjunto, visando desprivatizar os processos decisórios, afastá-los dos interesses das corporações e aproximá-lo dos interesses e direitos dos povos.
Enquanto do lado dos governos ainda é incerto o peso a ser dado a Rio+20, do lado das organizações e movimentos sociais pretendemos realizar uma iniciativa que seja capaz de convocar amplamente a sociedade a debater e se engajar nas lutas por direitos e justiça socioambiental, pressionando os governos a assumirem amplos compromissos ao invés de delegarem aos mercados e à esfera privada a dianteira da administração de um mundo em crise.
A equação vivida há mais de um século que combina super-exploração da natureza e do trabalho em nome do infinito crescimento econômico e desenvolvimento das forças produtivas nos levou às catástrofes ambientais, climáticas e sociais de hoje. Chegamos a uma clara situação onde as soluções adotadas pelos governos e corporações que visam manter o status quo já fracassaram.
É hora de olharmos para o núcleo do problema: os padrões vigentes de exploração, acumulação, produção e consumo são incompatíveis com a sobrevivência da vida no planeta. E para enfrentar este núcleo as ideias predominantes – seja pelo viés desenvolvimentista seja pelas soluções na via privatista do green business – deixam do lado de fora atores, visões e projetos que hoje resistem, disputam e apresentam alternativas reais ao modelo dominante. Para que possamos enfrentar os desafios à altura de sua gravidade é preciso colocar os direitos e a justiça no centro da agenda, e para tal é preciso apostar na constituição de uma esfera pública, tanto na política como na economia, destinada a garantir os direitos dos povos.