MST completa 40 anos com ’cicatrizes’ da luta pela terra e disputa pelo modelo de agricultura no país

O MST e o cuidado dos bens comuns

, por PEREIRA Daniel

A conquista dos assentamentos é o primeiro passo, mas é preciso controlar a água e as sementes. Ele impõe o desafio de usar a força de trabalho dos assentados, com tecnologias construídas e apropriadas pelos camponeses. A agroecologia deve ser um elemento de defesa dos assentamentos, que são territórios muito disputados pelo agronegócio, empresas e pelo próprio Estado. É importante ponderarmos que a agroecologia é mais que experiência. As experiências se somam. Mas ela é uma decisão política por outro estilo de vida, outras relações e outras sociabilidades.
Antônia Ivoneide Silva (Neném), fala no VI Congresso Nacional do MST em 2014.

A necessidade e importância do cuidado dos bens da natureza encontra-se diretamente ligada ao processo de desenvolvimento das forças produtivas no seio da sociedade capitalista que, em seu afã irracional por lucro, acaba por destruir a vida mesma.

Nesse sentido, torna-se imperativo agir em duas direções: no sentido de enfrentar os impactos causados pelo avanço do capital sobre as pessoas e o meio ambiente e, fundamentalmente, no sentido de construir caminhos para a superação desse modo de produção capitalista.
Com base nesses elementos e no seio do Plano Nacional Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis, no qual esta reflexão se insere, procuramos lançar um olhar para 2 elementos que nos parecem fundamentais:

a) Os cuidados com o meio ambiente e os bens da natureza na trajetória do MST

b) A construção da Reforma Agrária Popular e seus desafios

Assim, esperamos que os elementos que trazemos à tona contribuam no debate de uma temática candente, mas principalmente nos desafiem para ações específicas nas perspectivas acima apontadas.

1. O cuidado do meio ambiente e dos bens da naturaleza na trajetória do MST

A trajetória histórica do MST é uma trajetória marcada por muita luta, resistência, organização, formação, conquistas e também contradições, aspecto fundamental na luta de classes e também internamente, pois elas nos obrigam, permanentemente, a nos recriar, dando saltos qualitativos e respondendo aos desafios que cada momento histórico nos coloca.

Olhando para o caminho percorrido, percebemos que o cuidado com o meio ambiente e com os bens da natureza tem permeado nossa história. De fato, desde suas origens, o MST reconhece o campesinato como guardião das florestas, das sementes, das nascentes, dos rios e da fauna. Podemos, então, dizer que desde o início o MST entende que o território conquistado tem uma função com a sociedade e com o planeta de produzir alimento, mas também cuidar da natureza.

Credito : Claudia Tostes, via mst.org

Importa perceber as diferentes transformações ocorridas para o qual tomaremos como referência principal os debates e documentos emanados de nossos Congressos Nacionais. Ao fazer isso é importante levar em consideração que:

  • a) O debate em torno da questão ambiental vincula-se diretamente aos processos de luta do MST, aos seus objetivos e ao seu caráter;
  • b) Esse debate ambiental progressivamente se insere dentro de uma dimensão maior que é o processo de conversão agroecológica.

Como afirmou nossa querida companheira Mitsue Morissawa, o MST não separou as lutas pela terra e pela Reforma Agrária da dimensão política. A luta não termina com a conquista terra, ela continua na organização simultânea da cooperação e das ocupações e no constante investimento na formação dos assentados para a sua qualificação profissional, tendo em vista as transformações da estrutura produtiva.

Em 1985, durante o I Congresso Nacional do MST a preocupação com o Meio Ambiente já estava presente. Entendia-se que a produção a ser desenvolvida nos assentamentos deveria respeitar a conservação ambiental. Contudo, naquela época, o MST tinha como prioridade fazer a terra conquistada produzir, e as técnicas de agricultura alternativa (como eram chamadas partes das práticas que hoje conhecemos como agroecologia) ainda possuíam muitos limites. Assim, avançamos muito no debate da organização da produção, da cooperação, mas pouco sobre o modelo tecnológico da agricultura.

Já o II Congresso Nacional do MST (1990) esteve voltado, particularmente, para questões organizativas internas e para as condições necessárias à permanência das famílias na terra, mediante a superação dos gargalos enfrentados: terras degradadas e contaminadas por agrotóxicos, ausência ou escassez de água, etc. Ou seja, as condições materiais objetivas impuseram ao MST a necessidade de debater a questão ambiental.

Foi em 1995, no III Congresso Nacional do MST – no seio do debate acerca de uma estratégia de luta unificada entre o campo e a cidade – o momento no qual passamos a compreender que os assentamentos deviam incorporar tecnologias de acordo com cada realidade, bem como garantir a preservação e o cuidado dos recursos naturais. Esse fato desencadeou ações significativas dentre as quais podemos destacar: a) Criação da BioNatur (1998); b) Contribuição na elaboração de documento sobre biodiversidade no seio da Via Campesina (1999); c) Declaração contra os cultivos transgênicos (1999).

Todo esse acúmulo propiciou que durante o IV Congresso Nacional (2000) nossa organização defendesse a necessária superação do modelo agrícola vigente naquele período e se propusesse a desenvolver linhas políticas e ações concretas para a construção de um novo modelo tecnológico, sustentável do ponto de vista ambiental, com garantia de produtividade, viabilidade econômica e bem estar social.

Porém, o elemento mais marcante do IV Congresso Nacional e que representa uma mudança qualitativa na concepção de reforma agrária defendida pelo MST foi o fato que a partir desse momento a agroecologia passa a ser assumida como um processo de construção de outro modelo produtivo e político, em clara oposição ao modelo das classes dominantes que impõem os transgênicos, sob o comando das empresas transnacionais do agronegócio.

Nesse momento, também assumimos nossos compromissos com a terra e com os bens comuns. Tais compromissos aparecem em consonância com as definições do IV Congresso e explicitam de forma mais ampla a compreensão que o MST havia acumulado em torno da questão ambiental. Neles reconhecemos 2 níveis, um mais amplo, que envolve o conjunto da sociedade e outro de compromissos vinculados a nossa organização e à vida em nossos assentamentos.

Os seres humanos são preciosos, pois sua inteligência, trabalho e organização podem proteger e preservar todas as formas de vida:

  • 1. Amar e preservar a terra e os seres da Natureza;
  • 2. Aperfeiçoar sempre nossos conhecimentos sobre a Natureza e a agricultura;
  • 3. Produzir alimentos para eliminar a fome na humanidade. Evitar a monocultura e o uso de agrotóxicos;
  • 4. Preservar a mata existente e reflorestar novas áreas;
  • 5. Cuidar das nascentes, rios, açudes e lagos. Lutar contra a privatização da água;
  • 6. Embelezar os assentamentos e comunidades, plantando flores, ervas medicinais, hortaliças, árvores, etc.;
  • 7. Tratar adequadamente o lixo e combater qualquer prática de contaminação e agressão ao meio ambiente;
  • 8. Praticar a solidariedade e revoltar-se contra qualquer injustiça, agressão e exploração praticada contra a pessoa, a comunidade e a Natureza;
  • 9. Lutar contra o latifúndio para que todos possam ter terra, pão, estudo e liberdade;
  • 10. Jamais vender a terra conquistada. A terra é um bem supremo para as gerações futuras.

A isso devemos somar quatro importantes ações:

  • a) Lançamento da Jornada Nacional de Agroecologia (2001), atividade que já está em sua 18a edição, contando com presença significativa da militância do MST e de outras organizações e movimentos populares do Brasil e da América Latina;
  • b) Lançamento da Campanha Sementes: patrimônio da humanidade a serviço dos povos (2003), junto com movimentos e organizações da Via Campesina, que evidenciou a importância do resgate das sementes crioulas e contra a propriedade intelectual sobre as mesmas, como condição para a soberania alimentar dos povos e em contraposição ao uso de sementes transgênicas, além do resgate da própria identidade camponês – e que tem como máxima materialidade a criação da Rede Nacional de Sementes, expandindo a importante experiência da Bionatur;
  • c) Criação da ELAA – Escola Latino Americana de Agroecologia (2005), espaço de referência na formação de militantes, filhos e filhas de assentados e de outros movimentos da América Latina. Na ELAA se desenvolve cursos de Tecnólogo em Agroecologia e uma série de inovações tecnológicas no campo da agroecologia;
  • d) Criação da Frente de Meio Ambiente, coordenada pelo Setor de Produção em articulação com os setores de Educação e de Formação (2005).

Nosso V Congresso Nacional, realizado em 2007, coloca-se na mesma perspectiva do congresso anterior, reafirmando que a questão ambiental, parte inerente à reforma agrária, deve ser uma luta do conjunto da sociedade. Ao mesmo tempo emergem com maior força temas como a produção de alimentos saudáveis e a mudança de matriz tecnológico-produtiva: a agroecologia passa a ter centralidade na estratégia política de nossa organização. Desse modo, consolidamos a disputa entre dois modelos de sociedade: de um lado, o modelo do agronegócio e, de outro, a Reforma Agrária Popular.

2. A construção da reforma agrária popular e seus desafios

A realização do VI Congresso Nacional do MST, em 2014, foi um momento extremamente significativo na história do Movimento, pois nele celebramos nossos 30 anos de existência e homologamos nosso Programa de Reforma Agrária Popular. Nesse sentido, 3 considerações fundamentais se fazem necessárias:

  • a) O Programa de Reforma Agrária Popular constitui o resultado de um longo e profundo debate ocorrido nas mais diferentes instâncias, setores e espaços organizativos do nosso Movimento. Processo este que teve início em 2009, quando celebramos nossos 25 anos de existência. Naquele período sentimos a necessidade de realizar um balanço crítico a respeito de nossas ações, da nossa estrutura organizativa e do acúmulo construído ao longo desse período, para o qual duas questões orientaram todo esse processo: O que zelar? e O que mudar?;
  • b) Se é bem verdade que o Programa de Reforma Agrária Popular é síntese, também é verdade que a partir dele começamos a vivenciar um novo momento histórico na vida do Movimento. Portanto, ele representa uma proposta a ser construída, a partir das diferentes determinações que a luta de classes nos coloca;
  • c) O Programa de Reforma Agrária Popular constitui o fundamento de nossas ações, de modo que elas devem ser permanentemente pautadas e orientadas pelo conteúdo e pelos desafios que o Programa coloca para o conjunto da nossa organização. Um outro elemento que é fundamental destacar em relação ao Programa de Reforma Agrária Popular diz respeito à natureza da luta pela Reforma Agrária, observando que até o nosso V Congresso Nacional, entendia que, dadas as condições históricas colocadas, no caso do Brasil, existia a possibilidade de realização de uma reforma agrária nos moldes clássicos, como as ocorridas nos países capitalistas. Contudo, na atualidade, a luta pela terra e pela Reforma Agrária mudou de natureza, frente ao modelo de desenvolvimento econômico vigente no país. Não há mais espaço para uma reforma agrária clássica burguesa, apoiada pela burguesia industrial ou por forças nacionalistas. Agora, a luta pela Reforma Agrária se transformou numa luta de classes, contra o modelo do capital para a agricultura para brasileira.
Credito : Alex Katira, via mst.org

Portanto, o Programa de Reforma Agrária Popular insere-se na luta de classes com vistas à superação do modo de produção capitalista. No âmago desta questão entendemos que a Reforma Agrária integra relações amplas entre o ser humano e a natureza, que envolvem diferentes processos que representam a reapropriação social da natureza, como negação da apropriação privada da natureza realizada pelos capitalistas. Implica em um novo modelo de produção e desenvolvimento tecnológico que se fundamente numa relação de co-produção ser humano e natureza, na diversificação produtiva capaz de revigorar e promover a biodiversidade e em uma nova compreensão política do convívio e do aproveitamento social da natureza.

Para tal, propõe-se diversas medidas, dentre as quais destacamos o combate à desigualdade social, à exploração dos camponeses e à degradação da natureza; garantir a soberania alimentar de toda a população, preservação da biodiversidade; participação das mulheres e garantir a permanência da juventude no campo.

Em 2014, fundamentado no Programa de Reforma Agrária Popular o Setor de Produção, Cooperação e Meio Ambiente redefiniu suas linhas políticas, o qual foi condensado na cartilha Como construir a Reforma Agrária Popular em nossos assentamentos.

Na oportunidade, constatamos que 2 grandes desafios se colocam para nós: a) Produzir alimentos saudáveis, de forma massiva, para atender às necessidades de todo o povo brasileiro; b) Recuperar e cuidar dos bens naturais, como terra, sementes, biodiversidade, água, matas e florestas que estão sob nosso controle. Através do alcance desses objetivos procuramos, ainda, fortalecer o diálogo com a sociedade, no sentido de acumular forças para a construção de um Projeto Popular para o Brasil.

Num período mais recente, reformulamos nossos compromissos com os povos e os bens comuns, que são uma atualização e ampliação daqueles compromissos firmados nos anos 2000. A partir de uma leitura atenta dos mesmos podemos assinalar 3 grandes questões estruturantes:

  • a) O vínculo com a luta de classes e da solidariedade internacionalista;
  • b) A reafirmação da agroecologia enquanto proposta contra-hegemônica ao atual modelo de agricultura;
  • c) A preocupação com temas candentes em nosso cotidiano, que explicitam as mediações por onde a própria luta de classes atravessa: gênero, racismo, cultura, educação, saúde.

Nossos compromissos com os povos e os bens comuns

  • 1. Produzir alimento saudável para nossas famílias e para o povo brasileiro a partir de conhecimentos e práticas agroecológicas e formas de produção cooperadas;
  • 2. Construir a soberania alimentar como direito da classe trabalhadora urbana e do campo a decidir sua alimentação, com base em sua cultura e nas necessidades locais;
  • 3. Desenvolver as economias locais a partir da luta contra a desigualdade social, a concentração fundiária e da riqueza;
  • 4. Cuidar dos bens comuns dos povos, como a água, os minérios, a terra, a biodiversidade, conservando-os e protegendo-os dos interesses privados das empresas de capital nacional e internacional;
  • 5. Enfrentar o patriarcado e o racismo estrutural, construindo novos valores humanistas e novas relações sociais em nossos territórios e com o conjunto do povo. Nossos territórios devem ser livres de todas as formas de opressão e de violência contra a mulher e contra os sujeitos LGBTs;
  • 6. Cultivar a cultura popular produzida em nossos territórios, que deve refletir a Identidade, a diversidade, a alegria e a resistência do povo brasileiro;
  • 7. Promover a saúde de nossas famílias e de nossos territórios, estimulando uma alimentação saudável e práticas coletivas de cuidados que previnam o adoecimento e reduzam o consumo de cigarros e álcool; planejando o saneamento e a geração e destinação do lixo;
  • 8. Fortalecer a educação do campo como processo de articulação entre os saberes tradicionais e científicos para construção de sujeitos críticos e comprometidos com a transformação da sociedade;
  • 9. Trabalhar sempre pela unidade e ampliação das forças populares, seja no campo ou na cidade, consolidando o poder popular frente aos avanços autoritários do capitalismo;
  • 10. Fortalecer a solidariedade com todos os povos do mundo em resistência e luta contra o imperialismo e o neoliberalismo.

Para continuar a reflexão...

Em Janeiro de 2020, durante o Encontro da Coordenação Nacional do MST, lançamos o Plano Nacional Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis, que se propõe a plantar 100 milhões de árvores nos próximos 10 anos. Para além da ação concreta, entendemos que o Plano representa um momento propício para o debate junto à sociedade e junto à nossa base de temas chaves, como: conversão agroecológica, cuidado dos bens naturais, confronto ao avanço do capitalismo no campo, entre outros.

Trata-se, pois, de uma ação política fundamental na qual procuramos fazer o enfrentamento ao modelo hegemônico de desenvolvimento proposto pelo capitalismo, denunciando os impactos nefastos desse modelo e propondo alternativas para a sua superação. Finalmente, entendemos necessário nosso comprometimento coletivo com este processo, pois, como nos lembra Florestan Fernandes:

Se a massa dos trabalhadores quiser desempenhar tarefas práticas específicas e criadoras, ela tem de se apossar primeiro de certas palavras-chave (que não podem ser compartilhadas com outras classes, que não estão empenhadas ou que não podem realizar aquelas tarefas sem se destruírem ou sem se prejudicarem irremediavelmente). Em seguida, deve calibrá-las cuidadosamente, porque o sentido daquelas palavras terá de confundir-se, inexoravelmente, com o sentido das ações coletivas envolvidas pelas mencionadas tarefas históricas.