O Fundo Dema atua junto a comunidades quilombolas do Pará e, no Oeste do Estado, junto à população agroextrativista, inclusive a voltada para a pesca artesanal, aos pequenos produtores rurais e a povos indígenas. Historicamente, a relação de simbiose destes grupos com a natureza assegurou a resiliência dela e deles.
As famílias, portanto, sempre foram escudos protetores relativamente eficazes contra aqueles que quisessem destruir a floresta ou sobrexplorar as águas. Mesmo parte dos agricultores familiares/camponeses que chegaram mais recentemente percebeu a necessidade de buscar métodos agrícolas amistosos com a natureza diante do fracasso das práticas comumente usadas por eles.
Devemos lembrar que o Oeste do Pará é marcado pela rápida expansão da agricultura industrial e da pecuária, que já avança na margem esquerda do rio Amazonas; pela mineração, em particular da bauxita; pelos projetos de barragens hidroelétricos nos rios Xingu e Tapajós; e pela consolidação das infraestruturas, como a Transamazônica e a BR 163, apesar de ainda esperarem o asfaltamento.
Ao mesmo tempo, continuam a florescer as atividades predadoras tradicionais: a extração e o beneficiamento da madeira, a grilagem de terras, a pesca semi-industrial, a garimpagem. O caráter da atuação do Fundo Dema na região visa apoiar as comunidades para garantir sua manutenção e reprodução no território a partir de ações de preservação ambiental, manejo florestal comunitário e ações de desenvolvimento e inclusão social, se chocando, portanto, frontalmente com o modo de expansão nestas localidades e na Amazônia como um todo.
O peso da injustiça ambiental
Hoje percebemos que as relações harmoniosas de interdependência,
consolidadas ou incipientes, entre os povos e a natureza, se romperam ou estão em fase de rompimento, ou porque um grupo populacional está sendo submetido a uma forte pressão externa, ou por não conseguir mais se reproduzir senão pela sobrexploração dos recursos naturais do seu território. Em particular, menciona-se a desvalorização da sua produção agrícola e a escassez crescente de certos produtos do extrativismo vegetal e pesqueiro; o fato das políticas públicas, em particular em educação e saúde, não chegarem até o campo; e o apelo a uma vida melhor que a cidade idealizada representa; enfim, sobretudo, a pressão que exercem sobre eles os velhos e, mais ainda, os novos empreendimentos.
A definição dada pela Rede Brasileira de Justiça Ambiental – RBJA – da injustiça ambiental se aplica exemplarmente a elas:
“Entendemos por injustiça ambiental o mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos raciais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis.” [1]
Os sucessivos governos e a maioria da sociedade brasileira entendem que a redução da pobreza e a ascensão social passam pelo crescimento econômico do país, por seu desenvolvimento. Este é associado, de um lado, à exportação de commodities, e, do outro, à expansão da oferta de energia, o que torna inevitável, na perspectiva do atual modelo, que a Amazônia seja aceleradamente integrada a esse projeto. Esse crescimento foi historicamente construído graças ao sequestro e monopólio das terras e dos recursos naturais pelas elites econômicas e políticas, detentores do poder político que lhes garantiam o monopólio da justiça e da força, o que lhes permitiu ignorar, marginalizar, excluir e até exterminar povos e populações locais. Resquícios dessa história marcam profundamente as mentalidades e os comportamentos das classes dominantes que tendem a reproduzi-la nas suas ações e políticas desenvolvimentistas.
Neste contexto, pela força ou pela persuasão, as comunidades e grupos sociais, alcançados pelo Fundo Dema ou não, se vêm compelidos a abandonar as suas terras ou a ficar confinados a territórios, áreas de extrativismo, posses ou lotes produtivos que não asseguram mais a possibilidade de reprodução digna das famílias. Vale notar que a injustiça ambiental a que são submetidas essas populações pode ser justificada sob o pretexto de assegurar o bem comum. No caso de Belo Monte, por exemplo, em audiência de Dom Erwin, bispo de Altamira, com o Presidente Lula, um alto funcionário comentou que alguns milhares de pessoas deviam se sacrificar pelo bem de 180 milhões de brasileiros.
Este projeto em curso se confronta com os estudos científicos predominantes que confirmam a importância ímpar da Amazônia na manutenção do clima regional e mundial, da biodiversidade do planeta e do estoque de águas doces. Ninguém mais pode ignorar o debate em curso sobre os destinos do bioma amazônico. E frente ao dilema entre crescimento e preservação, várias estratégias, mencionadas a seguir de maneira simplificada, estão em curso.
A estratégia predominante é a do “business como usual”, adotada tanto por setores econômicos atrasados quanto por empreendimentos modernos, públicos e privados. A maioria deles não se importa nem com o bioma - considerado como uma mina a exaurir o mais rápido possível ou como empecilho às suas atividades -, nem com as populações locais - estorvo a seus projetos. Por sua vez, empreendedores modernos defendem a existência de parques e outras áreas de conservação e apoiam as populações locais, suas reservas e territórios, exigindo em compensação que os seus empreendimentos sejam garantidos. Dessa forma, reforçam uma concepção que separa a natureza preservada, sob a estrutura institucional do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), de uma “natureza ordinária”, aberta à destruição. Sua defesa do bioma e o seu respeito às populações locais têm como limites a prioridade absoluta, frente a outras considerações de ordem ambiental ou social, dos seus empreendimentos, considerados intocáveis.
A primeira injustiça ambiental é consequência do atual desenvolvimento, e soma-se a ela uma segunda, provocada pelas estratégias que visam a compensar a crise ambiental e climática decorrentes deste desenvolvimento a exemplo do REDD, do Mercado de Carbono e dos Pagamentos por Serviços Ambientais, que não questionam o modelo de produção e consumo, buscando, ao invés disso, saídas via mercado. A análise dominante dessa crise a seciona em compartimentos estanques, separando as mudanças climáticas da erosão da biodiversidade, da diminuição das águas, da desertificação, etc. Com isso, essa análise se afasta da compreensão e do modo de vida dessas populações, que detém uma visão integrada e holística do seu ambiente. Além disso, ao mirar a floresta, as águas e a biodiversidade, a análise evacua o componente humano, numa perspectiva a-histórica e tecnicista. A Amazônia está sendo reduzida a um imenso laboratório de quantificação técnica e econômica, que faz tabula rasa do seu passado e da história dos que souberam viver nela e dela.
O Fundo Dema e muitas outras organizações amazônicas apostam em outro caminho.
Frente a esse quadro de injustiça, que coloca em perigo não somente os povos e comunidades locais, mas também o próprio bioma, o Fundo Dema se afirma como promotor de justiça ambiental. São orientadores da sua atuação os princípios gerais adotados pela Rede Brasileira de Justiça Ambiental – RBJA:
“Por justiça ambiental, ao contrário, designamos o conjunto de princípios e práticas que:
a - asseguram que nenhum grupo social, seja ele étnico, racial ou de classe, suporte uma parcela desproporcional das conseqüências ambientais negativas de operações econômicas, de decisões de políticas e de programas federais, estaduais, locais, assim como da ausência ou omissão de tais políticas;
b - asseguram acesso justo e eqüitativo, direto e indireto, aos recursos ambientais do país;
c - asseguram amplo acesso às informações relevantes sobre o uso dos recursos ambientais e a destinação de rejeitos e localização de fontes de riscos ambientais, bem como processos democráticos e participativos na definição de políticas, planos, programas e projetos que lhes dizem respeito;
d - favorecem a constituição de sujeitos coletivos de direitos, movimentos sociais e organizações populares para serem protagonistas na construção de modelos alternativos de desenvolvimento, que assegurem a democratização do acesso aos recursos ambientais e a sustentabilidade do seu uso” [2]
São essas dimensões da justiça ambiental que os objetivos do Fundo Dema expressam:
“Fortalecer os movimentos sociais na sua ação de proteção e promoção socioambiental; dinamizar o processo da inclusão social viabilizando experiências agroextrativistas, de pesca, agrícolas e agrosilvopastoris em bases sustentáveis, com eqüidade de gênero, geração, raça e etnia; fortalecer a cidadania indígena e as comunidades de populações tradicionais; combater o desmatamento e/ou uso predatório de recursos naturais; defender e promover de forma sustentável a Amazônia”.
Para os povos e comunidades locais, a realização da justiça ambiental será dada quando as dinâmicas de desenvolvimento para e na região reconhecerem e integrarem a sua existência e a sua cidadania. Esse reconhecimento dar-se-ia principalmente através de três dimensões das práticas sociais.
- 1/ A primeira dimensão, de qualificação e fortalecimento, diz respeito ao reconhecimento dos seus conhecimentos, da sua visão do mundo e ampliação da sua compreensão da evolução do desenvolvimento do país, a sua capacidade de argumentação, força organizativa, grau de associativismo, o domínio dos seus territórios e autonomia, a manutenção de uma cultura viva, etc.
- 2/ À medida que se fortalecem, suas reivindicações por justiça ambiental podem encontrar eco no plano do reconhecimento dos seus direitos, seja no âmbito do judiciário, seja no âmbito de políticas públicas;
- 3/ e eles se constituírem em agentes econômicos ativos, capazes de auto-sustentação e de aporte à economia local, regional e nacional, sendo que sua reprodução social e econômica se dá de maneira inseparável com a sustentabilidade do ecossistema e os leva a reconhecer que vivem felizes/satisfeitos e com qualidade de vida.
Vale notar que a justiça ambiental realiza-se quando essas três dimensões andem juntas. No contexto atual, no qual poder executivo e poder legislativo apostam no “crescimentismo”, e por isso não hesitam em fazer da região amazônica a nova fronteira de um desenvolvimento a qualquer custo, as populações locais não têm vez e voz, senão como beneficiárias de políticas marginais. Qualquer política que reconheça seus direitos e seu papel na preservação do ecossistema e queira que se consolidem a partir das suas identidades como agroextrativistas, pescadores, camponeses/agricultores e agricultoras familiares somente poderá avançar com seu “empoderamento”, seu fortalecimento.
Os 208 projetos apoiados até agora – sendo 51 concluídos com êxito – buscam, de diversas maneiras, fortalecer os sujeitos locais e garantir vida digna às famílias. Para ficarmos em um exemplo, o projeto Açaí com Farinha do Assento não seria assentamento? Agroextrativista do Lago Grande demonstra a resistência de mais de cem famílias ao avanço de grandes empreendimentos na região de Santarém. As atividades garantiram o fortalecimento do sindicato de trabalhadores e trabalhadoras rurais, a criação de um plano de uso do território e a valorização dos seus recursos naturais.
Mas a luta por justiça ambiental na Amazônia não é travada por suas populações somente em prol do seu futuro. É uma luta que interessa a toda a humanidade, pois o modelo em curso levará de maneira inexorável à destruição do bioma amazônico, o que terá consequências incalculáveis, colocando em risco a alimentação e a saúde dos setores mais desprotegidos muito além da região, que se tornarão vítimas de uma injustiça ambiental de efeito retardatário. Frente a um modelo de desenvolvimento predador, que privatiza e mercantiliza a natureza, destruindo-a ou sujando-a, submetendo-a ou sugando-a, povos e comunidades locais opõem, conscientemente ou não, uma economia dos “Comuns”.
Os Comuns aqui referidos são “posse”, território, assentamento, quilombo, Resex, etc. de povos indígenas, comunidades tradicionais, camponeses/agricultoras e agricultores familiares que os gerem, mas são também bens comuns da humanidade. Apresentar essas áreas como “Comuns” não quer dizer que elas são obrigatoriamente coletivas ou que tudo o que se faz nelas é coletivo. Elas são Comuns porque cada pessoa e cada povo ou comunidade, para além de eventual interesse individual imediato, sabem que a subsistência e a reprodução sua, da sua família, da sua comunidade ou do seu povo, é historicamente ligada à preservação do ecossistema em que vivem.
Entendemos que os indicadores de justiça ambiental dependem principalmente do comportamento dos agentes públicos e privados e dos seus empreendimentos, portanto, não podem ser obtidos somente a partir da avaliação dos projetos apoiados pelo Fundo Dema. Também concluímos que sem efetiva participação e incidência nos processos que decidem sobre políticas públicas e sobre os empreendimentos que afetam a região, a sobrevivência e o futuro dessas populações continuarão ameaçados. Por fim, a Justiça ambiental supõe que elas sejam consideradas como atores econômicos. Não se trata de fazer deles meros guardiões da natureza e testemunhas do passado. Esta perspectiva indica que os investimentos em educação e formação tenham que ir muito além de projetos limitados no espaço e no tempo.
Apesar das dificuldades descritas, a existência do Fundo Dema na Amazônia fortalece a resistência dos povos diante das contradições existentes e do desenvolvimentismo econômico. Assim, podemos afirmar frente aos resultados obtidos até agora e levando em conta a importância da região amazônica diante da crise climática mundial, que o alcance do Fundo Dema, ao se tornar instrumento de justiça ambiental, ultrapassa em muito sua área de atuação.