Sociedade civil, meio ambiente e mudanças climáticas

Mudanças climáticas e injustiças ambientais: Porque as cidades têm dificuldades para enfrentar o problema

, por Fase - Solidariedade e Educação , LEROY Jean Pierre, MALERBA Julianna

A cidade, lembra David Harvey, como ambiente construído, “constitui um vasto campo de meios coletivos de produção e de consumo” (HARVEY, 2012. P.76). Se as cidades, sobretudo as grandes e as metrópoles, são a expressão do momento atual do capitalismo, elas não nasceram evidentemente com ele. Pesquisas arqueológicas revelam que milhares de anos atrás já eram lugares de trocas comerciais e de administração do poder local. Com o capitalismo, adquiriram o estatuto de motor da sua expansão, concentrando indústrias, serviços e força de trabalho. E, num momento em que a palavra de ordem é “competitividade”, aceleram-se as tendências a subordinar qualquer planejamento urbano, qualquer interesse público aos interesses do capital. Não é ele que vai permitir empregar mão de obra, melhorar a infraestrutura e os equipamentos urbanos, complementar ou substituir o poder público com mais saúde e educação? É assim que o território urbano e seu entorno estão sendo definidos e apropriados pelo capital.

O capitalismo atua também no plano ideológico e impôs mundialmente o seu modelo de produção e de consumo como o único capaz de satisfazer as necessidades humanas. No nível local a ideologia capitalista subordina as cidades convencendo cidadãos e governos locais que é somente através de sua pujança que as cidades podem se impor num mundo competitivo. É dessa forma que o capital (imobiliário, industrial, alimentar) subordina aos seus desígnios o poder público e a opinião pública dominante, que passam a ceder à chantagem do emprego, oferecendo vantagens para atrair investimentos em detrimento dos interesses da cidade e dos cidadãos. Neste contexto, valores como qualidade de vida para todos e direito à cidade e o planejamento de uma cidade mais igualitária são secundarizados, mas o “local” é valorizado, como analisam Henri Acselrad et alii:=

“Para pacificar a democracia de mercado, ameaçada pelas próprias desregulações do mercado, fala-se insistentemente em reconstruir no plano local – nas comunidades – tudo o que o global vem destruindo no plano nacional, a saber, a ‘solidariedade’ e a ‘cidadania’.(...)
Esse urbanismo de resultado pretende, por certo, promover a construção simbólica de uma cidade contínua, una, não fragmentada. Mas em nome da unificação simbólica para se obter possíveis ganhos futuros via competição, são justificadas medidas que concorrem para aumentar a segregação socioespacial, a desigualdade ambiental e o enfraquecimento político da população residente nas áreas empobrecidas” (ACSELRAD, 2006. P.30,31)”.

O capital se realiza na cidade de diferentes formas que coexistem e se alimentam umas a outras. Ele perpetua a “acumulação primitiva”, se apropriando de territórios urbanos ou suburbanos pela violência ou a fraude, super-explorando uma força de trabalho que, sem um horizonte de melhores oportunidades, aspira a qualquer trabalho, com processos produtivos arcaicos grandes consumidores de matérias primas e de energia; mas também é o lócus de empresas na vanguarda tecnológica que buscam passar uma imagem limpa de sustentabilidade.

E como a urbanização ao seu serviço “absorve enormes quantidades de capital tanto na construção quanto na manutenção” (HARVEY, 2012. P.75), o capital se alia ao Estado numa complexa rede pública-privada voltada para a urbanização. Assim, há uma busca incessante para tornar todo o território urbano funcional aos interesses econômicos, seja na conformação territorial, com a distribuição dos bairros, dos serviços, das indústrias, seja na organização da mobilidade. Isso se dá num movimento adaptativo permanente de destruição e recriação, em que o território urbano e suburbano fique cada vez mais submetido à lógica do capital.

As mudanças climáticas como fator de injustiça ambiental. Os desastres e o direito à cidade

Esse conjunto de interesses e de estratégias, tão bem expresso pelo poder das grandes empreiteiras, força os pobres a se instalar em áreas ainda sem utilidade, desprezadas pelo grande capital por vários fatores: i) seja porque são distantes demais dos centros urbanos, ii) seja porque situadas em áreas consideradas impróprias para atividades industriais, comerciais e para residências legalizadas, ou ainda iii) porque exigiriam infraestruturas que o poder público não se dispõe a implantar.

Conforme já mencionado, um dos resultados desse processo é a ocupação de áreas ambientalmente mais frágeis pelas populações que historicamente não têm sido priorizadas pelo planejamento urbano realizado (ou negligenciado) pelo Estado sob forte pressão de interesses privados e da lógica patrimonialista que ainda orienta e explica, em parte, a omissão do poder público e a ausência de garantia de direitos de uma expressiva parcela da população do país.

Além de aumentar a vulnerabilidade ecológica das cidades às mudanças climáticas e aos desastres, a ocupação dessas áreas imprime algumas particularidades às cidades quando ocorrem eventos extremos. A principal delas é o fato de colocar as populações pobres e vulnerabilizadas na linha de frente às mudanças climáticas.
À injustiça ambiental a qual estão submetidas pela falta de acesso ao solo urbano - e que resultam em moradias precárias com maior exposição ao calor, em precariedade de serviços de transporte público e dos serviços públicos em geral e na proximidade freqüente de atividades industriais e de serviços poluentes, barulhentas ou perigosas – soma-se o risco climático com o qual passam a ter de conviver de forma mais permanente.

No entanto, o acesso ao solo urbano que continua sendo o primeiro e maior sinal da desigualdade urbana torna-se também um fator de desigualdade ambiental. Os desastres recorrentes tanto em metrópoles quanto em cidades pequenas estão aí para exemplificar tragicamente essa desigualdade.

Enchentes e trombas de água chegam para as pessoas e as comunidades atingidas como algo destruidor instantâneo, como um fenômeno imponderável, devido a forças da natureza indomáveis. No caso das secas, o desastre vai se instalando de mansinho, até um ponto de não retorno quando se constata que tudo se perdeu. Uma explosão numa indústria emite uma carga de gases tóxicos. Simples incidente ou desastre que poderá ser consumado até décadas depois com o aparecimento de doenças mortais? Os desastres são tudo isso e muito mais. Neles, se expressa como num condensado toda a injustiça ambiental e climática do mundo.

Concentremo-nos aqui nos desastres ligados às mudanças climáticas. Vale notar que usamos o termo “ligados” e não “causados”, pois no estado atual dos conhecimentos, não é possível dizer qual é a parte do aquecimento global em tal ou tal evento, e qual é a parte que cabe a uma conjugação, por exemplo, de correntes de ar, que periodicamente se encontram para gerar temporais devastadores.

A professora e pesquisadora Norma Valencio, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais em Desastre (Neped), em estudo profundo sobre o tema orienta aqui nossa reflexão. Serão os desastres exceções, ou se tornam coisa corriqueira? Entre Situações de Emergência (SE) e Estado de Calamidade Pública (ECP), “29,42% dos municípios brasileiros passam anualmente por esse percalço” (VALENCIO, 2012. p. 98). Se acrescentarmos o número de mortos e de vidas destruídas, não há dúvida que estamos frente a uma calamidade pública que exige a mobilização permanente tanto da sociedade quanto do poder público. E já que mais de 80% da população mora em cidades, torna-se uma das grandes questões urbanas.

Essa mobilização deve ser permanente também porque não deve ser tão somente “curativa”, no “dia do desastre”. O desastre deve ser visto “como processo social que integra o passado, o presente e o futuro de uma coletividade” (VALENCIO, 2012, p.22). As vítimas são à evidência principalmente pobres que moram em áreas de risco. A recorrente conexão entre áreas de risco - pobres - desastre tende a naturalizar os desastres que atingem os pobres e até a culpabilizá-los. Esquece-se o processo social cruel que não lhes deixou outras alternativas que as áreas ditas de risco. Na prática, essas áreas são reservadas às pessoas de baixa renda, às famílias que migram para a cidade sem emprego assegurado, às mulheres chefes de família sem renda fixa, àqueles/as cujo trabalho não permite pagar um aluguel, etc.

É assim que “no discurso corrente de agentes de defesa civil, trata-se de uma espacialidade problemática, não apenas em razão de certas susceptibilidades do meio natural, mas em razão da “ação antrópica” deletéria” (VALENCIO, 2012. P.58). Ao transformar relações de classe e de perpetuação da desigualdade em categorias geológicas de “risco” combinada com uma genérica “ação antrópica”, evita-se discutir a causa real da quase totalidade dos desastres.

Da aceitação pública desse discurso, resultam, pelo menos, três conseqüências:

  • A primeira refere-se ao fato do risco passar a ter de ser gerido por especialistas, por ter uma componente técnica central (geológica, hidrológica e urbanista), e por que as pessoas são “inconseqüentes”. Em segundo lugar, como não se faz o debate de fundo sobre o processo de construção da cidade, sobre o papel estruturante das desigualdades de classes, do racismo, da vulnerabilidade das mulheres na produção dos problemas urbanos naturaliza-se a incidência de outros desastres. Sejam nos mesmos lugares ou em outros, afetam, em geral e de forma mais drástica, os mesmos grupos. Instala-se a “indústria dos desastres” (sem, claro, dispensar a secular indústria da seca) e perpetua-se, sem remorso, a desigualdade (“sem remorso”, já que se suspeita da culpabilidade dos afetados). Por fim, dado que os desastres são apropriados por especialistas que determinam quais são as áreas de risco e as medidas a serem tomadas, sempre por órgãos da administração, em particular a Defesa Civil, não sobra espaço para que pessoas, comunidades e suas organizações, possam participar democraticamente das decisões que afetam profundamente suas vidas. A sua cidadania lhes é negada mais uma vez
  • Nesse cenário, as iniciativas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas são reduzidas, no melhor dos casos, a ações pontuais, em geral circunscritas a soluções tecnológicas, desprovidas do caráter estruturante e do princípio da justiça ambiental sobre o qual deveriam ser pautadas. “No melhor dos casos”, pois dois anos depois da tragédia que se abateu sobre a serra no Estado do Rio de Janeiro, a imprensa mostrou que quase nada foi feito para evitar a repetição de desastres nas áreas e municípios atingidos. Não precisa de grandes pesquisas para descobrir provavelmente uma situação idêntica na maioria dos municípios brasileiros.
  • Soluções estruturantes que sejam capazes de promover cidades mais justas, menos vulneráveis às mudanças climáticas e organizadas de forma a valorizar dinâmicas produtivas e reprodutivas mais sustentáveis somente serão alcançadas por meio da organização e mobilização social. Politizar o tratamento dado aos desastres, questionando e intervindo sobre sua forma tecnicista, autoritária, pontual e desprovida de caráter cidadão, rejeitar leituras fragmentadas que não possibilitam quebrar com a dicotomia campo cidade e que reorientem as prioridades das políticas urbanas são tarefas que no atual contexto cabem a sociedade organizada fazer avançar.

Frente à abordagem fragmentadora, tecnicista e despolitizante do debate hegemônico, se faz urgente que os governos sejam pautados no sentido de reconhecerem que o enfrentamento das questões relacionadas à crise ambiental e climática passa por uma leitura mais ampla, relacionada ao modelo e às opções de desenvolvimento no plano local, regional e nacional. E por ações que integrem políticas públicas e abram espaço para a participação cidadã, possibilitando ganhos em termos de democracia, justiça e sustentabilidade nas cidades.

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Extraído do artigo escrito por Jean Pierre Leroy e Julianna Malerba: Mudanças climáticas e sustentabilidade: nova agenda para o direito à cidade, a ser publicado no Caderno de debates: Juventudes e direitos na cidade. Org. Evanildo Barbosa e Joana Barros. Previsão primeiro semestre de 2013.