Desde o fim da Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra Fria, a preocupação com a segurança na América do Sul conta com um instrumento coletivo hemisférico para sua promoção, criado a partir da iniciativa dos Estados Unidos: o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar) ou Pacto do Rio, de 1947. Sob a lógica do conflito bipolar, o tratado objetivava garantir a proteção dos países latino-americanos [1] contra agressões externas.
Dessa maneira, o acordo conformava um sistema de segurança coletiva – um ataque contra qualquer membro seria considerado um ataque contra todos (Artigo 3o) – e inseria formalmente a América Latina no bloco ocidental capitalista. Contudo, sua efetividade limitada foi revelada quando o instrumento foi invocado pela Argentina na ocasião da Guerra das Malvinas em 1982 e não obteve resposta, demonstrando que apenas funcionaria no caso de a agressão externa partir de um país do bloco antagônico. Vale lembrar, ainda, que Chile e Estados Unidos apoiaram o Reino Unido no conflito, ilustrando a ineficácia do instrumento.
O final da Guerra Fria, com o desmantelamento da URSS em 1991, não veio acompanhado da denúncia automática do tratado por parte de nenhum de seus contratantes. [2] Dessa forma, apesar do anacronismo e da ineficácia aparentes, o Tiar permaneceu em vigência sem sofrer qualquer alteração para que se adequasse à nova realidade política internacional e à transformação do caráter das ameaças presentes no hemisfério. Somente em 2003, com a realização da Conferência Especial sobre Segurança, o debate em torno das novas ameaças, com destaque para o terrorismo, viria a ser feito no âmbito da OEA, tendo como resultado a Declaração sobre Segurança nas Américas, sem grandes consequências no sentido de provocar modificações na arquitetura institucional da organização. De todo modo, o Tiar permanece como o único sistema de segurança e defesa coletiva regional propriamente dito do qual participam os países sul-americanos (menos Guiana e Suriname).
Não obstante, com o avanço da democratização e dos processos de integração regional na América do Sul, desde o final dos anos 1990 tem se assistido ao aparecimento de declarações e mecanismos que buscam garantir a paz entre os países da região e promover a confiança mútua e a solução pacífica das controvérsias. Entre eles, destacam-se [3] a Declaração Política do Mercosul, Bolívia e Chile sobre a Zona de Paz, assinada em 1998, e a Carta Andina para a Paz e a Segurança, firmada em 2002. No contexto do continente sul-americano como um todo, na Segunda Cúpula Sul-Americana, em 2002, emitiu-se a Declaração da Zona de Paz Sul-Americana.
Além desses documentos, tomando a manutenção da ordem democrática como uma questão de segurança, no sentido apregoado pela paz kantiana, [4]. as iniciativas de integração regional também passaram a contar com as chamadas “cláusulas democráticas”, consubstanciadas no Protocolo de Ushuaia, de 1998, no Mercosul, e no Protocolo Adicional ao Acordo de Cartagena, de 2000, na CAN. Estes protocolos preveem diferentes tipos de sanções aos países participantes dos blocos nos quais ocorram tais rupturas, tendo como limite a suspensão da sua participação dentro do exercício de integração. Na OEA, assinou-se a Carta Democrática Interamericana em 2001. Em âmbito sul-americano, o tema da manutenção da ordem democrática apareceu desde a primeira cúpula, em 2000, no Comunicado de Brasília. De todo modo, ele viria a ser devidamente institucionalizado na Unasul somente após a tentativa de golpe contra Rafael Correa no Equador em 2010, com a assinatura do Protocolo Adicional ao Tratado Constitutivo da Unasul sobre Compromisso com a Democracia.
Após esses desenvolvimentos, o processo de construção de confiança entre os países sul-americanos atingiu seu auge com a criação do Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS), no final de 2008, no âmbito da Unasul. Apesar de ser fruto de negociações iniciadas em 2006, a proposta formal surgiu por parte do Brasil, no contexto da crise entre Colômbia, Equador e Venezuela. Em função disso, os objetivos da nova instituição tiveram como foco central o fomento da confiança para a garantia do estabelecimento de uma zona de paz na América do Sul, a fim de possibilitar a estabilidade democrática e o desenvolvimento na região. Além desses, acabaram se tornando também objetivos gerais a construção de uma identidade sul-americana em matéria de defesa e a formação de consensos para a cooperação militar. Portanto, ao contrário do que o presidente venezuelano, Hugo Chávez, expressou esperar de uma organização desse tipo nos anos que precederam sua criação, o CDS acabou não incorporando funções de um sistema de segurança coletiva ou de uma aliança militar.
Para Medeiros Filho (2010, p. 6-9), além das questões da zona de paz e da formação de uma identidade sul-americana em defesa, outras duas demandas justificariam a criação do conselho: o combate ao crime organizado e a cooperação na produção e comercialização de produtos da indústria bélica. Sobre a primeira demanda, o tema do tráfico de drogas e das guerrilhas acabou sendo tratado separadamente com a criação do Conselho de Luta contra o Narcotráfico, em 2009. Seu estatuto foi formulado em 2010 e o conselho passou a se chamar Conselho sobre o Problema Mundial das Drogas (CSPMD). Seu objetivo central é se estabelecer como uma instância de consulta, cooperação e coordenação para o enfrentamento desse problema. Seu grande diferencial está na abordagem holística da questão, incluindo tanto a oferta como a demanda das drogas em suas preocupações e considerando a resolução do problema uma responsabilidade comum e compartilhada. Além disso, no que concerne à redução da oferta, preocupa-se especialmente com o desenvolvimento alternativo a ser planejado para as áreas de cultivo e produção da droga. O Plano de Ação do CSPMD, aprovado em 2010, tem cinco linhas de ação: redução da demanda; desenvolvimento alternativo, integral e sustentável, incluindo o preventivo; redução da oferta; medidas de controle; e lavagem de dinheiro.
A respeito da outra demanda apontada pelo autor, cumpre assinalar que ela se faz presente nos objetivos específicos do estatuto do CDS. Além de tudo, na primeira reunião ordinária do conselho em 2009, [5] decidiu-se sobre a elaboração de um diagnóstico da indústria de defesa no continente, necessário para a promoção da complementaridade produtiva, da pesquisa e da transferência tecnológica. Mas este não foi o único tema abordado: na mesma reunião, acordou-se pela criação do Centro Sul-Americano de Estudos Estratégicos em Defesa (CSEED-CDS), cujo estatuto foi aprovado na segunda reunião ordinária do CDS em Guayaquil, no ano seguinte. Nesta ocasião, o principal resultado foi a aprovação de um conjunto de procedimentos para a aplicação das Medidas de Fomento da Confiança e da Segurança (MFCS). Elas envolvem intercâmbio de informações e transparência (contando com o desenvolvimento de uma metodologia única para a medição dos gastos de defesa) e medidas de notificação mútua sobre atividades militares intra e extrarregionais, buscando evitar a repetição de episódios como aquele que causou mal-estar entre Colômbia e Equador. Por fim, a novidade trazida pela terceira reunião ordinária, realizada em Lima em 2011, encontra-se na decisão de incluir no plano de ação para 2012 a proteção da biodiversidade e dos recursos naturais estratégicos como uma das áreas prioritárias.
Esses processos podem ser traduzidos como uma clara iniciativa sul-americana no sentido de contar com mecanismos próprios voltados para a governança regional da segurança, sem a interferência da superpotência hemisférica. Nesse âmbito, é emblemática a abordagem holística tomada pelo CSPMD, por exemplo, em clara discordância com os métodos repressivos patrocinados pelos Estados Unidos no Plano Colômbia. De toda forma, esse movimento indica apenas uma emancipação da região no tratamento desses temas, mas não aponta no que tange à confrontação com os americanos.