A ideia de uma biocivilização pressupõe a afirmação de um novo paradigma civilizatório. Esse é um desafio monumental, de ordem filosófica e política, pois envolve a desconstrução de pensamentos, valores e ações, pilares da civilização capitalista industrial, produtivista, consumista, machista e racista, que invadem nossas vidas, moldam nossas cabeças, organizam a economia e o poder na sociedade.
A tarefa é monumental, mas é possível. A história humana está repleta de exemplos nesse sentido. A jornada, contudo, é árdua e longa, para uma ou mais gerações. Para a biocivilização não basta maquiar de verde o que temos e continuar crescendo. Precisamos que a sustentabilidade de todos e todas, sem exclusões, de toda a vida e de todo planeta, se torne a regra.
A atenção neste artigo é a princípios e valores já presentes de forma subordinada e fragmentada no interior da civilização em crise. Esses princípios e valores definem a biocivilização e podem ser potencializados como forças emergentes para esse novo paradigma.
1-Ética da integridade da vida e do planeta
Areconstrução da nossa relação com a natureza é hoje condição sine qua non para a biocivilização. antes de qualquer coisa, somos parte da biosfera, somos natureza nós mesmos, natureza viva, dotada de consciência. A integridade do planeta é um valor em si. Devemos nos adaptar às suas condições e ritmos, possibilitar a renovação e a regeneração da natureza.
Faz-se necessário que voltemos a nos olhar como parte dos nossos territórios, o nosso local de existência, com as suas possibilidades e limites. Esse pode ser o caminho para fazer da relação entre sociedade e natureza uma de trocas vitais e respeito mútuo. Trata-se de seguir um percurso mental e prático de redescoberta dos laços que nos unem ao mundo natural e dos laços de convívio social.
A primeira obrigação para isso é desativar a máquina de produção e acumulação de riqueza material e financeira. O desenvolvimento que tem como condição o crescimento combina a apropriação e o uso sem limites dos recursos naturais e a exploração dos que trabalham. A questão ética central é como abandonar o estilo de vida do ter mais, produzindo sempre mais lixo e destruição, para dar lugar ao ser mais, mais feliz, mais solidário, mais consciente das responsabilidades em relação ao planeta.
2-Ética do cuidado, da convivência e do compartilhamento
Cuidado, convivência e compartilhamento são princípios e valores que devem pautar a organização da economia e do poder na biocivilização. O cuidado pode ser tomado entre os três como o princípio fundante, apesar da sua interdependência com os outros dois. A vida não existiria sem o cuidado, essencial ao cotidiano.
O movimento feminista nos lembra que sem o cuidado não existiriam bebês e crianças, e a vida não se reproduziria. Na economia dominante, onde o mercado é central, esse é um trabalho desvalorizado, considerado doméstico, privado. Ele é realizado fundamentalmente pelas mulheres, que carregam o fardo da dupla jornada, vítimas da lógica machista.
O cuidado ocuparia lugar central na economia da biocivilização. Ele seria indispensável para a vida em comunidade e para essa comunidade se organizar de acordo com as potencialidades e limites do seu local e da biosfera. Por não haver o cuidado, a atmosfera foi colonizada pelas emissões de carbono, e hoje a humanidade está ameaçada, assim como toda forma de vida.
3-Ética dos bens comuns
A lógica dos bens comuns é a resposta à dinâmica atual de acumulação de riquezas, pela qual a felicidade passa pelo ter mais e mais bens materiais. A desmercantilização dos bens comuns é condição incortonável para a biocivilização. A prioridade ao bem comum significa trazer o debate sobre a vida para o centro das atenções.
Os bens comuns não são comuns a priori, são socialmente tornados comuns, são os que as relações sociais identificam e gerem como tais. Eles não necessariamente negam a industrialização, mas a subordinam ao comum. A necessidade sentida, almejada e enfrentada coletivamente leva à criação dos bens comuns. A desenfreada busca por lucros encarece e destrói os bens comuns.
Os bens comuns são restagados como tais pela luta social. Uma das principais hoje é a luta contra a privatização da água. Conceitos novos, como o da colonização da atmosfera, dos oceanos, dos mares e da biodiversidade pelas grandes corporações capitalistas e pelas sociedades mais ricas ganham densidade.
4-Ética da justiça social, ambiental e ecológica
A luta por justiça e igualdade tem sido o motor da história. Nunca a humanidade foi tão desigual como no contexto atual de abundância excludente. Ao mesmo tempo, nunca a humanidade teve tão ampla consciência da ameaça que significa as diferentes formas de desigualdade, características intrínsecas da civilização industrial.
É fundamental associarmos a luta por justiça social à luta por justiça ambiental. Por exemplo, estamos praticando hoje uma injustiça entre gerações, ao não deixarmos para o futuro uma natureza com a capacidade de regeneração que encontramos.
A reflexão sobre ética e justiça tem aqui uma tríplice dimensão. Além da social e da ambiental, a ecológica. Afinal, existe ou não uma questão de ética ecológica, de direitos e de justiça da natureza em si? Não é isso que se conclui da visão cósmica do bem viver e de uma ecologia em que a natureza é sujeito detentora de direitos? Podemos ser contra o direito de sementes e animais se realizarem como seres vivos, da atmosfera e o clima não serem alterados? Como tudo isto requalifica a fundamental luta por justiça social?
Por mais difíceis que tais questões sejam, a busca de respostas para elas nos coloca no caminho da biocivilização, mesmo que ainda muitas gerações tenham que se debruçar sobre tais perguntas.
Direitos humanos não são privilégios. Para serem direitos devem ser iguais para todos e todas. Se servem apenas para certos grupos, certas classes ou certos povos, são expressões de privilégios. A compreensão dos direitos como bem comum de uma cultura política em permanente construção e disputa é o que os torna importantes na reengenharia social rumo à sustentabilidade da vida e do planeta.
5-Ética dos direitos e das responsabilidades humanas
Não existem direitos humanos sem responsabilidades humanas. A condição para ser titular de direitos, todos os direitos, é reconhecer a mesma titularidade em todas as pessoas. Para ter direitos é necessário, ao mesmo tempo, ser responsável pelos direitos dos outros. Trata-se de uma relação de interdependência.
Como imaginário e filosofia para uma biocivilização, seria necessária a elaboração de uma Carta de Responsabilidades Humanas, em paralelo ao aprofundamento da Carta de Direitos Humanos, além da incorporação a esse debate da justiça ecológica, do direito da integridade da biosfera e da capacidade de regeneração natural do planeta. Uma Carta dos Povos para uma Biocivilização pode ser uma forma de conectar e potencializar forças da cidadania na gigantesca tarefa pela frente.
6-Ética da igualdade, da diversidade e da individualidade
É impossível pensar alternativas para a humanidade e para o planeta sem discutir a contraditória articulação dos princípios da igualdade, da diversidade e da individualidade. Até que ponto a humanidade está disposta a rever e renunciar hábitos e padrões e priorizar a vida em sua totalidade, nos termos aqui descritos? Se eticamente não há superiores ou inferiores, como garantir o igual direito à vida a todos os seres vivos?
Por sua vez, a igualdade para ser justa deve respeitar a diversidade. É a igualdade na diversidade, oposta a homogeneização. Ao mesmo tempo, a diversidade social e cultural não pode ser motivo para justificar a desigualdade social.
De um ponto de vista natural, a diversidade é a lei da vida. É na diversidade que a vida se realiza. A diversidade faz parte da ética social, da ética ambiental e da ética ecológica e é, assim, fundamento da biocivilização, condição para a vida sustentável.
Se o social, a coletividade e a interdependência são elementos essenciais do viver humano, para que eles não se traduzam em dominação, é fundamental que sejam apropriados de forma consciente pela sociedade, que as individualidades não desapareçam neles e por causa deles.
A individualidade é a afirmação ética e política da experiência de viver de cada um, e cada um como parte da coletividade. A individualidade só existe com base em princípios e valores comuns que reconhecem o direito de individualidade, sem distinção. Ela é condição de emancipação social, de luta por justiça social, de construção de uma biocivilização.
7- Ética da estratégia de tranformação: democracia e paz
Não é possível a biocivilização sem uma ética de paz. O desmonte da dominação atual e a transformação de relações e culturas são processos políticos que se definem no fazer, no qual a busca ousada, generosa, motivada por grande sonhos e utopias, mobiliza e cria as forças de empuxe. Não existe história sem forças em movimento, em disputa.
O princípio ético aqui é fazer as disputas de forma construtiva, renunciando à violência armada de qualquer tipo e apostando na paz. A estratégia passa pelos incertos e tortuosos descaminhos da democracia, pela radicalização e a democratização da própria democracia.