Caminhos e perspectivas da integração latino-americana

Introduction

, por ESTEVAM Douglas

Os processos políticos latino-americanos iniciados no final dos anos 90 e consolidados na primeira década do nosso século se constituiram numa referência internacional como uma ruptura do pretenso pensamento único liberal. Fruto de longos processos de lutas e organizações sociais em alguns países, da criação de novos instrumentos organizativos em outros, ou ainda resultado de mudanças de estruturas de poder consolidadas por décadas, os novos governos, com diferentes matizes no campo da esquerda, apontavam caminhos alternativos de desenvolvimento econômico e social.

De Fotografía tomada por Farisori ; Autor del mural : Jorge González Camarena, mexicano ; Propiedad de la Universidad de Concepción, Chile - Fotografía personal, tomada por la cámara fotográfica del autor de la misma, CC BY-SA 3.0

Os limites, desgastes e a falta de credibilidade do modelo neoliberal eram indicutíveis no continente. Os novos governos progressistas dos vários países, de esquerda ou centro-esquerda, recolocaram o papel do Estado na orientação da economia na ordem do dia e adotaram na política externa posições de integração mais ativas, num contexto de consolidação de um mundo multipolar, emergência de novas potências e de fracasso das concepções neoliberais como modelo hegemônico. Políticas econômicas orientadas por um viés neodesenvolvimentista foram implementadas em diferentes países e tentaram nortear as concepções de integração regional.

Na metade da segunda década de nosso século esses projetos parecem ameçados por seus limites internos e pelas disputas econômicas e políticas da geopolítica internacional e dos processos multilaterias. As debilidades econômicas dos processos de integração foram acentuadas pela crise econômica e financeira que se intensificaram no continente a partir de 2012, depois uma resposta relativamente positiva de alguns países latino-americanos ao momento mais acentuado da crise de 2008. À atual crise econômica se soma o avanço da direita, tanto nos governos de alguns países (quer sejam por vitórias eleitorais ou por "golpes", como exemplificam Paraguai e Honduras), quanto ocupando espaços nos poderes legislativos ou judiciários. O avanço de setores de direita foram ainda reforçados por uma nova capacidade de mobilização social. A presença mais ativa dos EUA na região, após um relativo afastamento depois do 11 de setembro, e uma profunda e crescente dependência da China como motor da economia internacional, agravaram as fragilidades dos projetos regionais. Hoje a integração latino-americana se encontra num momento de incertezas e impasses sobre seus rumos.

Neste nosso dossiê DPH-RITIMO sobre Integração latinoamerica, tentamos apresentar um panorama das dinâmcias que estão em curso no continente. Metodologicamente, optamos por, sempre que possível, trabalhar com autores e autoras de países diferentes países. Selecionamos alguns textos anteriores à atual crise que a integração continental atravessa, tanto pelo teor das análises quanto porque neles encontrarmos indícios da visão mais otimista que caracterizou o momento mais ativo da integração, embora neles não estejam ausentes as contradicões e desafios. Outros textos analisam mais os problemas, limites atuais e perspectivas. Buscamos também uma certa complementariedade entre os textos, tanto nas temáticas quanto nas perspectivas de abordagem. Dessa forma, no conjunto dos textos, os temas principais aparecem sob diferentes abordagens, intepretações e pontos de vista.

Os projetos de integração latino-americanos

Uma parte dos textos aqui selecionados nos possibilita uma visão mais geral dos projetos de integração latino-americanos. Nos anos 70, os processos de integração começaram a ganhar uma estrutura jurídica e organizativa mais consistente. Inicialmente, com um certo carater nacionalista específico dos regimes ditatorias militares, esses processos não tinham orientações sociais progressistas ou funções políticas no âmbito internacional mais autônomas. Eles estavam focados principalmente em uniões comerciais e aduaneiras. A economista e pesquisadora mexicana Roncal Vattuone nos apresenta em seu texo Los nuevos escenarios de la integración en América Latina y el Caribe um panorama dos principais processos de integração implementas nas diversas regiões do continente, desde o Mercado Comum Centro-americano, criado em 1960, até a ampla CELAC, formalizada em 2010. Divido em duas partes, na primeira são analisados os objetivos de cada projeto de integração e a forma como cada um abordava as assimetrias entre os países, um tema ainda hoje determinante nos projetos de integração latino-americanos, que envolvem países muito heterogêneos em suas dimensões econômicas, geograficas e sociais. Na segunda parte do seu artigo são analisados os aspectos sociais, financeiros e monetários das iniciativas, temas que ganharam mais peso principalmente após a crise financeira de 2008. La nueva arquitectura financiera regional, artigo do economista Luciano Wexell Severo, detalha e aprofunda, entre outros, os mecanismos que o Consejo Suramericano de Economía y Finanzas (CSEF) da UNASUR tenta consolidar para viabilizar a integração regional.

Ainda no âmbito da UNASUR, as iniciativas para criação de uma identidade sul-americana de defesa, levaram a criação do Conselho de Defesa Sul-americano (CDS), consolidando mecanismos próprios para as políticas de segurança da região, sem interferências de outras grandes potências estrangeiras. Iniciativa que deu ainda mais relevância para as tentativas latino-americanas de maior autonomia e protagonismo na geopolítica de um mundo multipolar que vem se consolidando após o fim da guerra fria. Esse processo é analisado no artigo Mecanismos regionais de segurança, outro estudo desenvolvido pelos pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicadas-IPEA, um importante orgão brasileiro de assessoria ao governo com atuação latino-americana.

O abandono do regionalismo liberal

O relativo abandono do regionalismo liberal, que marcou os processos de integração no passado e foi colocado em questão nas últimas décadas, é analisado no artigo La recuperación del desarrollismo en el regionalismo latinoamericano, de autoria dos pesquisadores do IPEA. O liberalismo foi definitivamente colocado em questão com o fracasso das tentativas de implementar a ALCA no continente. A partir de então, uma série de iniciativas integracionistas se construíram baseadas em uma nova concepção de crescimento econômico caracterizada por um viés desenvolvimentista. No entanto, esse neodesenvolvimentismo, como ficou conhecido, ainda estava profundamente ancorado na exportação de matérias primas e recursos naturais, minérios e produtos agrícolas, mantendo as economias da região em condições limitadas de desenvolvimento. As tentativas de industrialização não tiveram tanto êxito, com as economias nacionais se voltando mais para as exportações de matérias primas e não conseguindo alterar substancialmente a estrutura produtiva nem tão pouco conjugá-la com a integração regional. Com o agravante da crise econômica internacional e a diminuição da dinâmica da economia chinesa, os processos de integração tiveram sua marcha afetada. Já há algum tempo questionado, o modelo desenvolvimentista parece atingir seu limite, como nos mostra o artigo Desenlaces del ciclo progresista. Ensayos neo-desarrollistas y proyectos socialistas, do economista argentino Claudio Kartz. Ele analisa com mais detalhes os limites deste modelo na Argentina, no Brasil e no Equador, e os avanços da direita na região, que com o fim do kichnerismo na Argentina conseguiu ocupar um importante espaço em um dos países protagonistas do recente processo de intergração regional.

O Mercosul e a China

Os significados, os impactos e a importância que as relações com a China poderão assumir nos acordos com a América Latina são analisados por Samuel Pinheiro Guimarães em seu artigo Mercosur y China: tres caminos. O desenvolvimento econômico da potência mundial, sua política externa marcada pela necessidade de materia primas, recursos energéticos e agrícolas, tem grande impacto sobre o Mercosul. A região se apresenta como um importante mercado não só para os produtos manufaturados chineses, mas também bens industrias sofisticados e bens de capitais (além de capitais). Guimarães pensa no MERCOSUR como superação de um instrumento neoliberal de integração para convertê-lo numa agência de desenvolvimeto regional, com forte ênfase na superação das assimetrias e no fortalecimento dos fundos de desenvolvimento regionais como o Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul-FOCEM.

O sociólogo belga François Houtart é um profundo conhecedor dos movimentos sociais da América Latina e de suas dinâmicas. Desde os anos 70, ele contribui com as organizações do continente, fazendo uma das mais sistemáticas análises do processo de integração continental e da participação dos movimentos sociais. A ALBA é o único projeto de integração que assegurou, em sua estrutura legal de funcionamento e tomada de decisões, uma instância para os movimentos sociais, chamada Conselho de Movimentos Sociais. Os movimentos sociais dos outros paises do continente, que não são membros da ALBA, iniciaram a construção da Articulação dos Movimentos Sociais pela ALBA, reunindo movimentos sociais de todo o continente, inclusive dos países não membros da ALBA. Na primeira assembleia continental da Articulação, François Houtart fez uma análise das diferenças programáticas e de concepções da ALBA em relação aos outros processos de integração, elencando seus desafios, limites e potencialidades. Essa análise da ALBA, em nosso dossiê, se encontra no texto El ALBA y su contexto. A análise sobre as dinâmicas dos movimentos sociais, suas relações com os processos de integração e os outros atores (estados, governos, partidos), assim com a concepção pós-capitalista que orienta os movimentos, constituem o tema da segunda parte de seu artigo, Los movimientos sociales y el ALBA.

A diplomacia militar dos EUA

Ainda que tenha se verificado em determinado período um certo afastamento dos Estados Unidos dos processos regionais, principalmente após 11 de setembro, os interesses americanos não tardaram muito a tentar recuperar o espaço perdido e a influir novamente nos rumos da região. A presença de bases americanas no continente latino-americano segue sendo importante, além de novas bases que foram construídas na Colômbia. A reativação da IV frota também atesta os objetivos de uma maior presença e controle militar no continente. No plano diplomático, o apoio dos EUA a processos tidos como novas formas de golpismo, como o ocorrido em Honduras, reforçaram a percepção de que a orientação da potência americana não se alterou tanto com a gestão Obama.

No plano da integração, a Aliança do Pacífico, composta por países alinhados com os interesses dos EUA, vem se tornando uma base ideológica para as disputas com os processos mais soberanos de integração que os países da América Latina vinham construindo. O principal significado da econômica da Aliança do Pacífico é compreendido pela sua articulação com os tratados de livre comércio dos acordos da Parceria Transpacífica (TTP). São esses movimentos dos Estados Unidos que são analisados no artigo A diplomacia militar dos EUA e a Aliança do Pacífico , do pesquisador José Luís Fiori. Essa dinâmica tende a colocar em questão e problematizar ainda mais os processos de integração latino-americanos, que já se encontram em sérias dificuldades pelas variadas razões que foram apontadas nos outros estudos.

Esperamos que os estudos aqui reunidos possam contribuir para uma compreensão mais profundada dos significados da integração regional latino-americana, dos seus desafios, de seus impasses, de suas conquistas e dificuldades, das disputas políticas e econômicas que marcam a região, e isso principalmente num momento em que o continente parece passar por alterações dos rumos de maior autonomia que os países vinham ensaiando.