As contradições do agronegócio e seus atuais impactos
O Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra tem desenvolvido, ao longo dos últimos vinte anos, o entendimento que a questão agrária passa por importante transformação no mundo e, em especial, no nosso país. A nova dinâmica do capitalismo no campo, chamada Agronegócio, aprofundou as contradições históricas a níveis inéditos, colocando em risco a perspectiva de desenvolvimento de todo o país.
Na sua dimensão econômica, o agronegócio leva nosso país a uma crescente simplificação de sua base produtiva, ao mesmo tempo que nos subordina cada vez mais aos mercados transnacionais. Nosso grande potencial produtivo de alimentos foi sequestrado pelo capital, que o transformou em capacidade de produção de mercadorias agrícolas – commodities. Hoje a agricultura capitalista produz quase que exclusivamente soja, milho, algodão, cana, eucalipto e carne.
Esse caminho nos deprime economicamente, uma vez que esses produtos são exportados com baixíssima industrialização. E, para sua exportação, demandam grandes estruturas logísticas (ferrovias, hidrovias, portos), que engolem volumosos recursos públicos, ao mesmo tempo que desequilibram a concorrência com setores industriais, que produzem bens mais complexos – o capital caminha para onde consegue taxas de lucros mais altas e de rápido retorno.
Em sua dimensão social, esse modelo do agronegócio produz um ciclo altamente destrutivo. A concentração de terra aumenta. No censo agropecuário de 2006, 45% de toda a área ocupada pela agropecuária no Brasil estava nas mãos de 1% dos proprietários. No censo de 2017 esses mesmos 1% de proprietários passaram a concentrar 47,6% da área destinada à agropecuária. Na década de 1990, a área de grãos cresceu 62%, ocupando 65 milhões de hectares, que se somam a mais de 160 milhões de hectares da pecuária e 9 milhões da silvicultura. Junto com essa concentração, vem a destruição de milhões de postos de trabalhos, expulsando o povo do campo para a cidade. Essa realidade cria imensos territórios sem comunidades e aglutina a população em poucas cidades – polos e capitais – normalmente em condições terríveis de vida.
O impacto desse modelo é igualmente profundo na questão alimentar. A medida em que atrofia a economia e destrói territórios, o agronegócio inviabiliza a produção de alimentos. A territorialização do complexo soja-milho-algodão, da cana, do eucalipto/ pinus e da carne pressiona constantemente a produção de alimentos. Entre 2002 e 2015, no Brasil, a área plantada de arroz reduziu 37,5%, a de feijão 30%, a de mandioca 23% e a de trigo 22%. Essa dinâmica ataca diretamente nossa soberania alimentar, ao mesmo tempo em que empurra para as massas trabalhadoras mercadorias processadas que são muito danosas para a saúde humana.
As contradições ambientais também são de proporções imensas e diversas nas regiões do país. Embora faça a batalha ideológica na sociedade se apresentando como moderno, com alta precisão, o agronegócio na realidade mantém – e acelera - a lógica de destruição ambiental que sempre marcou a ação das elites agrárias brasileiras. O desmatamento avança sobre todos os biomas, em especial Amazônia e Cerrado. Os transgênicos já representam mais de 90% dos cultivos de soja e de milho, colocando uma grave ameaça de longo prazo para a agrobiodiversidade, por meio das contaminações e restrição da variabilidade genética. Esses mesmos transgênicos têm como princípio agronômico enfrentar a ecologia safra após safra, o que fez de nosso país o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, aumentando não apenas em quantidade, mas também em nível de toxicidade.
De forma muito rápida e intensa, todo esse modelo também nos leva a uma crise hídrica de escala nacional. A destruição das matas, cerrados e caatingas e o uso irresponsável de sistemas de irrigação totalmente ineficientes pelo agronegócio tem comprometido nosso bem comum principal, a água, seja aquela que está na superfície (nascentes, córregos, rios, igarapés, veredas, banhados), seja aquela que está nos lençóis freáticos e aquíferos. A água que é concentrada pelas grandes explorações é exportada nos produtos agrícolas, o que significa que estamos perdendo nossa grande riqueza hídrica para o atendimento dos interesses do lucro. Ao mesmo tempo, os mesmos agrotóxicos contaminam as águas que ainda estão em nosso país, sendo que algumas cidades as famílias trabalhadoras são obrigadas a consumir um coquetel mortífero de até 27 princípios ativos de venenos.
As bases da construção popular a partir do campo
Portanto, esse modelo da morte humana e do ambiente, da destruição de uma perspectiva soberana e popular de país, deve ser combatido pelo conjunto da sociedade brasileira. Por isso nossa Reforma Agrária Popular recoloca a questão agrária em uma nova posição. Um projeto popular para o campo deve ser assumido não apenas por nós, camponesas e camponeses, mas pelos trabalhadores e trabalhadoras urbanas, seja em suas formas organizativas (sindicatos, associações, movimentos populares) seja entre as famílias que estão dispersas politicamente, mas que constroem o cotidiano de nosso país.
Para isso, a luta é nosso leito por onde devem correr todas as águas de nossas práticas e elaborações. Entender que nossos esforços coletivos, em nossos territórios e no diálogo com as massas trabalhadoras, devem sempre estar inseridos dentro da perspectiva da luta de classe, com objetivo de construir o socialismo. Podemos compreender que a Reforma Agrária Popular é a contribuição das milhões de famílias de Sem Terra pelo país para esse projeto de transformação social de nossa realidade.
A nossa primeira grande missão para avançar nessa construção da Reforma Agrária Popular é a produção de alimentos saudáveis. Seja em nossos acampamentos e principalmente em nossos assentamentos devemos avançar política e tecnicamente rumo à agroecologia. Nesse sentido, dentre os vários manejos agroecológicos, temos visto que aqueles que inserem árvores em seus sistemas produtivos vem avançando por todo o país, seja com agroflorestas, seja com quintais produtivos, policultivos e uma série de iniciativas de reflorestamentos produtivos.
Como vemos ao longo de toda esse texto, as árvores são um componente muito importante no agroecossistema. Elas garantem a resiliência, ou seja, a capacidade que esses agroecossistemas tem de resistir e se recuperar de fenômenos como geadas, queimadas, desequilíbrio de insetos e plantas indicadoras. Elas também aumentam a biocenose, ou seja, a interação entre os milhares de organismos que existem naquele sistema, uma vez que enriquecem a troca entre o solo e o ar, a vida no solo, a decomposição da biomassa e a produção de matéria orgânica. E, fundamentalmente, as árvores diversificam nossa produção, seja com a própria madeira, seja com frutas, sementes, cascas e raízes para fins alimentícios e medicinais.
A nossa segunda grande missão é o cuidado dos bens comuns – água, terra, solo, biodiversidade. São nossos territórios e dos demais grupos sociais do campesinato e dos povos indígenas que garantem que estes bens sejam manejados com interesse coletivo e não a partir da lógica do lucro. Vejam, aqui estamos falando de cuidado e não de preservação. Porque? A preservação é um conceito associado a manter algo intocado, sem a presença do ser humano. Essa é uma noção equivocada, criada nos Estados Unidos no final do século XIX, onde parte da burguesia queria manter parques de refúgio para compensar as péssimas condições ambientais das metrópoles que cresciam à época.
Para criar esses parques, expulsaram diversos povos originários e criaram essa ideologia da “natureza intocada”. Ao contrário dessa ideologia, nós entendemos que toda a natureza que conhecemos é fruto da relação com o ser humano. Não há um quilômetro quadrado dos ecossistemas em nosso país que não tenha sido manejado por coletivos humanos. Os estudos científicos mais recentes mostram que as zonas mais biodiversas da Amazônia são fruto de plantios e manejo de fertilidade ao longo de séculos. Em um deles, foram cruzados mais de mil inventários florestais com três mil sítios arqueológicos na bacia amazônica. A conclusão é que cerca de 80 espécies são encontradas em proporções muito maiores que outras, em especial próxima dos sítios. Dentre elas estão cacau, castanha-do-Brasil, açaí, bacaba, seringueira e pupunha.
Ao mesmo tempo, todos os coletivos humanos se forjam ao transformar essa natureza, produzindo uma imensa diversidade de culturas, hábitos alimentares e sistemas agrários. Então é um processo de co-evolução, onde o ser humano (que também é natureza, uma natureza interior), por meio de seu trabalho, transforma a natureza exterior a si mesmo. E, ao transformar essa natureza, também se transforma, produzindo uma nova realidade concreta, a partir de suas necessidades.
Por isso dizemos cuidar dos bens comuns. Cuidar é um verbo que vem do latim cogitare, que significa pensar e dedicar-se para que algo ou alguém esteja bem. É isso que fazemos quando nos juntamos no acampamento para lutar pela terra: cuidamos uns dos outros, retomamos nossa capacidade de sujeitos coletivos e solidários. Frente às investidas do grande capital contra a natureza, nós devemos assumir como missão também o cuidado com ela. E lembrando: cuidado não é deixar intocado, isolado. É manejar com atenção e querendo que a natureza esteja em nossos territórios durante nossa vida, a de nossos filhos e netos. Quando cuidamos das árvores, é porque sabemos que elas estando ali podemos sempre buscar um fitoterápico, as frutas, as sementes, a lenha, o cabo da ferramenta.
E por que bens comuns? Normalmente ouvimos dizer “recursos naturais”, o que parte da ideia que são matérias primas voltadas para a produção de mercadorias. Quando falamos bens comuns, estamos dizendo que esses elementos da natureza (água, biodiversidade, solo, minérios) são finitos e que toda a sociedade depende deles para sua sobrevivência. Por isso, são bens naturais que devem ser comum a todos nós, numa perspectiva socialista, ou seja, que seja utilizado de acordo com as necessidades estabelecidas pela classe trabalhadora do campo e da cidade, e não das elites.
A luta pela transformação social e o lugar do plantio de árvores
Cuidar dos bens comuns é uma tarefa revolucionária, pois:
a) enfrenta o caráter cada vez mais destrutivo do capitalismo atual;
b) garante os interesses populares, dessa e das próximas gerações;
c) rompe a alienação ser humano-natureza, fruto do capitalismo, ruptura que é fundamental para a formação da consciência socialista.
É nesse contexto que entendemos a tarefa histórica do Plano Nacional Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis. Ele é um esforço político e técnico grandioso, digno de um movimento já maduro, que consegue planejar ações de longo prazo. Mas, para que ele seja internalizado, é fundamental entendemos os desafios que estão colocados tanto para os acampamentos quanto para os assentamentos.
O primeiro desafio é elevar a dimensão ambiental da consciência de nossa base. Nós devemos garantir que os topos de morro, as nascentes, beiras de rios, veredas, igarapés e sangas sejam recuperados com o plantio de árvores nativas. Ao mesmo tempo, temos que compreender o papel das reservas legais, evitar o uso do fogo, resolver o problema do lixo e avançar no debate do saneamento ambiental.
O segundo desafio é estimular o zelo e embelezamento de nossas moradas, quintais e áreas coletivas. Plantar árvores nos acampamentos é sinal de compromisso com a luta e anúncio de disposição de resistir pelo tempo que for necessário, até a conquista da terra. É também medida de segurança, tornando nossos territórios menos expostos. Nos assentamentos, é a garantia de ambientes agradáveis, com diversidade de frutas, árvores medicinais, pássaros, abelhas nativas.
O terceiro desafio é inserir as árvores nos sistemas produtivos. Precisamos desenvolver manejos que incluam as árvores na produção de alimentos. E garantir que elas sejam fonte de renda para as famílias, de forma organizada. É necessário pensarmos as cadeias produtivas de produtos florestais madeireiros e não madeireiros de forma sustentável. Plantios mais extensivos em áreas coletivas, voltados para produção de lenha, carvão e madeira devem estar associados com agroflorestas, quintais produtivos e enriquecimento de matas com espécies nativas de interesse comercial.
O quarto desafio é somar forças para que esse plano mobilize um grande movimento de enfrentamento ao capitalismo e sua dinâmica destrutiva. Para isso, o plantio de árvores deve se transformar em um ato de resistência, ocupando praças, canteiros de avenidas e, principalmente, favelas, ocupações urbanas e escolas. A articulação com distintos setores da classe trabalhadora, como grupos culturais, igrejas, sindicatos, associações de bairros e movimento estudantil é fundamental para que essa proposta se internaliza no seio do povo. Nosso papel aqui é o de produzir as mudas, planejar os plantios e articular politicamente as ações.
O quinto desafio é pautar o Estado, considerando desde o município onde cada acampamento e assentamento está localizado, para que todos os instrumentos de política agrícola possam incentivar a implantação de sistemas agroflorestais para produção de alimentos saudáveis.
Esses desafios devem ser encarados na perspectiva de alterar a correlação de forças na luta de classes. Portanto, o plantio de árvores deve estar inserido na estratégia geral de nossas lutas. Bosques da resistência da luta popular, dos mártires da luta e do coronavírus, jornadas de plantio pela juventude e pelas mulheres, construção de viveiros populares nas periferias. Essas são algumas das iniciativas que já vem ganhando força por todo o país. A criatividade revolucionária do povo deve ser estimulada.
Somado a outras ações políticas, nosso Plano Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis deve cumprir o papel de acumular forças para derrotar o capitalismo a partir do fortalecimento do poder popular. Coletar sementes, cultivar mudas, plantar árvores, emocionar com as florações e colher os frutos. 100 milhões de árvores por todo o Brasil para somar forças na construção de nosso projeto socialista.