Existe hoje no MST e para várias organizações camponesas a compreensão de que a reforma agrária clássica chegou ao limite. O desenvolvimento do capitalismo, principalmente nos últimos vinte anos, assumiu no campo a forma do agronegócio, representando o controle de empresas transnacionais associadas ao capital financeiro em todos os setores da produção agrícola, concentrando terras e recursos naturais e engendrando um modelo de produção destruidor da natureza. O agronegócio se tornou uma força com controle internacional. Em função dessas mudanças, a reforma agrária clássica, que tinha como principal entrave o velho latifúndio improdutivo, não pode mais se efetivar. Para uma transformação das estruturas de dominação, para uma transformação social, para assegurar a democratização do acesso à terra, temos que implementar um novo projeto de reforma agrária, um projeto que estamos chamando de Reforma Agrária Popular.
Um dos elementos centrais do nosso projeto de Reforma Agrária Popular é a dimensão cultural. Nesse campo, a Reforma Agrária Popular pressupõe uma transformação radical dos padrões culturais, tanto da nossa base assentada e acampada quanto do conjunto da sociedade, uma revolução cultural que é um dos fundamentos da forma atual de enfrentamento ao capital. A cultura assumiu uma dimensão estratégica na atual luta pela reforma agrária e pela superação do sistema capitalista e, em função disso, nosso programa de Reforma Agrária Popular passou a ser a base do Projeto Cultural do MST, para o campo e para o conjunto da sociedade.
A cultura como um campo de luta
Sabemos que as palavras têm sentidos, que os significados das palavras são muito importantes na luta de classes, na construção de uma interpretação do mundo, na construção de concepções e significados que orientam nossas ações. Não é a toa que os meios de comunicação de massa, o agronegócio e os políticos conservadores insistem em chamar as ocupações de terra de invasão, tentando classifica-las como ação criminosa, como atos de vandalismo.
Sabemos que a ocupação tem outro sentido, outro significado, e lutamos pela construção desse significado. Ocupação não é invasão. Ocupação significa lutar por direitos e por justiça social, garantidos na Constituição Federal de 1988, por isso não é um crime. Os significados das palavras têm um conteúdo político e podem ajudar a compreender muitas coisas sobre nossa história, sobre a luta de classes, sobre nossos projetos. As palavras, com seus significados, são também instrumentos de construção da realidade, ferramentas para a mudança do mundo. Esses significados que as palavras comportam são construções culturais e expressão de atos e relações sociais. Ações e palavras se conectam na transformação da realidade.
No caso da palavra Cultura encontramos muitos significados que foram mudando com o desenvolvimento da humanidade. Compreender alguns dos significados dessa palavra pode nos ajudar a entender muitas das nossas relações sociais, da história da humanidade, dos nossos valores, das nossas formas de pensamento, costumes, hábitos.
Na origem, o termo cultura vem da palavra latina colere, e significava habitar, cultivar, proteger, honrar. A origem da palavra cultura está ligada à vida rural, ao campo. A palavra significava ocupar a terra, trabalhar na terra, viver na terra. Ocupar a terra é um ato cultural. Ocupar a terra e nela produzir a vida está na origem da agricultura. O agricultor cultiva o campo, e cultivar é o trabalho de produzir uma cultura, como uma cultura de cereais, uma cultura de trigo. O termo que está na origem da palavra cultura também estava ligado à proteção e ao cuidado.
O agricultor também protege, cuida da natureza, cuida das plantas, cuida dos animais, como na apicultura, na piscicultura, na suinocultura ou na bovinocultura. A palavra de base para designar a ação de ocupação da terra, umas das origens da cultura, era a palavra latina colo. É daí que vem o nome que até hoje é usado em algumas regiões de nosso país, como no sul, onde o camponês que ocupa a terra e nela trabalha é chamado de colono. A raiz da palavra é a mesma, colo. Ela também serviu de base para o termo colonizar.
Mas a palavra colonizar adquiriu um novo sentido com a colonização, muitas vezes ligada ao sentido de dominação. O colonizador português invadiu as terras ocupadas pelos povos indígenas, dando início ao processo de colonização que resultou no Brasil. Cultura, acesso à terra ou concentração da terra, colonização, criação ou destruição de culturas, são todos processos históricos que estão por trás do significado da palavra cultura.
Vemos que a cultura e sua relação com a terra, com a posse e o domínio da terra, com o trabalho na terra, sempre esteve ligada aos processos de luta de classes, econômicos e políticos. A cultura tem sido um amplo campo de disputa de significados e de modos de vida. Cultura, economia e política não se separam ao longo da história. E nos dias de hoje não é diferente.
Cultura, trabalho e memória
O termo de base da palavra colono, o colo, era um verbo, uma ação, algo que se faz, uma atividade humana, um trabalho. Como verbo, colo poderia assumir a forma do passado ou a do futuro. No passado, dizia-se cultus, que era a palavra usada para o campo que tinha sido cultivado, um campo cultivado por gerações, um cultivo que trazia as marcas da memória das pessoas que ocuparam aquelas terras e nela trabalharam, nela plantaram, nela produziram, colheram, que fizeram dela seu local de vida. O trabalho coletivo de várias gerações se tornou uma cultura. “Cultus é sinal de que a sociedade que produziu o seu alimento já tem memória”, dizia o professor Alfredo Bosi. A produção do alimento na terra cultivada gerou a memória e a cultura da comunidade que cultivou aquela terra.
É da mesma raiz cultus que vem a palavra culto. Nos tempos mais remotos, era o culto dos antepassados, dos que voltaram à terra da qual haviam sido criados, conforme a imagem da tradição cristã, das tradições mais antigas como a grega ou a romana, além de muitas outras, compreendiam a terra como a deusa criadora da vida, da natureza e dos seres humanos. Há milhares de anos se formou a ideia da mãe terra. O culto dos antepassados está ligado com a terra dos antepassados, ao cultivo da história e a memória do povo.
O MST se colocou como continuidade das lutas dos que lutaram pela terra antes de nós. O cultivo da memória faz parte da formação do novo, e é uma das matrizes de formação humana da pessoa Sem Terra. Sabemos que fazemos parte de uma história de luta pela terra que começou com os povos indígenas, com os negros e negras escravizados, com os vários colonos pobres e sem terra que vieram para nosso país. Somos continuadores das lutas dos povos quilombolas, de Canudos, do Contestado, das Ligas Camponesas. Nos enraizamos na memória de nossa luta pela terra. Cultivamos a memória, a tradição de nossos antepassados na construção de nosso futuro.
Arte e cultura na luta de classes
As experiências de um grupo se enraízam com a de seus antecessores através de mediações simbólicas, como as canções, as danças, histórias. Os cantos de trabalho surgem da vida coletiva e estabelecem relações com a história, com a memória. Da mesma forma, quando cantamos a Internacional ou o Hino do nosso Movimento, estamos nos enraizando na história da classe trabalhadora e na experiência de nosso grupo, de nosso movimento.
Os símbolos, como a bandeira do Movimento, nos ligam à coletividade. Os símbolos se inserem em nossas relações sociais e passam a atribuir significados a elas, convertem-se em mediações simbólicas que constituem os sentidos das ações, posturas e comportamentos.
Do trabalho no campo a cultura assume formas como as das festas da colheita, lendas sobre os alimentos, histórias, causos. Festas de partilha da produção coletiva. As feiras se tornaram parte da cultura camponesa como espaços de socialização e troca da produção. Os cantos de trabalho fortaleciam o vínculo do agricultor com a terra e a comunidade. Produções simbólicas cultivadas e criadas pelos próprios agricultores, pelos próprios trabalhadores para representarem sua vida, sua cultura, seu imaginário, seus valores. Manifestações que dão aos atos da vida uma dimensão estética, uma dimensão de maior beleza e simbolismo, que se tornam força política e social, de fortalecimento do grupo e de cultivo da consciência. Esses são os fundamentos da cultura popular, de uma produção cultural ligada à vida e os valores do povo, em grande parte produzidas pelo próprio povo, pelo próprio agricultor quando falamos do campo. A cultura popular é um dos eixos do projeto da Reforma Agrária Popular.
A produção artística é outro campo da atuação humana extremamente importante na luta de classes. Se analisarmos a evolução do significado da palavra arte também poderemos ter uma noção de suas múltiplas dimensões. Na sua raiz latina, a palavra arte vem de artem, que significava habilidade. Assim, a arte estava associada ao trabalho do artesão, a uma habilidade prática, um trabalho. Com o desenvolvimento da divisão social do trabalho capitalista, a intensificação das formas de expropriação e exploração do trabalho, este passou a ter um sentido desumanizador, de trabalho alienado. No quadro dessa mudança do sentido do trabalho, o trabalho do artista passou a ser cada vez mais separado da sociedade, tornando-se uma forma diferenciada de conhecimento, sensibilização e fruição estética, como crítica do trabalho capitalista. Instalou-se uma divisão segundo a qual os trabalhadores e trabalhadoras não poderiam produzir artes, produzir suas próprias formas de representação simbólica, tornarem-se os produtores de seus sentidos e sentimentos estéticos.
Um projeto de Reforma Agrária Popular pressupõe que os próprios camponeses e camponesas produzam arte, que superem a divisão social do trabalho e possam ter um pleno desenvolvimento humano, em todas suas dimensões. O desafio da produção artística que represente nossos projetos tem ainda a função de confrontar a produção estética do capitalismo, que se utiliza dessa dimensão do sensível em sua disputa pelo imaginário da sociedade. A arte é também uma forma de luta.
A cultura como um projeto de futuro
Ainda como ação, como atividade prática e coletiva, o trabalho de cultivar pode assumir a forma do futuro. Assim, cultivar estava ligado ao trabalho futuro na terra, com uma organização e um planejamento para fecundar o futuro. O ato de cultivar a terra se tornou a imagem para o homem e a mulher que se cultivam a si mesmos, se tornou o modelo do próprio trabalho que o ser humano faz sobre si mesmo. Por isso existe a expressão de uma pessoa cultivada, uma pessoa que se cultivou, uma pessoa culta. Como diria nosso poeta Zé Pinto: “a gente cultiva a terra e ela cultiva a gente”. Cultivamos nossos valores, cultivamos nossos símbolos, cultivamos nossos sentimentos, que a partir de cuidados constantes nutrem os frutos de nosso cultivo de maneira dinâmica e permanente.
Nas sociedades antigas, o cultivo do humano começava com o cuidado, a educação e a formação das crianças. Em latim, uma língua campesina da qual se formou nossa língua portuguesa e a palavra cultura, existia a expressão “lavrar a vida”. A educação é um ato cultural fundamental para o cultivo do ser humano. Nessa dimensão da cultura, o trabalho cultural com nossos sem-terrinhas adquire um papel de extrema importância, assim como o conjunto dos nossos esforços no campo da educação. Cultura e educação possuem vínculos muito estreitos.
A ideia de futuro presente na cultura aponta o sentido de uma condição de vida mais humana, com maior dignidade, resultado de um processo de ação coletiva do grupo. A consciência do grupo que trabalhou por gerações, que cultivou a terra, que cultivou suas memórias e, pelo trabalho e organização, pela sua arte e produções simbólicas, cultivou a si mesmo, constrói uma dimensão de futuro, apresenta uma dimensão de projeto, um projeto de futuro.
O MST cultivou uma história de lutas, valores, justiça social e nosso projeto de futuro é o projeto da Reforma Agrária Popular. Um projeto de futuro que busca a democratização do acesso à terra, para uma outra agricultura, de caráter popular, justa, igualitária, que resolva os problemas que herdamos da colonização que marcou a nossa história, a nossa memória, a cultura de nosso país e de nosso povo, e que supere os limites impostos atualmente pelo capitalismo e o agronegócio. “A cultura encarnada e socializada tem um papel cada vez mais central a desempenhar na construção de um futuro para as nações pobres”, para usar uma vez mais as palavras do professor Alfredo Bosi. A cultura é uma forma de resistência e criação do novo.
O projeto do agronegócio para o campo
O agronegócio nega, pela sua própria definição, o termo cultura que estava presente na concepção de agricultura. No agronegócio desaparece a cultura da terra, desaparece a cultura da vida, porque o agronegócio propõe uma produção sem agricultores, sem cuidado com a natureza, com a vida. Resta somente o negócio da terra, o mercado da terra. A cultura vira negócio, o mercado degrada e torna improdutiva a terra. A relação com a natureza se torna uma relação preocupada somente com a lucratividade.
O projeto do agronegócio de monoculturas com transgênicos e pacotes químicos e tecnológicos é uma produção sem camponeses, sem cultivadores, sem agricultores, sem pessoas, sem vida. Um deserto verde que significa a eliminação da cultura das relações com a terra, o fim das relações sociais, das relações humanas e culturais que se estabelecem na vida coletiva na agricultura. Um projeto que expulsa os agricultores da terra, que destrói a natureza com uma produção para o mercado internacional dependente de insumos químicos. Elimina a cultura da memória dos antepassados que viveram, que trabalharam e cultivaram a terra. Não se cultivam mais culturas, não se cultivam mais pessoas, não se cultivam mais valores nem projetos de futuro. Não há mais relações comunitárias, mas a exploração do trabalho para produzir mercadorias para o mercado internacional, as commodities que vão servir para especulações no mercado financeiro. É uma outra cultura que se estabelece, uma cultura nos marcos do capital, onde o ser humano e a natureza são somente mais uma mercadoria.
O agronegócio acaba com o projeto de futuro da humanidade porque destrói a terra, base da cultura. Não existe espaço no agronegócio para o ato fundamental da cultura de cuidado com a terra, com a natureza, com a biodiversidade. Suas sementes são envenenadas. São sementes que não se reproduzem, não trazem em si a vida, sementes associadas a produções envenenadas que contaminam os solos, as águas, os animais, as pessoas, os alimentos, os consumidores. O agronegócio é a destruição do que as gerações cultivaram e cuidaram por tempos imemoriais. É a destruição das culturas, dos saberes, da diversidade.
Para além dessa relação destrutiva com a natureza, em sua nova fase de dominação o agronegócio e o capital perceberam o papel da cultura como forma de dominação ideológica, para controlar os modos de vida, os hábitos culturais de alimentação, os padrões de consumo, os sonhos e os desejos das pessoas. Em uma estratégia que teve seu início com a Revolução Verde, a nova natureza do agronegócio combina política, econômica e cultural. O latifúndio atrasado não tinha um projeto cultural.
Tornando-se muito mais perigoso, hoje o agronegócio tenta se apresentar como portador de um projeto cultural, mas sua real concepção de cultura é a do capital e de sua lógica mercantil. Ele tenta cultivar um novo hábito alimentar que aniquila todas as formas de cultura criadas na história da humanidade em sua relação com a terra. O projeto de monocultura, como a própria palavra expressa, se baseia em uma única cultura, reduzida, limitada, excludente. Dessa forma, quando o agronegócio se dedica à produção de alimentos, elimina as variedades e padroniza um número reduzido de tipos de alimentos, que são distribuídos em escala internacional. Isso se torna uma mudança cultural, uma monocultura do gosto, do paladar, do tipo de alimentação. A produção de monoculturas, altamente contaminada, em larga escala para o mercado, tem uma estreita relação com o que foi chamado de cultura de massas, cultura em larga escala que se massifica no mercado. O termo cultura de massas gerou algumas confusões, pois alguns passaram a defender a cultura de massas como se ela brotasse espontaneamente das próprias massas, o que era uma característica da cultura popular, ligada às tradições culturais das comunidades na produção de suas vidas. Para marcar a diferença e evitar equívocos, os cientistas sociais passaram a utilizar o termo indústria cultural.
O projeto cultural do agronegócio é o da indústria cultural. Assim como a lógica capitalista de produção em grande escala para o mercado internacional se consolidou na agricultura, a mesma lógica se estabeleceu na produção cultural. A indústria cultural é a produção em larga escala realizada por setores econômicos integrados, produzindo mercadorias em escala internacional. Assim como o agronegócio integra toda a cadeia produtiva da agricultura, desde as sementes, a terra, a comercialização, os insumos, a Indústria Cultural integra todos os setores da produção cultural, como a música, o cinema, o teatro, os jornais, os materiais didáticos das escolas. Um pequeno grupo de empresas controla toda a produção cultural e impõe um modelo, um padrão cultural. E a maior parte das produções dessa indústria cultural são contaminadas de machismo, racismo, discriminações, individualismo, consumismo e uma série de valores que limitam a formação humana, o cultivo do novo.
As empresas do agronegócio adotaram a Indústria cultural como parte de sua estratégia de criar valores, significados, símbolos, ideias e ideologias que justificam o seu modelo, que o tornam sedutor, produzem uma imagem invertida do que realmente é o agronegócio. As empresas buscam nos convencer de que o Agronegócio é um modelo viável e promissor através das produções da Indústria Cultural. Atuam produzindo livros infantis que são distribuídos nas escolas, patrocinando escolas de samba, financiam novelas, promovem apresentações musicais com músicas de tradição camponesa, entre várias outras atividades chamadas culturais.
Assim como o agronegócio limita as possibilidades do tipo de cultura que será produzida, a indústria cultural controla todo tipo de produto cultural que circula em seu sistema. E com isso, a indústria cultural fortalece um processo de colonização de nossas comunidades, nossos territórios, nossas áreas, nossos assentamentos. A indústria cultural a serviço do agronegócio reproduz uma nova forma de dominação cultural da qual precisamos nos defender, em nossas áreas e no conjunto da sociedade, como parte de nosso projeto de emancipação humana da Reforma Agrária Popular.
A Cultura e a Reforma Agrária Popular
O Programa da Reforma Agrária Popular se contrapõe ao agronegócio na medida em que este pensa um campo sem camponeses, um modelo que exclui agricultores. A Reforma Agrária Popular tem uma proposta de sociabilidade para o campo, um modelo baseado em outra matriz produtiva e cultural para a agricultura. A potencialidade de criar sociabilidades em torno do salto de qualidade de vida e de organização popular. A cultura organizativa cultivada pelo MST é a semente de novas relações sociais que transformam as pessoas. Uma nova cultura surge, um novo homem e uma nova mulher são cultivados nas suas relações de organização para trabalhar na terra e para a implementação de um projeto político de transformação da sociedade. A luta é uma das matrizes formativas do MST e se constituiu como uma dimensão cultural. A estrutura organizativa do nosso movimento também é uma formação cultural.
A Reforma Agrária Popular representa uma mudança nos aspectos culturais da vida no campo. Como projeto, ela busca criar uma sociabilidade no campo que ainda não existe. E tenta criar essa nova sociabilidade em confronto com a sociabilidade capitalista ainda existente, inclusive em nossas áreas. Como projeto cultural, o desafio da Reforma Agrária Popular é eliminar a sociabilidade burguesa, a propriedade privada e construir as condições para a emancipação humana. Nosso enfrentamento ao capital está se dando ainda nos moldes da sociabilidade do capital. Frente ao novo agronegócio, fortalecido pelo capital financeiro, pelas empresas transnacionais, pelo monopólio da mídia e pela indústria cultural, as formas de lutas que havíamos construído nos mais de trinta anos de existência do MST não respondem mais aos nossos desafios.
Nesse contexto, precisamos ressignificar a reforma agrária e nossas formas de luta, e a dimensão cultural dessas novas formas de luta e da reforma agrária é fundamental. Uma das formas de ressignificação da reforma agrária é o entendimento de que ela não é uma questão somente dos camponeses. Hoje a importância estratégica da reforma agrária se coloca para o conjunto da sociedade, do campo e da cidade, não somente como um meio de resolução de problemas econômicos, sociais e políticos, mas também como uma resposta ao problema de uma crise ambiental causada pelo agronegócio, pela concentração dos recursos naturais e a grave ameaça para a saúde pública representada por esse modelo de produção de alimentos contaminados por agrotóxicos.
A função social da terra e dos bens da natureza pressupõe uma ruptura com a lógica cultural do capitalismo e assume, por essa razão, um lugar central em nosso projeto. A função social da terra é a base de um outro modelo cultural. E para efetivar a compreensão desse novo significado da Reforma Agrária Popular, precisamos ter um diálogo maior com a sociedade, construindo novos padrões culturais de consumo e de relação com a natureza. Uma nova matriz produtiva e cultural são as bases de um programa que envolve o campo e a cidade, o conjunto da sociedade, atribuindo um novo significado para a reforma agrária, para a agricultura, para a relação com a natureza.
O agronegócio não produz alimentos, mas sim mercadorias, a maior parte destinada para o mercado internacional. Não são alimentos, mas combustíveis, farelo para a produção de rações ou pasta para celulose. São os camponeses que respondem pela produção de alimentos. Compreender que o alimento não é mercadoria é uma mudança cultural estrutural. O agronegócio, com seu modelo que dizima culturas, que aniquila os solos e a natureza, impôs seus pacotes químicos e tecnológicos, com sementes transgênicas associadas aos venenos e insumos químicos que produzem um alimento altamente intoxicado, além dos próprios danos que esse modelo produtivo gera para todo o meio ambiente e a biodiversidade.
A produção de alimentos saudáveis, diversificados, com base na agroecologia e técnicas adequadas aos nossos diferentes biomas, são elementos essenciais de uma cultura produtiva emancipatória e socialmente necessária, que configuram novas relações sociais entres os seres humanos e a natureza. Como produção e sociabilidade, a Reforma Agrária Popular produz uma cultura de resistência à destruição do sistema capitalista em benefício do conjunto da sociedade. O meio ambiente não é uma mercadoria, as florestas, os bosques, a terra, a água não são mercadorias. Entender a função social da terra é se contrapor à lógica da propriedade privada da terra.
O significado cultural do cuidado, da proteção, que está na base da cultura e da agricultura, está ausente no agronegócio. O cuidado e a proteção da natureza se tornaram um ato de resistência ao capital. A cultura do cuidado com a terra e a natureza é uma forma de luta. Os camponeses, agricultores e agricultoras atuam como guardiões da biodiversidade, da saúde da terra, das sementes, isso é uma forma de combate cultural contra o projeto do agronegócio, contra o capital, cujo modelo industrial e tecnológico destrói a natureza, a terra, o passado e a própria vida.
Nessa nova forma de enfrentamento contra o capital e o agronegócio, um dos desafios culturais que temos é o cultivo de uma nova consciência, o cultivo dos novos valores, de novos significados, de novas relações sociais entre os seres humanos e de novas relações sociais com a natureza. Nossa criação será cultivar
um novo camponês, uma nova camponesa, com os valores e significados que a Reforma Agrária Popular propõe. Cultivar os significados dos bens comuns e sua função social. Nosso projeto cultural precisa estar enraizado em todos nossos territórios e incluir toda a sociedade. Nosso projeto cultural extrapola os limites do campo e envolve também a cidade.
Esse projeto cultural deve proporcionar aos assentamentos condições para que se tornem espaços de construção de uma hegemonia popular, com uma força irradiadora para outros setores da sociedade, convencendo a sociedade sobre a importância de nosso projeto e cultivando alianças para esse novo projeto de agricultura. Em nossos assentamentos, uma revolução cultural tem que estabelecer outro modelo de produção, em contraposição ao modelo do agronegócio, mas deve também ser outro espaço de sociabilidade, com outro projeto cultural, eliminando os valores e hábitos individualistas, competitivos, consumistas, patriarcais, machistas, racistas, LGBTfóbicos, atitudes que fragilizam e dificultam a vida coletiva. Muitas dessas práticas ainda estão presentes em nossos territórios, em nossos acampamentos, assentamentos, escolas e cooperativas.
O território, a base social organizada, uma base econômica e um projeto político e cultural, tudo isso pode nos permitir a gradual construção do poder popular. O desenvolvimento econômico não significa automaticamente um avanço cultural. O desenvolvimento econômico do capitalismo representou em muitos aspectos um retrocesso cultural da humanidade e uma destruição do planeta e da natureza. Nosso projeto não pode se limitar a conquistas econômicas, mas deve ser o também o portador de um projeto cultural. Os assentamentos são espaços privilegiados para germinar uma nova cultura, com outras relações sociais partindo de um novo modelo produtivo onde a terra cumpra sua função social. Porém, precisamos ressaltar que isso se dará no campo da disputa, e não será suave. Trata-se de enfrentamento, e portanto, falamos de uma Cultura de Combate.
A Reforma Agrária Popular como Projeto Cultural significa o cultivo de novas relações sociais, o cultivo de novos valores que se diferenciam da sociabilidade capitalista.