Sociedade civil, meio ambiente e mudanças climáticas

Subsidios para o debate sobre Pagamentos por Serviços Ambientais no Brasil

, por Fase - Solidariedade e Educação

NO - Reducing Emissions from Deforestation and Forest Degradation (REDD)
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Consagra-se mundialmente a predominância da economia sobre o político, manifesto através das suas instâncias de poder próprio: bancos, mercado financeiro e grandes empresas multinacionais; e através do seu predomínio sobre a OMC, FMI, BM, etc. que se sobrepõem às instâncias públicas da ONU por ter real poder de decisão e de execução dessas decisões. Mais do que isso, mesmo as agências públicas do sistema ONU foram ou estão sendo contaminadas pela ideologia e pelo exercício do poder da economia capitalista, contaminação que se estende à maioria dos governos do planeta, sob o manto do progresso e do desenvolvimento.

O poder do capital hoje se expressa através da sua capacidade de expansão e de hegemonia intelectual e cultural. Essa capacidade se manifesta, de um lado, pela apropriação constante de novos espaços territoriais (solos, subsolos, fundos marinhos) e de novos domínios (biodiversidade, ecossistemas, corpo humano, culturas, conhecimentos); e, de outro, no plano ideológico, quando conseguiu ser admitido como ator central para a resolução da crise ambiental e fazercom que a economia verde tal como a concebe se impusesse como caminho do desenvolvimento futuro, em que todos e o planeta ganhariam.

Se o discurso do desenvolvimento sustentável continua de atualidade para uso externo, prevalece nas relações sociais, políticas e econômicas o jogo bruto da acumulação do lucro fundado sobre o crescimento a todo custo e a qualquer preço. A chegada de alguns países ao clube dos ricos e a diminuição da miséria em poucos países não deve esconder a perpetuação da pobreza e da fome, e a recriação permanente de novas pobrezas, inclusive nos países ditos desenvolvidos. Quanto à crise ambiental, crise da biodiversidade, da aceleração das poluições e contaminações, dos ecossistemas, em particular desertos, áreas úmidas e florestas, e do clima, as promessas da Rio 92, os múltiplos encontros oficiais realizados nos últimos 20 anos, as promessas e engajamentos deram a luz a pobres medidas impotentes para parar ou mesmo frear o movimento histórico que empurra o mundo ladeira abaixo.

O filósofo e jurista François Ost estabelece, pelo menos para o mundo ocidental, o século XVII como sendo o início “de uma nova relação ao mundo, marcada pelo individualismo possessivo” [1]. Adam Smith, que publica em 1776 “A riqueza das nações”, afirma que o motor que promove a acumulação de riqueza é o impulso natural de cada individuo para melhorar seu bem estar material, aparece como a melhor e, provavelmente, a mais influente ilustração desta afirmação. Para Ost, impõe-se no plano jurídico a propriedade privada e, com ela “a livre disposição dos bens dos quais se é proprietário”. [2]

A porta está aberta à privatização e à mercantilização da natureza, que tem como um dos seus marcos os “Enclosure Acts”, os Decretos de Cercamento das terras, promulgados na Inglaterra desde o século XVI.

Desde então, para ficarmos no campo da agricultura, assistimos – e brademos contra - ao cerceamento progressivo dos direitos do cultivador na produção, reprodução e venda das suas sementes e das suas colheitas. Na França, depõe o camponês Guy Kastler, “as sementes industriais são as únicas disponíveis no mercado, as sementes camponesas são proibidas pela legislação”. [3]

Esse progressivo cerceamento coincide com a busca pela hegemonia no mercado de sementes das principais multinacionais do setor, a começar pela Monsanto e Syngenta. Enquanto pressionassem por uma legislação mais restritiva, tanto no Brasil quanto na FAO, OMC, OMPI, não hesitavam em forçar fatos consumados para impor suas sementes transgênicas, e, em breve, as sementes terminator, usando tanto a ilegalidade quanto o recurso à justiça.

A busca de apropriação privada da biodiversidade natural (em oposição à agrobiodiversidade) é mais sutil, pois a Convenção sobre a Diversidade Biológica – CDB - se apresenta como garantia dos direitos dos povos indígenas e das comunidades tradicionais. Até hoje, busca-se dar concretude à CDB. Para Aubertin e Vivien [4], com ela, a biodiversidade passa a adquirir “o estatuto de recursos genéticos suscetíveis de apropriação pelo mercado”. Ao afirmar o direito soberano dos Estados sobre seus recursos (artigo 2), ela reconhece que a diversidade biológica não é mais patrimônio comumda humanidade (no preâmbulo, torna-se “preocupação comum da humanidade”) [5]; e ao mesmo tempo, obriga os Estados a reconhecerem os direitos de propriedade intelectualsobre os seres vivos. “Em reconhecimento dos direitos soberanos dos Estados sobre seus recursos naturais, a autoridade para determinar o acesso a recursos genéticos pertence aos governos nacionais e está sujeita a legislação nacional (artigo 15.1.)”.

Cada país obtém assim o direito de poder comercializar seus recursos biológicos, mas, em contrapartida, a Convenção pede legislações nacionais sobre os direitos de propriedade intelectual e o reconhecimento das proteções jurídicas sobre as biotecnologias (artigo 16.2.). Enfim, a CDB reconhece direitos “às comunidades locais e populações indígenas (artigo 8.j)”. Visto da perspectiva da privatização da biodiversidade, a CDB, ao reconhecer direitos depropriedade intelectual dessas populações, as submete à lógica privatizante.

À diferença da CDB, as COPs de clima encarregadas de dar prosseguimento e consequências práticas à UNFCCC, avançaram a passos céleres rumo à privatização do clima.

A noção de serviços ambientais aparece progressivamente, até ter consagrado seu uso corrente quando chega como problema central a crise climática. Na construção da noção, biodiversidade e água têm tanto peso quanto o clima. Mas se ela se popularizou, colocamos a hipótese que é porque as forças econômicas dominantes encontraram com a questão climática uma nova maneira de ganhar dinheiro, mas para tal, necessitavam do respaldo dos ambientalistas, respaldo que a introdução dos serviços ambientais lhes garantiu. Nesse jogo de mão dupla, em particular no que diz respeito às longas negociações havidos nas sucessivas COPs do Clima, pode se dizer que foram ONGs ambientalistas que mostraram o “caminho das pedras” ao setor econômico.

Me pergunto se a categoria “serviços ambientais” devia ser ou não rejeitada. A apropriação da noção pelo mercado é tão forte que, internacionalmente, as entidades combativas que atuam nas questões socioambientais rejeitam o seu uso. No entanto, entre serviço ao mercado e serviço à humanidade, há uma grande distância. Apoiados pela reflexão sobre os Comuns, estimo que podemos restabelecer o sentido público dos serviços ambientais.

Tomemos o exemplo da Amazônia. Como considerá-la? Como um bem comum fora do mercado ou como uma fonte de serviços ambientais inseridos no mercado? De um lado, há os governos estaduais da Amazônia brasileira, empolgados em conseguir recursos de qualquer jeito, descobrindo-se pioneiros do desenvolvimento sustentável nos seus estados, e produtores rurais, que consentem em recuperar o que destruíram e em limitar o seu desmatamento futuro, à condição que sejam subsidiados. Do outro lado, temos ONGs e lideranças de organizações populares que estimam pragmaticamente, mesmo reconhecendo o lugar e a importância de políticas públicas e de financiamentos públicos, que o pagamento por serviços ambientais – PSA – está definitivamente incorporado ao mercado e que povos indígenas e populações tradicionais teriam que tirar proveito disso.

Mas, para um proveito mínimo, pois, longe de construir as bases de universalização de política pública, haverá concorrência entre grupos sociais e projetos e o preço a pagar pode ser pesado. As populações envolvidas e seus projetos podem servir de álibi às empresas financiadoras, melhorando a sua imagem e lhes permitindo continuar a despejar no ar seus gases, contentando-se de ajustes mínimos nos seus países de origem. Ao mesmo tempo, podemos nos perguntar se esse envolvimento com o mercado e suas empresas não servirá de “cala boca”, mobilizando todas as energias de organizações de base. Elas arriscam se tornar dependentes de ONGs melhor aparelhadas do que elas para elaborar projetos e conduzi-los, fazendo com que não lhes sobra autonomia e tempo para enfrentar formas de ocupação da região pelo grande capital, ocupação muito mais poderosa do que ganhos pontuais eventualmente oferecidos pelo PSA. A tecnicidade dos cálculos do carbono e dos valores monetários, a participação do mercado financeiro, o aparato burocrático combinam-se para afastar os centros de decisão real das organizações de base.

Na hora em que, no mundo inteiro, setores da sociedade discutem as necessárias mudanças estruturais que o modelo capitalista de produção e de consumo impõe os poderes econômicos e políticos dominantes, na contramão da história, investem para estender este modelo à Amazônia brasileira. Entende-se que organizações de base, cujos membros estão, de um lado, presos à necessidade de sobrevivência e, do outro, com vontade de continuar com seus modos de vida integrados à natureza e conscientes do seu papel em relação ao clima e à biodiversidade, estejam sensíveis ao apelo por PSA. Sem condenar abruptamente a sua postura, entendemos que deveríamos buscar outros caminhos.

Grupos populacionais nomeados aqui genericamente, sem levar em conta as suas múltiplas formas de existência e de identidade, como comunidades tradicionais, povos indígenas e camponeses/agricultores familiares, historicamente mantiveram uma relação com a natureza de simbiose, de troca, a reprodução dos primeiros dando-se graças à natureza e esta mantendo-se e assegurando a sua capacidade de resiliência [6]graças aos primeiros. Essa relação com a natureza não era unicamente individual, como se fosse a escolha de determinada pessoa e família, mas era vivida por todo o grupo social, como algo de comum entre todos. Essa relação harmoniosa de interdependência em muitos casos foi rompida ou encontra-se em risco de rompimento, ou porque um grupo populacional está sendo submetido a uma forte pressão externa, ou por não conseguir mais se reproduzir senão pela sobre exploração dos recursos naturais do seu território, etc.

Para as populações que vivem ou viveram em simbiose com a natureza, a noção de serviço ambiental não se coloca ou não se colocava, justamente pelo entendimento dessa relação de reciprocidade existindo entre natureza e comunidade, que exclui a unilateralidade. Mas o tempo passou e essa reciprocidade está sendo ameaçada. Setores sempre mais numerosos da humanidade, atentos ao que ensinam cientistas e ambientalistas, tomaram consciência da importância para a humanidade das águas, das florestas, das fontes da alimentação.

Dizem às comunidades tradicionais, aos povos indígenas e aos camponeses/agricultores familiares: as florestas de que vocês cuidam e tiram seu sustento, as águas que deixam brotar e crescer, as sementes que melhoram... são vitais para nós. É para que amanhã o mundo não seja somente de privilegiados que é do nosso interesse que continuem cuidando delas. Vocês vão prestar um serviço incomensurável a nós e aos nossos filhos. É seu direito querer continuar vivendo nos seus territórios, assim como é o direito da humanidade poder se beneficiar dos seus Comuns que são também o nosso Bem Comum.

É uma visão de solidariedade e de responsabilidade para além do nosso lugar e do nosso tempo que introduz então a noção de serviço ambiental. Comuns manejados por uma comunidade como parte dos bens comuns da humanidade. No passado, a responsabilidade do pequeno agricultor, da família indígena, ou do ribeirinho não ultrapassava a família e a sua comunidade. Agora, impõe-se a eles uma responsabilidade muito maior. Deveriam ser remunerados por isso? A conservação e o uso através do tempo das águas, das florestas, dos cerrados, dos manguezais e de outros ecossistemas se deram através das suas estratégias de sobrevivência e de reprodução. Eles querem continuar e consolidar suas economias e suas culturas, sua oikonomia, não se transformar em guardiões de recursos. Mas, de fato, a sua oikonomia está sendo ameaçada.

Desvalorização e/ou diminuição da sua produção e do seu extrativismo; falta de assistência técnica qualificada para recuperar e melhorar as técnicas, a qualidade e a quantidade da produção e do extrativismo; pressão intensa sobre as comunidades para vender ou se adaptar a outros sistemas de produção; apelos do consumo, mas também direito aos serviços do mundo moderno; necessidade de se defender das invasões, da destruição dos seus recursos... fazem com que sempre mais comunidades e famílias não consigam se manter no seu território.

Nesta hora, o reconhecimento que elas cumprem um serviço ambiental vital para o futuro da humanidade deve vir ao seu socorro. Por respeito a seus direitos, à sua dignidade, à sua cidadania e às suas concepções do que seja viver bem, não se trata de subordiná-los a um agente – que chamei nessas páginas de “mercado” - que lhes é totalmente estranho, fazendo deles meros guardiões de territórios mortos. Trata-se de dinamizar, potencializar as suas capacidades de gestão dos seus territórios e de viver do que eles produzem e extraem deles, para que possam ao mesmo tempo e no mesmo movimento, continuar sendo os cuidadores do Bem Comum. E é para isso que deveria ser dada uma remuneração.

O Bem Comum não podendo ser privatizado, somente o poder público pode ser o agente que garanta tanto os direitos dessas populações sobre seus Comuns quanto os direitos da sociedade sobre o Bem Comum. Estimo assim que é nalinha de uma continuidade, aperfeiçoamento e ampliação do Pro-ambiente que podemos encontrar um caminho para o futuro.

Notes

[1Ost, François. La nature hors la loi. L´écologie à l´épreuve du droit. Paris, La Découverte, 1995. P.47

[2Op.cit. P.47

[3Kastler, Guy. L´agriculture industrielle détruit la biodiversité et réchauffe la planète. L´agriculture paysanne renouvelle la biodiversité et refroidit la planète. In : Passerelle dph N°2 Les biens communs, modèle de gestion des ressources naturelles 05/2010 : http://www.coredem.info/rubrique11.html. Ritimo/Coredem. Paris-2010.

[4Aubertin Catherine e Vivien, Franck Dominique. Les enjeux de la biodiversité. Paris, Economica, 1998

[5op.cit. p.49

[6Em ecologia, resiliência é a capacidade de um determinado ecossistema de retomar sua forma original após uma perturbação.