No Limite

A juventude pensa a cidade

, por IBASE , LANES Patrícia, RIBEIRO Marina

O que direito à cidade e justiça ambiental tem a ver com juventude? Qual é ou tem sido o papel da população jovem das grandes cidades no que diz respeito ao meio ambiente? Quais têm sido as reivindicações dessa população?

A juventude pensa a cidade

A juventude pode ser entendida, entre outras coisas, como o momento em que as vivências deixam de estar circunscritas ao mundo familiar e escolar. É entre a adolescência e o início da vida adulta que as pessoas começam a ir além das fronteiras do ambiente familiar e da escola. Essas novas idas e vindas levam jovens a conhecer outros lugares e a viver experiências distintas, marcadas, no entanto, pelas diferenças socioeconômicas, de gênero, de cor/raça, de ser ou não ser deficiente, de orientação sexual e de local de moradia, para ficar em algumas. Esse processo nas cidades tem especificidades. De acordo com o pesquisador Paulo César Carrano, “a cidade é transformada de espaço anônimo a território pelos jovens atores urbanos”.

As grandes cidades guardam inúmeras diversidades e profundas desigualdades. O acesso à cidade e aos direitos não é igual para todas as pessoas. Ainda de acordo com Carrano, “o espaço urbano intensifica os antagonismos de interesses que se constituem por uma participação diferenciada e desigual dos processos de produção e reprodução da vida social”. Para o pesquisador, isso significa que a cidade não é experimentada da mesma maneira. “Esse diferencial de apropriação dos recursos materiais e simbólicos da cidade pode ser apontado como um dos fatores que organizam a produção das identidades sociais.”

Para quem vive no Rio de Janeiro, a diferença entre morar em Ipanema ou no Leblon e morar em qualquer bairro da zona oeste, por exemplo, é evidente. Mesmo dentro dos ditos bairros nobres, na zona sul carioca, há desigualdades. Os habitantes das diversas favelas não vivem em condições semelhantes a dos seus vizinhos e vizinhas de bairro, embora possam ter acesso a equipamentos de lazer, transporte público, serviços menos precários do que os oferecidos nas zonas oeste e norte da cidade (é bom lembrar que, mesmo não havendo proibição concreta, podem haver interdições simbólicas a espaços em áreas nobres, como no caso de pessoas mais pobres que não se sentem à vontade para frequentar determinados centros culturais, ainda que gratuitos).

O conceito de direito à cidade traz essas dimensões. Ele ajuda a pensar as desigualdades e a necessidade de se ampliar a garantia de direitos, não importa qual seja o local de moradia, a classe social, o sexo, a cor ou a idade. De acordo com a Plataforma Nacional pelo Direito à Cidade, é preciso reivindicar “uma cidade que respeite e garanta o direito à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte, à saúde, à educação, à cultura, aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”. Assim, “é necessário que os governos estejam comprometidos com uma política urbana articulada com estratégias de inclusão social e de justiça ambiental, local, regional, estadual e nacionalmente”.

Para Carrano, “os antagonismos presentes no espaço urbano se dão pelas desiguais condições de vida em torno dos espaços de moradia, lazer e trabalho”. Ele diz ser “possível afirmar com [Henri] Lefebvre [“O direito à cidade”, 1969] que o direito (material e simbólico) à cidade não é igual para todos os seus habitantes”. O Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) aponta uma série de pressupostos para a garantia do direito à cidade: a implementação do Estatuto da Cidade, uma gestão democrática e participativa, a adoção do desenvolvimento urbano sustentável, habitação e saneamento ambiental para todos, transporte público como prioridade, segurança pública baseada nos direitos humanos, trabalho e distribuição de renda, apoio à reforma agrária e destinação de recursos para os setores populares.

A realidade da maior parte das grandes cidades brasileiras ainda está bem distante de tais pressupostos. As jovens e os jovens que vivem nessas cidades são afetados pela falta de garantia dos direitos descritos anteriormente e outros, como direito à cultura e à educação pública gratuita e de qualidade. Algumas dessas ideias, no entanto, traduziram-se em lutas, muitas delas encabeçadas por jovens. O transporte coletivo público, por exemplo, central para a garantia do direito à cidade, tornou-se nas últimas décadas crucial para movimentos de juventude, sobretudo os estudantis. A adoção do passe livre foi conquista importante em muitos municípios.

A Revolta do Buzu praticamente parou a cidade de Salvador (BA) em 2003, com mobilizações iniciadas pelos estudantes contra o aumento da tarifa de ônibus. Fora do Brasil, os estudantes paraguaios também realizaram mobilizações pelo passe livre.

Outra preocupação da juventude ligada ao direito à cidade é a segurança pública baseada nos direitos humanos. Jovens – principalmente os homens, negros, moradores de favelas e periferias – são os mais atingidos pela violência urbana, como deixa evidente o Mapa da Violência de 2011. Se, o número de homicídios de jovens brancos caiu 30% no período 2002/2008, o homicídios de jovens negros passaram de 11.308 para 12.749 no mesmo intervalo de tempo, o que representa um crescimento de 13%. Certamente o tema da violência associada à juventude não se resume às grandes cidades, mas é sabido que o debate sobre segurança pública e o genocídio da juventude negra (foco de campanhas de movimentos juvenis e uma das prioridades definidas na 1ª Conferência Nacional de Juventude) têm nos centros urbanos um foco importante.

O racismo também aparece a partir de outras perspectivas no debate do direito à cidade. O chamado “racismo ambiental” é definido pelo GT Combate ao Racismo Ambiental, grupo de trabalho criado em 2005, no âmbito da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, como “injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre grupos étnicos vulnerabilizados e sobre outras comunidades, discriminadas por sua ’raça’, origem ou cor”. É nas periferias urbanas e favelas, locais onde a maior parte da população é negra, que se concentram as violações de vários direitos. Justiça ambiental é o direito ao acesso justo e equitativo aos recursos naturais, às informações e às decisões sobre o uso de tais recursos, assim como a garantia de que nenhum grupo social suporte uma parcela desproporcional dos efeitos da degradação ambiental. Logo, é possível questionar porque algumas pessoas vivem em áreas onde é mais provável ocorrer algum desastre natural, enquanto outras vivem em locais mais protegidos. A forma de ocupação do espaço e as condições dessas ocupações revelam condições desiguais de vida e profundas violações de direitos.

Mais recentemente, outra face da injustiça ambiental entrou em cena. As mudanças climáticas ganharam a grande mídia e o debate público. Juliana Malerba e Isabel Pereira afirmam que “as desigualdades ambientais, no que diz respeito às mudanças climáticas, são produzidas socialmente pelo modelo atual de desenvolvimento industrial que promove um modo de produção e de consumo insustentáveis, do qual são responsáveis em particular os países industrializados, suas empresas e seus governos, as agências multilaterais, mas, também, governos e empresas de países do Sul, que perseguem o mesmo tipo de desenvolvimento”. Elas continuam: “no momento de uma catástrofe natural essas populações sofrem de maneira desproporcional suas consequências”

Em 2005, a população negra e mais pobre dos Estados Unidos sofreu com o Furacão Katrina. No Brasil, as chuvas que devastaram a região serrana do Rio de Janeiro em 2011 atingiram de forma mais acentuada áreas pobres e vulneráveis.

Regina Novaes e Christina Vital notam que, nas últimas décadas, temas ambientais tornaram-se vetor de aglutinação de jovens no campo e na cidade e abriram novas possibilidades de participação. De acordo com elas, “jovens moradores das cidades têm experimentado a possibilidade de transformar velhas precariedades da infraestrutura urbana em demandas ‘ambientais’ e em ações concretas”.

As discussões brevemente expostas acima são algumas das que vêm sendo tratadas pelo projeto Cidade, mudanças climáticas e ação jovem, iniciativa do Ibase em parceria com o Grupo Eco (de Santa Marta, favela da zona sul do Rio de Janeiro) e com o Instituto de Formação Humana e Educação Popular (IFHEP) (de Campo Grande, bairro da zona oeste da cidade). Ambos os grupos têm uma história de trabalho sobre lazer, tempo livre e educação com as juventudes locais.

Os problemas e direitos ambientais foram um convite para que esses coletivos pensassem suas práticas e agregassem às atividades que já realizam outras possibilidades de crítica à realidade de seus territórios. A experiência, com pouco mais de um ano, tem se mostrado uma oportunidade ímpar para trazer à tona as questões sociais e ambientais a partir da perspectiva dos jovens moradores e moradoras.

Em Santa Marta, o lixo, a utilização (e privatização) dos espaços públicos e a implantação de tarifas públicas sem serviços condizentes foram priorizados. Em Campo Grande, saúde, cultura e meio ambiente surgiram com maior relevância, mas sem deixar de lado a especulação imobiliária e o transporte. Nesse sentido, as ideias de direito à cidade, justiça, racismo ambiental e mudanças climáticas podem ser formas de repensar desafios cotidianos e a restrição no acesso a direitos e a oportunidades historicamente negadas a moradores e moradoras de áreas das cidades. A participação da juventude nessa reflexão deve ser valorizada. Na relação com adultos, organizações, movimentos sociais, governos e outros atores, de dentro e de fora dos territórios de moradia, a população jovem dever participar da proposição de alternativas para enfrentar desigualdades, superar injustiças e conquistar direitos.

Sobre o projeto
O projeto Cidade, mudanças climáticas e ação jovem teve início em 2011 e é coordenado e desenvolvido pelo Ibase, pelo Instituto de Formação Humana e Educação Popular (IFHEP) e pelo Grupo Eco. O projeto tem o apoio da Ajuda da Igreja Norueguesa (AIN) e da OD, uma ação de estudantes da Noruega em solidariedade a jovens de outras partes do mundo.

O projeto terá a duração de cinco anos e é desenvolvido em dois territórios da cidade do Rio de Janeiro: a favela de Santa Marta, em Botafogo (zona sul) e o bairro Campo Grande (zona oeste). A inciativa visa incentivar e fortalecer a mobilização juvenil nesses locais, com atividades e debates relacionados a desenvolvimento, mudanças climáticas e direito à cidade.

No primeiro ano do projeto, os dois territórios realizaram uma série de atividades para construir um diagnóstico socioambiental. Foram feitas oficinas, grupos de discussão, produziu-se de forma colaborativa dois vídeos e duas publicações, a “Tá no mapa – Campo Grande” e a “Tá no mapa – Santa Marta”. As publicações trazem falas dos jovens sobre a sua realidade e um mapa participativo das regiões, sinalizados a partir das experiências dos jovens e das jovens da iniciativa.
Para assistir aos vídeos, acessar as publicações e saber mais sobre o projeto, entre no site www.ibase.br

Sobre o mapa participativo
O uso da cartografia social e a elaboração do mapa participativo permitem o trabalho com uma linguagem, ao mesmo tempo, supervalorizada e largamente ignorada. É importante frisar o caráter não neutro dos mapas. Eles são documentos de uma interpretação da realidade e das relações de poder existentes. Os mapas oficiais, produtos do olhar técnico dos “especialistas”, raramente retratam os pontos de vista dos moradores e moradoras de uma região, menos ainda da juventude.

Os mapas participativos têm ajudado grupos sociais no acúmulo de conhecimento e na busca por mudanças. O mapa, nesse caso, é uma interpretação da realidade, na qual se reconhece iniciativas existentes, ausências, potencialidades e se fortalece intervenções sociais.

Os mapas participativos fazem parte das publicações “Tá no mapa – Campo Grande” e “Tá no mapa – Santa Marta”, disponíveis de forma gratuita em www.ibase.br

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Referências
 Malerba, Juliana e Pereira, Isabel. “Aquecimento global e justiça ambiental”, no site da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, http://www.justicaambiental.org.br/_justicaambiental/
 Carrano, Paulo. “Jovens pobres: modos de vida, percursos urbanos e transições para a vida adulta”, em Ciências Humanas e Sociais em Revista. Seropédica, RJ, Edur, vol. 30, número 2, jul.-dez., 2008.
 Novaes, Regina e Vital, Christina. “A juventude de hoje: (re)invenções da participação social”, em Thompson, Andrés A. Associando-se à juventude para construir o futuro. São Paulo, Peirópolis, 2005.