Caminhos e perspectivas da integração latino-americana

Mecanismos regionais de segurança

Walter Antonio Desiderá Neto
Marcelo Passini Mariano
Raphael Padula
Michelle Carvalho Metanias Hallack
Pedro Silva Barros

Este artigo dos pesquisadores do IPEA, parte do livro O Brasil e novas dimensões da integração regional, publicado pelo mesmo orgão de pesquisa brasileiro, apresenta as mudanças no marco regional de segurança construídos no continente após o fim da guerra fria e no bojo dos novos processos de integração. São analisadas as funções e iniciativas do Conselho de Defesa Sul-americano (CDS), da UNASUR. O texto foi publicado em originalmente em 2014.

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra Fria, a preocupação com a segurança na América do Sul conta com um instrumento coletivo hemisférico para sua promoção, criado a partir da iniciativa dos Estados Unidos: o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar) ou Pacto do Rio, de 1947. Sob a lógica do conflito bipolar, o tratado objetivava garantir a proteção dos países latino-americanos [1] contra agressões externas.

Dessa maneira, o acordo conformava um sistema de segurança coletiva – um ataque contra qualquer membro seria considerado um ataque contra todos (Artigo 3o) – e inseria formalmente a América Latina no bloco ocidental capitalista. Contudo, sua efetividade limitada foi revelada quando o instrumento foi invocado pela Argentina na ocasião da Guerra das Malvinas em 1982 e não obteve resposta, demonstrando que apenas funcionaria no caso de a agressão externa partir de um país do bloco antagônico. Vale lembrar, ainda, que Chile e Estados Unidos apoiaram o Reino Unido no conflito, ilustrando a ineficácia do instrumento.

O final da Guerra Fria, com o desmantelamento da URSS em 1991, não veio acompanhado da denúncia automática do tratado por parte de nenhum de seus contratantes. [2] Dessa forma, apesar do anacronismo e da ineficácia aparentes, o Tiar permaneceu em vigência sem sofrer qualquer alteração para que se adequasse à nova realidade política internacional e à transformação do caráter das ameaças presentes no hemisfério. Somente em 2003, com a realização da Conferência Especial sobre Segurança, o debate em torno das novas ameaças, com destaque para o terrorismo, viria a ser feito no âmbito da OEA, tendo como resultado a Declaração sobre Segurança nas Américas, sem grandes consequências no sentido de provocar modificações na arquitetura institucional da organização. De todo modo, o Tiar permanece como o único sistema de segurança e defesa coletiva regional propriamente dito do qual participam os países sul-americanos (menos Guiana e Suriname).

Não obstante, com o avanço da democratização e dos processos de integração regional na América do Sul, desde o final dos anos 1990 tem se assistido ao aparecimento de declarações e mecanismos que buscam garantir a paz entre os países da região e promover a confiança mútua e a solução pacífica das controvérsias. Entre eles, destacam-se [3] a Declaração Política do Mercosul, Bolívia e Chile sobre a Zona de Paz, assinada em 1998, e a Carta Andina para a Paz e a Segurança, firmada em 2002. No contexto do continente sul-americano como um todo, na Segunda Cúpula Sul-Americana, em 2002, emitiu-se a Declaração da Zona de Paz Sul-Americana.

Além desses documentos, tomando a manutenção da ordem democrática como uma questão de segurança, no sentido apregoado pela paz kantiana, [4]. as iniciativas de integração regional também passaram a contar com as chamadas “cláusulas democráticas”, consubstanciadas no Protocolo de Ushuaia, de 1998, no Mercosul, e no Protocolo Adicional ao Acordo de Cartagena, de 2000, na CAN. Estes protocolos preveem diferentes tipos de sanções aos países participantes dos blocos nos quais ocorram tais rupturas, tendo como limite a suspensão da sua participação dentro do exercício de integração. Na OEA, assinou-se a Carta Democrática Interamericana em 2001. Em âmbito sul-americano, o tema da manutenção da ordem democrática apareceu desde a primeira cúpula, em 2000, no Comunicado de Brasília. De todo modo, ele viria a ser devidamente institucionalizado na Unasul somente após a tentativa de golpe contra Rafael Correa no Equador em 2010, com a assinatura do Protocolo Adicional ao Tratado Constitutivo da Unasul sobre Compromisso com a Democracia.

Após esses desenvolvimentos, o processo de construção de confiança entre os países sul-americanos atingiu seu auge com a criação do Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS), no final de 2008, no âmbito da Unasul. Apesar de ser fruto de negociações iniciadas em 2006, a proposta formal surgiu por parte do Brasil, no contexto da crise entre Colômbia, Equador e Venezuela. Em função disso, os objetivos da nova instituição tiveram como foco central o fomento da confiança para a garantia do estabelecimento de uma zona de paz na América do Sul, a fim de possibilitar a estabilidade democrática e o desenvolvimento na região. Além desses, acabaram se tornando também objetivos gerais a construção de uma identidade sul-americana em matéria de defesa e a formação de consensos para a cooperação militar. Portanto, ao contrário do que o presidente venezuelano, Hugo Chávez, expressou esperar de uma organização desse tipo nos anos que precederam sua criação, o CDS acabou não incorporando funções de um sistema de segurança coletiva ou de uma aliança militar.

Para Medeiros Filho (2010, p. 6-9), além das questões da zona de paz e da formação de uma identidade sul-americana em defesa, outras duas demandas justificariam a criação do conselho: o combate ao crime organizado e a cooperação na produção e comercialização de produtos da indústria bélica. Sobre a primeira demanda, o tema do tráfico de drogas e das guerrilhas acabou sendo tratado separadamente com a criação do Conselho de Luta contra o Narcotráfico, em 2009. Seu estatuto foi formulado em 2010 e o conselho passou a se chamar Conselho sobre o Problema Mundial das Drogas (CSPMD). Seu objetivo central é se estabelecer como uma instância de consulta, cooperação e coordenação para o enfrentamento desse problema. Seu grande diferencial está na abordagem holística da questão, incluindo tanto a oferta como a demanda das drogas em suas preocupações e considerando a resolução do problema uma responsabilidade comum e compartilhada. Além disso, no que concerne à redução da oferta, preocupa-se especialmente com o desenvolvimento alternativo a ser planejado para as áreas de cultivo e produção da droga. O Plano de Ação do CSPMD, aprovado em 2010, tem cinco linhas de ação: redução da demanda; desenvolvimento alternativo, integral e sustentável, incluindo o preventivo; redução da oferta; medidas de controle; e lavagem de dinheiro.

A respeito da outra demanda apontada pelo autor, cumpre assinalar que ela se faz presente nos objetivos específicos do estatuto do CDS. Além de tudo, na primeira reunião ordinária do conselho em 2009, [5] decidiu-se sobre a elaboração de um diagnóstico da indústria de defesa no continente, necessário para a promoção da complementaridade produtiva, da pesquisa e da transferência tecnológica. Mas este não foi o único tema abordado: na mesma reunião, acordou-se pela criação do Centro Sul-Americano de Estudos Estratégicos em Defesa (CSEED-CDS), cujo estatuto foi aprovado na segunda reunião ordinária do CDS em Guayaquil, no ano seguinte. Nesta ocasião, o principal resultado foi a aprovação de um conjunto de procedimentos para a aplicação das Medidas de Fomento da Confiança e da Segurança (MFCS). Elas envolvem intercâmbio de informações e transparência (contando com o desenvolvimento de uma metodologia única para a medição dos gastos de defesa) e medidas de notificação mútua sobre atividades militares intra e extrarregionais, buscando evitar a repetição de episódios como aquele que causou mal-estar entre Colômbia e Equador. Por fim, a novidade trazida pela terceira reunião ordinária, realizada em Lima em 2011, encontra-se na decisão de incluir no plano de ação para 2012 a proteção da biodiversidade e dos recursos naturais estratégicos como uma das áreas prioritárias.

Esses processos podem ser traduzidos como uma clara iniciativa sul-americana no sentido de contar com mecanismos próprios voltados para a governança regional da segurança, sem a interferência da superpotência hemisférica. Nesse âmbito, é emblemática a abordagem holística tomada pelo CSPMD, por exemplo, em clara discordância com os métodos repressivos patrocinados pelos Estados Unidos no Plano Colômbia. De toda forma, esse movimento indica apenas uma emancipação da região no tratamento desses temas, mas não aponta no que tange à confrontação com os americanos.

Notes

[1Dos países independentes à época, na América Central e na América do Sul, não assinaram o Tiar em 1947: Equador (1949) e Nicarágua (1948). Cuba, Haiti e República Dominicana foram os únicos países caribenhos a assinar o tratado. Após a revolução em 1959, os cubanos foram expulsos da Organização dos Estados Americanos (OEA) e dos mecanismos do Tiar.

[2Apenas o México denunciou o tratado em 2002, quando ele foi invocado pelos Estados Unidos para obter apoio dos demais contratantes no contexto da Guerra contra o Terror.

[3Anteriormente, o Brasil e a Argentina, em conjunto com os países da costa oeste africana, promoveram a Resolução no 41/11 na Assembleia-Geral da ONU, em 1986, a qual define a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul. Deve-se lembrar ainda que antes, em 1985, a aproximação entre os dois países, que culminaria na formação do Mercosul, iniciou-se com a assinatura de um entendimento de confiança mútua no campo da segurança, assegurando os propósitos de uso pacífico da tecnologia nuclear por ambas as partes.

[4Para uma discussão filosófica do significado da paz kantiana, ver Fukuyama (1992, p. 281)

[5Vale ressaltar que nesse ano havia uma desconfiança da região com os acordos firmados entre Colômbia e Estados Unidos nos quais se permitia o uso de bases militares colombianas pelos americanos. Bogotá não enviou representante para esta primeira reunião do CDS e os demais países sul-americanos aprovaram uma resolução com o objetivo de comprometer seus membros a não permitirem a presença militar de potências externas em território sul-americano. Na prática, a resolução prevê que os países-membros se comprometem a garantir que pessoal militar ou civil, armas e equipamentos de acordos militares extrarregionais não serão usados para violar a soberania, a segurança, a estabilidade e a integridade territorial sul-americana – o que significa que os países que decidirem por acordos militares com governos que não integram a Unasul terão de garantir que não haverá violação da soberania de países vizinhos. Ainda, os governos que decidirem por acordos e exercícios militares com países da região e de fora da região deverão informar antecipadamente aos países limítrofes e à Unasul, seguindo princípios de transparência e mecanismos de confiança mútua. Vale lembrar que, embora criticado pelos vizinhos, o governo colombiano afirmou que o objetivo das bases era conter o tráfico de drogas e de armas, além da eventual ação de grupos ilegais e, por meio de um comunicado à Unasul, informou aceitar os termos da resolução e assegurar o cumprimento das garantias formais pedidas pelo grupo. De qualquer forma, em 2010, a Corte Constitucional Colombiana julgou inexistentes aqueles acordos que permitiam a utilização pelos americanos das bases militares colombianas, fato que ajudou a melhorar a imagem do país, já sob o comando do presidente Juan Manuel Santos, perante os vizinhos, em especial a Venezuela.