Formation des instituteurs pour une autre éducation infantile

Manifestações populares brasileiras e educação infantil: um bom encontro

, por GRABOIS André, SIQUEIRA Igor, TIRIBA Léa

Somos entusiastas da educação pelo exemplo, não no sentido da imposição de um padrão a ser reproduzido, mas, aludindo à frase de Gandhi, pela encarnação prática da mudança que queremos ver no mundo. Um professor ou uma professora, seja da educação básica ou de qualquer outra esfera, só pode compartilhar e facilitar vivências que tenha minimamente experimentado e introjetado previamente, como um pesquisador de si mesmo, testemunhando os seus próprios processos de expansão ou constrangimento da vitalidade e da potência de agir, ao fazer contato com determinado repertório de práticas.

Compreendendo o campo da Formação Continuada de Professores como um foco estratégico para inovações curriculares, temos como objetivo principal valorizar as manifestações culturais brasileiras como lugares de fruição. Queremos inseri-las nas práticas cotidianas escolares como elementos qualificadores da existência, na medida em que favoresçam a liberdade de movimentos, a criatividade, a alegria, a vontade de viver. 

Dialogamos, a partir de Espinosa, com o conceito de conatus e sua expansão, nomeada de bom encontro pelo filósofo holandês, que localiza correspondência com o conceito de vontade de potência, em Nietzsche. Segundo André Martins (2000), conatus, para Espinosa, é o “movimento espontâneo intrínseco a todo indivíduo, sua potência, [...] uma pulsão originária de vida e de expansão, que leva todo indivíduo a buscar expandir sua potência de agir” e “que em Nietzsche será nomeado Vontade de Potência” (p. 185); e bons encontros são os que nos acontecem quando nosso conatus se expande, a partir de uma experiência que nos afeta:

Assim, em meio às afecções, o homem poderá conhecer a si próprio nas relações, isto é, poderá conhecer seus afetos, voltando a seu favor o acaso, os encontros, inevitáveis, de modo a que esta relação momentânea aumente sua potência de agir e de pensar, afetando-o de alegria. [...] ao conhecer nossos afetos, favorecemos os bons encontros (MARTINS, 2000, p. 185, 187).

Dialogamos também com a Escola Angel Vianna, celeiro da Dança Contemporânea carioca e da Conscientização do Movimento e dos Jogos Corporais. Do trabalho de Angel Vianna, valorizamos a importância que ela dá à percepção do peso do corpo para uma experiência de consciência e integração através do movimento. A partir do despertar das sensações dos apoios do corpo, do volume que este ocupa no espaço e de sua relação com a gravidade para a construção da verticalidade, pode-se experimentar um gesto dançado liberador de tensões profundas, um gesto que promove harmonia para quem o faz, e que se permite expressar no espaço e em relação: expressão e relação essas que constituem essencialmente o convite que as manifestações populares brasileiras fazem o tempo inteiro, em sua atitude brincante e lúdica, cheia de ginga.

O foco prático de onde brotam nossas reflexões são as oficinas de danças populares brasileiras, que tem o objetivo de mobilizar professoras/es, coordenadoras/es, diretoras/es de creches e pré-escolas e equipes de educação infantil das redes públi-cas do Estado do Rio de Janeiro para um olhar critico e para a transformação de sua própria realidade. Nesta perspectiva, vimos apostando em metodologias de formação que convidam os professores a vivenciar o que os discursos teóricos do campo da educação infantil, assim como os documentos nacionais que orientam as práticas pedagógicas apontam como fundamentais para as crianças: brincadeiras, música, dança, teatro, artes visuais, literatura, movimentação ampla em espaços abertos, convívio e desfrute da natureza.

Foi justamente neste caminho que chegamos às oficinas de música e dança, incomodados/as com os formatos tradicionais que trabalham as manifestações, as expressões rítmicas e musicais das tradições culturais brasileiras através do simples discurso teórico.

Coerentemente com os conceitos de que as crianças internalizam a cultura do universo social onde vivem e convivem (Vigotski, 1989); sabedores de que escola só será, para as crianças, espaço de exercício da arte, da dança, da música se o for para as profissionais da educação, decidimos oferecer aos professores um espaço em que eles próprios vivenciassem, experimentassem aquilo que desejávamos que pudessem propiciar às crianças: a interação com “diversificadas manifestações de música, artes plásticas e gráficas, cinema, fotografia, dança, teatro, poesia e literatura” (DCNEI, Artº9, IX); o conhecimento das manifestações e tradições culturais brasileiras” (idem, XI)

Em um contexto racionalista em que a escola não tem pelo corpo o mesmo apreço que tem pela mente e o resultado é um processo educacional “do pescoço para cima” (TIRIBA, 2001, p.27), as oficinas têm o sentido de abrir, no cotidiano da escola, espaços objetivos e subjetivos para o corpo e seus movimentos; têm a intenção de recuperar a liberdade de movimentos, a expressão dançante e alegre que, geralmente, se perdeu no dia a dia nervoso de uma sociedade organizada em torno da produção e do consumo e em seu respectivo modelo de funcionamento escolar.

As oficinas: bons encontros

A seleção das manifestações populares propostas ao longo dos encontros partiu de um gosto comum da equipe: Samba, Jongo, Coco e Maracatu. O primeiro encontro foi ao som de um samba-enredo do compositor mineiro João Bosco, “Mestre-sala dos mares”. A importância do gênero apresentado no primeiro encontro desencadeou as outras manifestações. Para ilustrar o segundo encontro, foi apresentado um trecho do programa “Danças brasileiras”, com o brincante e pesquisador popular Antônio Nóbrega, em visita ao grupo Jongo da Serrinha, situado no Morro da Serrinha, em Madureira, zona norte do Rio de Janeiro. Nossa intenção ao apresentar estas manifestações era buscar uma aproximação com o desconhecido, visto que a cultura popular está entremeada por vários movimentos que se entrecruzam.

O Coco pernambucano, em suas mais diversas vertentes, foi apresentado também em vídeo. A informação de que os brincantes do coco utilizam os nomes “samba” e “pagode” para denominar as músicas e as festas, foi um fator que aproximou ainda mais os conhecimentos do universo das participantes das oficinas.

O quarto gênero abordado foi o Maracatu, também de Pernambuco. A pesquisa do material audiovisual, a contextualização dos gêneros, o desdobramento das atividades em rodas de danças e, ao final a conversa, os questionamentos foram etapas da proposta que mobilizaram e ativaram a curiosidade, evidenciando possibilidades – no cotidiano da escola – de resgate cultural, de movimentação do corpo como agente brincante e construtor de conhecimento, tanto individual quanto coletivo.

Ao longo do processo, como respostas das crianças às suas propostas, as professoras postaram comentários e imagens na rede social facebook: passistas mirins entusiasmados, contagiados, alegres pela possibilidade de livre expressão, expansão humana.

A cada oficina, deixávamos o espaço da sala liberado, obviamente, pois não se pode fazer uma aula de dança entre carteiras. Foi sempre muito interessante constatar a mudança rápida que acontecia com o mergulho na dança: logo nossos corpos e o ambiente estavam mais quentes, com aquela temperatura e aquele suor que significam também alegria de viver, calor humano, celebração de estar vivo, de ser brasileiro. Através do resgate da roda, do olho no olho, do pé no chão e de um convite para uma abordagem lúdica e leve do corpo, podemos dizer que testemunhamos, a cada sábado (dia de realização do curso), um aumento da vitalidade ao nosso redor nas presenças das pessoas na sala de aula (estudantes e equipe do curso).

Arriscar-se na escuta e na abertura para a relação com o outro são qualidades necessárias para uma boa vida, em todas as suas esferas. O processo de soltura e liberação de tensões musculares e julgamentos pessoais e sociais ao longo de uma aula de dança é uma experiência inestimável que merece ser vivida com frequência, diríamos até diariamente, nos ambientes escolares, inclusive no universitário! Como fez bem aprender pela via do corpo, do estímulo ao movimento de um corpo que percebe seus próprios peso e volume no espaço, dos processos não tão corticais do cérebro, de aspectos mais subjetivos e estéticos (da estesia, da via sensorial), e ainda conectar tudo isso com as matrizes culturais brasileiras, com um trabalho de resgate e resistência, de contato com a diversidade cultural abundante de nossas terras!

A cultura popular agrega todos os conteúdos possíveis, na prática, no ofício: dança, canto, convivência, respeito, artes plásticas, costura, ecologia profunda, espiritualidade, consciência histórica, conhecimento geográfico e das culturas locais, história das religiões, entre muitos outros temas. São um prato cheio para a abordagem interdisciplinar e carregam consigo a semente da potência geradora de vida, posto que mobilizam nossas células no chacoalhar do corpo, das pregas vocais, que carregam consigo imagens e conteúdos simbólicos profundos. Se “quem canta seus males espanta”, e todo mundo sabe disso, com esta experiência, mais uma vez comprovamos que o mesmo vale para a dança, para o jogo, para o movimento, para tudo o que podemos fazer juntos no sentido de aguçar a presença e celebrar a própria potência.

Muitas reflexões interessantes surgiram nas conversas de partilha e avaliação pós-oficina. Na roda de conversa aberta na oficina samba, surgiram comentários sobre a indústria carnavalesca, as comparações entre as formas de brincar de antigamente e de hoje e as referências aos prazeres perdidos. Na oficina de Jongo, uma das orientadoras do curso, ao falar da diferença que experimentaríamos, no sentido de expansão e aumento da vitalidade, sugeriu que fizermos a mesma oficina ao ar livre, pés descalços sobre a terra, à sombra de uma grande árvore: mais próximos, portanto, das condições espaciais (diríamos até naturais, ecológicas) em que acontece uma roda de Jongo originalmente.

Uma das questões que levantava mais resistências aos participantes, em geral, era o cunho religioso das manifestações culturais. Trazendo o Maracatu, a religiosidade ficou ainda mais em evidência não só sobre a influência que esta tem na nossa cultura, mas também na resistência à participação nas atividades das oficinas. Aprendemos muito com esta conversa, que engendrou uma poderosa indagação, de resposta nada simples, relacionada à abordagem ou menção do aspecto cultural religioso e até telúrico (referente ao contato com a terra e seus símbolos) que muitas dessas manifestações trazem consigo na origem. Esta discussão jogou luz sobre o tema da intolerância religiosa: em todas as oficinas, uma pequena parcela da turma não se interessava em participar. Não ficava totalmente claro o motivo, mas algumas sugeriam que era mesmo por causa de um tabu relacionado à diversidade religiosa. Todas as alunas que se negaram a dançar eram evangélicas ou católicas. Não houve nenhum tipo de agressividade ou comportamento explícito de preconceito, mas mais uma apatia, uma indiferença corporal diante de uma manifestação vibrante, que convidava ao movimento.

Ficamos na torcida de que, mesmo para as estudantes que escolheram não dançar, a experiência se tenha convertido em bom encontro, em expansão de conatus, na forma que for possível. Acreditamos na transparência e na criação de um ambiente amoroso para a expressão de depoimentos pessoais como passos fundamentais para uma cultura de paz.

Concluímos, a partir da convivência em sala de aula e dos depoimentos em que as educadoras que fizeram as oficinas expressam suas reflexões, que as danças têm o quase unânime efeito de expandir o conatus, ou seja, geram um aumento da vitalidade, da potência de agir do ser, plasmando-se na consciência muscular e afetiva enquanto um bom encontro, uma afirmação da vida através de uma experiência de prazer e alegria. Estas qualidades contribuem para a verificação do potencial transformador da dança enquanto prática possível e recomendada para a rotina e o ambiente escolares de formação de nossas crianças. Sigamos dançando e abrindo nossos corações!
Palavras-chave: MANIFESTAÇÕES POPULARES BRASILEIRAS; OFICINAS DE DANÇA; EDUCAÇÃO INFANTIL; CORPO; MOVIMENTO; METODOLOGIAS; ESTÉTICA.

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Referências :

  • BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil. Resolução CNE/SEB 5/2009, Diário Oficial da União.
  • MARTINS, André. Nietzsche, Espinosa, o Acaso e os Afetos: Encontros entre o trágico e o conhecimento intuitivo. O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, n. 14, p. 183-198, ago/2000.
  • TIRIBA, Léa. “O corpo silenciado”. In A pele é a raiz cobrindo o corpo inteiro – As linguagens do corpo. Boletim Programa Salto para o Futuro, Serie Linguagem e sentidos, TV Escola, agosto de 2001, p.15-21, mimeo.
  • VYGOTSKY, L.S. A Formação Social da Mente. RJ, Martins Fontes, 1989.

Contexto de Produção: Texto produzido como registro da disciplina ministrada no Curso de Especialização em Educação Infantil da UNIRIO.

Produtor contato: cei.unirio@gmail.com