Saara Ocidental, ano 40 : História, estratégias e desafios para o futuro

Ensinando dignidade a partir do exílio

Os acampamentos e a dependência de ajuda internacional

, por CALLE Eneko

Janeiro de 2016

Desde que, em 1976, a Frente Polisário [1] (FP) proclamou no exílio a República Árabe Saaraui Democrática (RASD), todos os dias, dezenas de milhares de saarauis que vivem nos acampamentos situados em território argelino enfrentam a mesma rotina que lhes concedeu seu forçado destino: uma longa espera no mais inóspito dos desertos que já dura mais de 40 anos e que se converteu em uma contínua resistência pela sobrevivência pessoal e coletiva, assim como existencial e política.

No verão, é comum que crianças saarauis sejam acolhidas por famílias espanholas para escapar por algumas semanas do calor insuportável do deserto. Crédito : Laura Daudén. Tindouf, Argélia, 2009.

Amanhece em Tindouf, as mulheres acordam seu filhos e filhas e lhes preparam o café da manhã a partir da escassa ajuda que recebem dos organismos humanitários e da solidariedade internacional. Em uma sociedade tradicionalmente patriarcal e na qual a grande maioria dos homens continua no front dos Territórios Liberados [2] pela Polisário esperando a retomada da luta armada, as mulheres continuam sendo as responsáveis dos cuidados; foram elas também as que, nos anos de resistência armada contra o Marrocos e a Mauritânia [3] , construíram as bases das atuais instituições da RASD. E graças a esse papel estratégico e relevante das mulheres no conjunto do processo de libertação saaraui, milhares de crianças saem de suas jaimas todas as manhã a caminho de uma das mais de 30 Madrassas [4] que existem nos acampamentos. A educação, obrigatória e pública, foi uma das principais apostas da FP – um direito consagrado em sua Constituição como resposta à herança recebida do colonialismo espanhol que deixou 90% da população saaraui analfabeta.

Não tiveram a mesma sorte as gerações que nasceram no Saara Ocidental depois da invasão militar e ocupação do território pelo Marrocos. Ali também amanhece, mas a rotina é bem diferente: consiste em conseguir terminar o dia com vida, sem ser preso, torturado ou desaparecido pelo simples fato de ser saaraui em sua própria terra, já que os direitos civis e políticos são sistematicamente violentados pelo regime marroquino. Nesse sentido, o informe bianual produzido pelo Centro Robert F. Kennedy sobre violações de direitos humanos no Saara Ocidental entre janeiro e junho de 2015 constata que as autoridades marroquinas seguem cometendo graves violações de direitos humanos contra a população saaraui e regista mais de 70 casos como mortes na prisão e restrições à liberdade de reunião, expressão e movimento.

No que se refere à situação da educação nos Territórios Ocupados, é “desastrosa”. Assim a definiu a Ministra de Educação e Ensino da RASD, Mariam Salek Ahmada, em declarações à agência Sahara Press Service em agosto de 2015. Nesse sentido, afirmou que “o ocupante marroquino impõe todo tipo de práticas restritivas e intimidadoras aos estudantes saarauis, como assediar as escolas com forças de segurança que, por vezes, inclusive aparecem com seus veículos militares”. Todo isso diante do olhar atento dos cascos azuis, a Minurso [5] , que estranhamente é a única missão das Nações Unidas no planeta que não tem sob sua competência a observância do respeito aos direitos humanos.

De volta aos acampamentos de Tindouf, Rabuni se converteu na capital administrativa do Estado saaraui no exílio. Ali estão a presidência, os ministérios e o parlamento saaraui, além das sedes principais das organizações da sociedade civil saaraui. A RASD é o resultado de uma arquitetura institucional conformada em situações muito complexas e que, com uma economia baseada majoritariamente na sobrevivência e na provisoriedade do exílio, sempre dependeu dos recursos procedentes do exterior, via ajuda humanitária, e da solidariedade interna (hospitalidade) que tanto caracteriza a população saaraui.

Além de gerar o maior bem-estar possível para sua população através de políticas públicas, a RASD propôs a liberação do povo saaraui a traves de uma via dupla, a diplomática e a militar – essa última, em segundo plano desde a assinatura do Acordo de Paz com o Marrocos em 1991. Até o momento, mais de 80 países reconheceram a RASD (a maioria são da América Latina e da África [6]) e abriram delegações e embaixadas na maioria dos países. Além disso, a RASD é membro fundador da União Africana (extinta OUA).

No campo educativo, a cooperação com outros países também foi fundamental para a formação das novas gerações, sempre com o olhar colocado em um eventual retorno ao Saara livre. A falta de recursos econômicos que mencionamos anteriormente não permitiu desenvolver estruturas sólidas nos acampamentos para além da educação primária, de modo que as crianças saarauis, quando cumprem 12 anos e terminam seus estudos nas Madrasas, têm que sair ao estrangeiro para continuar com os estudos secundários e universitários. Alguns não vão muito longe e ficam na própria Argélia; outros viajam mais de sete mil quilômetros até chegarem a Cuba.

A educação é umas das bases mais importantes da Frente Polisário na construção de seu ideal nacional. Programas de intercâmbio com países solidários permitem que as crianças saarauis tenham acesso à formação secundária e superior. Crédito : Laura Daudén. Tindouf, Argélia, 2009.

Precisamente, Cuba foi desde as origens da RASD uma aliada fundamental da Frente Polisário. São filhos e filhas da revolução cubana e seus êxitos, como no campo educativo, como seus princípios fundacionais da solidariedade internacionalista. No dia 20 de janeiro de 1980, Cuba reconheceu oficialmente a RASD e, assim como fez com outros países do Sul Global, ofereceu muitas e generosas bolsas de estudo para estudantes saarauis. Os primeiros checaram em 1977. Em uma entrevista realizada em Havana ao assessor da embaixada saaraui em Cuba, Abdelmayid Ahmed [7]., afirmou que em Cuba foram formados mais de quatro mil estudantes saarauis em diferentes áreas. Cuba foi a escola de novos talentos que em um futuro – esperamos que próximo – levantarão as paredes do Saara livre. Hoje, essas pessoas jovens que estudaram em Cuba são médicos, enfermeiras, professoras, engenheiras, advogados... e são, sobretudo, cubarauis.

Segundo Liman Boisha, jornalista e escritor saaraui, ser cubaraui é uma sorte e um mérito. Sorte pela oportunidade de estudar em um país como Cuba; mérito por resistir tantos anos sem ver a suas famílias. Isso porque os cubarauis não regressavam aos acampamentos até finalizarem seus estudos, desenvolvendo fortes sinais de identidade e constituindo um própria comunidade na sociedade saaraui contemporânea. Falam uma linguagem própria, não necessariamente a língua castelhana, e como fruto da assimilação cultural cubana, surge entre eles uma espontânea cumplicidade onde se encontrem.

Uma vez regressados aos acampamentos e com uma população majoritariamente jovem que não reconhece nem nasceu em seu país, todos esses sonhos e mentalidade mais abertas se veem truncados. Um desafio verdadeiramente complicado para um conflito que parece estancado nas areias movediças do deserto. Acontece que os ex-estudantes saarauis em Cuba sofrem um choque cultural e identitario na viagem de ida e de volta. Ainda que a sociedade saaraui seja mais tolerante e liberal que outras sociedades predominantemente muçulmanas, não deixa de ser uma sociedade de origens patriarcais, nómade e de práticas culturais muito arraigadas, como o controle familiar. Em um primeiro momento, os e as cubarauis foram estigmatizados por comportamentos que questionavam certas crenças e costumes de seu povo originário, mas com o tempo, se converteram na comunidade mais respeitada dos acampamentos, pois são os médicos que curam, os professores que ensinam, etc.

No entanto, com uma população jovem cada vez mais formada e com pouco futuro profissional nos acampamentos, se faz cada vez mais urgente a necessidade de desbloquear o impasse do conflito, pois cada vez são mais as pessoas graduadas que decidem migrar em busca de um sustento para suas famílias. Segundo Javier Surasky (2013):

“os estudantes formados no sul (Cuba) e com dinheiro do sul (cooperação sul-sul), tendem a ser captados pelos países desenvolvidos, gerando uma perda de valor de todo o processo. E, por outra parte, nada se faz no âmbito internacional para reverter a situação a que está submetido o povo saaraui por falta de vontade política para fazer respeitar seus direitos”.

A migração de população refugiada, no entanto, não é o único risco que enfrenta a Frente Polisário hoje. O contexto internacional, com o crescimento econômico, as pressões migratórias, a segurança energética e as mudanças políticas, também condicionam a realpolitik do conflito, assim como o possível momento crítico da esquerda na América Latina também seria uma ameaça para a causa saaraui. Assim mesmo, a institucionalização do movimento de libertação nacional em um Estado no exílio faz a Frente Polisário responsável pelas incapacidades na gestão de algumas questões, que são aproveitadas pelo Marrocos para culpar a FP de violações de direitos humanos nos acampamentos.

Comentário

A estabilidade pode ter sido uma armadilha para a busca de uma solução rápida para o conflito porque hoje a responsabilidade moral/ética (não jurídica) de garantir e prover os direitos básicos à população saaraui recai nas instituições paraestatais criadas pela FP, e não, como indicam os protocolos que regem os conflitos armados, na potência ocupante (como seria no caso do Saara ocupado pelo Marrocos) ou o país de acolhida da população refugiada (Argélia).

Tudo isso faz cada vez mais necessária e urgente uma saída ao conflito através da celebração de um referendo de autodeterminação, a incorporação, pela Minirso, das competências para garantir os direitos humanos e a liderança do Estado espanhol como administrador do território não-autônomo no processo de descolonização. Não avançar nessa direção reforça, ainda mais, as posições favoráveis para o retorno legítimo à luta armada contra Marrocos e favorece a consolidação de lobbies pró-Marrocos para tratar de obstaculizar a solução e legitimar as aspirações imperialistas do rei Mohamed IV.

Acontece que, em um contexto internacional marcado pelo medo a possíveis ataques do Estado Islâmico e as medidas de “eu te protejo em troca da tua renúncia a algumas liberdades”, como pode ser o caso do Estado de Emergência na França, é evidente a cumplicidade do Estado francês com a monarquia alauíta que, longe de aplaudir e apoiar o povo saaraui na busca de uma solução pacífica ao conflito, apoia aos senhores da guerra, que se convertem nos maiores patrocinadores da violência.

Finalizamos resgatando a uma das citações do mártir El Uali Mustafa Sayed (fundador da FP e primeiro presidente da RASD assassinado em 1976) em que afirmava: “se você quer seu direito, é preciso que esteja disposto a derramar seu sangue, é preciso que sacrifique tudo por uma só coisa: sua dignidade”. A cada dia que os e as saarauis se levantam, nos ensinam dignidade – a dignidade de um povo que resiste ao arrebatamento de sua terra.

Notes

[1Frente Polisário é um movimento de liberação nacional de caráter político e militar fundado em 10 de maio de 1973. http://delsah.polisario.es/el-frente-polisario/

[2Os Territórios Liberados compreendem a parte do Saara Ocidental controlada pela Frente Polisário que se encontra a leste do muro defensivo marroquino de mais de 2,2 mil quilômetros.

[3Por conta dos Acordos Tripartidos de Madrid assinados no dia 14 de novembro de 1976, a administração do Saara Espanhol foi transferida ao Marrocos e à Mauritânia. Em 1979, a Mauritânia, derrotada, assinou a paz com a Frente Polisário, renunciando a suas pretensões no território.

[4As Madrassas são as escolas de ensino fundamental (escola primária), obrigatória dos 6 aos 11 anos. Nelas os alunos estudam cinco séries e a taxa de escolarização é superior a 99%. Entre as disciplinas oferecidas estão Geografia e História, Educação Islâmica, Desenho, Educação Física, Matemática, Tecnologia, Língua Árabe, Língua Espanhola e Ciências Naturais.

[5Missão das Nações Unidas para o Referendo no Saara Ocidental criada para garantir o cumprimento do Acordo de Paz e a celebração do referendo em um período de seis meses, que até agora não aconteceu porque seu mandato é prorrogado semestralmente desde 1991.

[6Lista de países que reconheceram a RASD – entre eles está Cuba: http://www.umdraiga.com/documentos/RASD/RECONOCIMIENTOS_DE_LA_RASD.html

[7Entrevista realizada em Habana pela jornalista Luz Marina Mateo e o professor Javier Surasky, em “Crónicas de saharauis en la Habana: la cooperación de Cuba con la RASD”

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Eneko Calle trabalha na Associação Paz com Dignidade colaborando com a Revista Pueblos e é membro da Coordenação Vasca de Associações de Solidariedade com o Povo Saaraui “27 de Fevereiro – Otsailak 27”.

Referências

Centro Robert F. Kennedy for Justice and Human Rights. Western Sahara: Human Rights Violations reported between January 1, 2015 and June 30, 201.

Entrevista realizada a Mariam Salek para Sahara Press Service el 5 de agosto de 2015.

Boisha, L. Transmodernity. Special Issue: Sahara (Winter 2015)

Surasky, J. (2013). “La política como variable de éxito en la cooperación de los países de renta media: el caso de Cuba y la RASD”. Conferencia en el marco del III Seminario Internacional de Cooperación para el Desarrollo organizado por la Red Iberoamericana Académica de Cooperación Internacional (RIACI).